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Paulo Leminski faria hoje 77 anos: veja poemas marcantes do escritor

Nascido em 24 de agosto de 1944, em Curitiba (PT), o poeta faleceu em 7 de junho de 1989, com apenas 45 anos de idade.

Aos 12 anos ele ingressou no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde estudou Latim, Teologia, Filosofia e Literatura Clássica, mas abandonou a vida religiosa.

Faixa preta de caratê, o poeta tinha interesse em cultura japonesa e zen-budismo.

Paulo Leminski foi crítico literário e tradutor de expoentes da Literatura como James Joyce, John Fante, Samuel Beckett e Yukio Mishima.

Na sua formação, teve influência dos irmãos concretistas Augusto e Haroldo de Campos. Com o livro “Metamorfose” ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1995.

Alguns textos de Leminski foram gravados por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Guilherme Arantes. Na música, o poeta fez parcerias com Itamar Assumpção, José Miguel Wisnik e Wally Salomão.

Veja abaixo 10 poemas emblemáticos do autor:

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Dor elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Invernáculo

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

O que quer dizer

O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

M. de memória

Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

Parada cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

Sintonia para pressa e presságio

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Não discuto

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Esse post tem informações da Revista Bula e do site ebiografia.com

Foto destacada / Paulo Leminski / capturada no site Estante Virtual

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Povoado Cedro tem homenagem na rádio comunitária Mapari FM

O programa teve a participação especial do poeta Paulo Furtado, interpretando uma das mais belas crônicas do escritor Humberto de Campos, intitulada “Macacoeira”

Uma longa viagem pelas memórias e estórias contadas por moradores de várias gerações do povoado Cedro, localizado no município de Humberto de Campos, emocionou os ouvintes da rádio comunitária Mapari FM, no último sábado (17 de julho).

Ao longo do programa Mapari em Debate, apresentado pela professora Laury e Erick Viegas, com produção de Fernando Cesar Moraes, a emissora veiculou vários depoimentos de humbertuenses que falaram sobre as suas memórias da infância e da juventude, bem como das atualidades do Cedro.

Ouça o programa completo abaixo:

Programa Mapari em Debate finalizou com a
crônica Macacoeira. Ouça no tempo 1:29:12 no audio

Os relatos mencionaram personagens antigas do povoado, algumas já falecidas, outras ainda vivas, relacionadas aos “velhos tempos”, quando aquelas terras eram acessadas apenas por embarcações.

Hoje em dia chega-se ao Cedro com facilidade em qualquer tipo de veículo.

No passado, quando não havia estrada, os cedrenses aventuravam-se nas lanchas que saíam de São José de Ribamar para os municípios de Humberto de Campos e Primeira Cruz, em viagens longas, atravessando três perigosas baías, com duração de até 10 horas cada viagem.

Através da rádio Mapari FM muitas histórias e memórias conectaram os ouvintes e os participantes através do tempo com as lembranças de fatos históricos vivenciados nas dunas, lagoas e em toda a biodiversidade do Cedro.

O encerramento do programa teve a participação especial do poeta Paulo Furtado, interpretando uma das mais belas crônicas do escritor Humberto de Campos, intitulada “Macacoeira”.

O município que leva o nome do escritor tem várias peculiaridades. Está localizado na região Lençóis-Munim e o seu território contém uma rica biodiversidade da Baía de Tubarão, território encaixado nos critérios de uma Reserva Extrativista de Desenvolvimento Sustentável.

Do ponto de vista histórico, Humberto de Campos e o vizinho município de Primeira Cruz, assim como Icatu, foram palco da disputa entre Portugal e França, no início do século XVII, quando as forças lusas comandadas por Jerônimo de Albuquerque e os franceses liderados Daniel de La Touche disputaram o controle do território brasileiro (veja abaixo).

Na Literatura, Humberto de Campos, a cidade, foi batizada em reverência ao seu mais ilustre escritor, autor de uma obra relevante.

Todo esse conjunto de qualidades precisa ser mais explorado pelos gestores da região, incentivando o turismo de lazer e cultural na perspectiva da economia criativa.

A rádio Mapari FM está fazendo um importante trabalho nesse sentido. Comunicação, cultura e educação precisam andar de mãos dadas e o programa Mapari em Debate já presta um relevante serviço à cidadania.

Imagem destacada / vista do porto de Humberto de Campos

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Livro reúne obra do escritor Astolfo Marques

Produção do professor Matheus Gato traz os contos de Astolfo Marques (1876-1918), autor crítico da Abolição da escravidão e abre caminho para uma nova compreensão do 13 de Maio no Brasil

Entre os primeiros lançamentos da editora Fósforo, está o inédito livro O Treze de Maio: e outras estórias do pós-Abolição, de Astolfo Marques, organizado por Matheus Gato. A obra confronta dois imaginários opostos e persistentes sobre os significados do 13 de Maio no Brasil. De um lado, a velha e influente narrativa que concebe o fim da escravidão como uma espécie de dádiva da Princesa Isabel, anulando o protagonismo das camadas populares e dos movimentos sociais, para edulcorar a ação do estado e das elites dirigentes. Mas também questiona a narrativa da Abolição enquanto “farsa” e “mentira” que constituiu a política cultural dos movimentos negros brasileiros desde a segunda metade do século 20.

Matheus Gato

Astolfo Marques fez literatura a partir da matéria viva de uma República jovem e da derrocada dos sonhos pós-Abolição ao escrever na virada do século 19 para o 20, na periferia do Brasil. Uma literatura daqueles que ansiavam pela liberdade e encontraram um Brasil desigual e hierárquico. Homem negro e livre de um tempo em que libertos e escravizados conviviam em todo o país, Astolfo escreveu histórias capazes de flagrar o momento e seu caráter cambiante sem poupar contradições e complexidades

O Treze de Maio reúne uma seleção de 17 narrativas breves concentrada no retrato das reverberações do fim da escravatura em uma região especialmente vitimada pela brutalidade, como foi o Maranhão. Publicada na tinta fresca da imprensa nacional, a ficção de Astolfo chegou a ser entendida pela crítica de seus dias como um mero espelho irrefletido dos tempos. E, não à toa, por pouco não foi completamente apagada, permanecendo restrita aos arquivos históricos da imprensa maranhense até que o sociólogo e pesquisador Matheus Gato resgatasse e reunisse pela primeira vez os contos desse grande escritor brasileiro, cujo humor e sagacidade machadianos já deveriam há tempos integrar nosso repertório literário, ou como diz o escritor Paulo Lins, que assina o prefácio dessa edição, um autor que “deve figurar como um clássico”.
 
Os personagens de Astolfo empregam a língua falada, a língua viva, maranhense e brasileira. Mostram-nos, em suas andanças narrativas, um escritor interessado nas “alegrias, frustrações e desafios da vida cotidiana da gente negra e pobre”, mulheres que fazem da praça pública sua casa e domínio, operários nordestinos e militantes abolicionistas que desejam, mais que tudo, a quebra de estruturas, “pessoas para quem a cidadania também se exerce na festa”, como escreve Matheus Gato, “quando a música e a noite tomam o lugar das rotinas do trabalho diário, nos chinfrins e pagodes dos arrabaldes, mas também naqueles momentos de devoção e de fé”.

Em seu retrato pulsante da vida anônima, Astolfo Marques denuncia um Brasil que flerta, em discurso e ação, com uma república urbana e importada, mas que abriga em sua cartografia humana as marcas e as consequências de um passado que ainda se faz presente.

Sobre o autor:
Raul Astolfo Marques nasceu em São Luís do Maranhão em 1876 e morreu em 1918 na mesma cidade. Escritor, jornalista e tradutor, publicou contos e crônicas nos principais periódicos maranhenses à época e os livros A vida maranhense (1905), De São Luís a Teresina (1906), Natal (quadros) (1908) e A nova aurora (1913). Autodidata, trabalhou como contínuo na Biblioteca Pública do Maranhão, foi um dos fundadores do grupo de intelectuais Oficina dos Novos, que deu origem à Academia Maranhense de Letras, da qual foi membro.

Sobre o organizador:
Matheus Gato nasceu em Campinas, São Paulo, em 1983, e viveu até a juventude em São Luís do Maranhão. Em 2002, ingressou na Universidade Federal do Maranhão onde se dedicou à mobilização estudantil por ações afirmativas e políticas de cotas. Com doutorado e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo, foi visiting fellow no Hutchins Center for African and African American Studies da Universidade Harvard em 2017 e 2018. É professor do Departamento de Sociologia da Unicamp, pesquisador do Núcleo Afro\Cebrap e coordenador do BITITA: Núcleo de Estudos Carolina de Jesus (IFCH-Unicamp). É autor do livro O Massacre de Libertos: sobre raça e república no Brasil (Perspectiva).

Ficha técnica
Título: O Treze de Maio: e outras estórias do pós-Abolição
Autor: Astolfo Marques
Organização: Matheus Gato
Prefácio: Paulo Lins
Número de páginas: 208pp
Formato: 13,5 x 20 cm
Acabamento: brochura
ISBN: 978-65-89733-04-1
ISBN Ebook: 978-65-89733-05-8
Preço: R$54,90
Preço ebook: R$34,90
Data de livraria: 13/05/2021
Editora: Fósforo

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A UFMA na Praia Grande

Já imaginou vários cursos da Universidade Federal do Maranhão instalados nos casarões e prédios do Centro Histórico de São Luís, com a Reitoria localizada no Convento das Mercês?

E se ao longo das ruas tortas e estreitas houvesse equipamentos de ensino, pesquisa e extensão, conectando o passado e o futuro através da Ciência, em prol do desenvolvimento do Maranhão?

Caberiam ainda cafés, livrarias, sebos, salas de cinema, novas quitandas, moradias estudantis e laboratórios para exercitar a criatividade e o pensamento em um dos lugares mais belos da cidade.

A inspiração dos três parágrafos acima está em uma das notas do escritor Josué Montello, no Diário da Tarde, escrita em 29 de janeiro de 1967, quando ele relata a cerimônia do nascedouro da Fundação Universidade do Maranhão; futuramente, UFMA.

Montello foi um dos reitores da primeira instituição de ensino superior do nosso estado e sonhava criar uma cidade universitária no Centro Histórico de São Luís.

Ouça aqui a nota de 1967, na voz do poeta Paulo dos Santos Furtado, que gentilmente nos cedeu essa interpretação, entre tantas outras leituras deliciosas, quando encara com elegância a figura do narrador.

Em sua vasta obra literária, Josué Montello tem no romance mais visibilidade; porém, os seus “Diário da manhã”, “Diário da tarde”, “Diário do entardecer”, “Diário da noite iluminada”, “Diário das minhas vigílias” e “Diário da madrugada”,  que aparentemente são anotações sobre fatos pitorescos, revelam temas de forte valor histórico.

Na referida nota, o autor faz alusão ao desejo de transformar a Praia Grande, dotada de esplendoroso conjunto arquitetônico, em um grande centro cultural, lembrando o Maranhão de outrora.

O detalhe do excerto está no arremate, quando fica claro que, no calor de São Luís, não cabem as capas dos estudantes de Coimbra. Era só o romancista conversando com a sua imaginação.

Imagem destacada / Centro Histórico de São Luís visto do mar / Foto: Marizélia Ribeiro

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Viva os tambores de São Luís e de todo o Maranhão

Leitura de Josué Montello com vista para o Centro Histórico de São Luís
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Declarações de amor à Praia Grande

Texto e foto: Benedito Lemos Junior

Ruas, vielas, escadarias, “imponentes” casarões, moradas, “meia” morada, são itens da Praia Grande, em São Luís, capital do Maranhão, que revelam e escondem histórias e “istórias”, lendas e magias, em seus mais de quatros séculos de beleza e impureza, apogeu e decadência, relatos muitos inconfessáveis de “povos” que vagueiam pela vida.

Livres e/ou acorrentados, a Praia Grande é um dos mais belos e mais significativos cenários de “pessoas”, modos de vida e de cultura, de cidadãos que lutam por muito ou quase nada.

Em 1981, o cantor, compositor e poeta César Teixeira muito bem traduziu esse cenário no samba “Praia Grande” – tema da Escola de Samba Turma do Quinto naquele ano: “foi no século passado que a Praia Grande apareceu, entre secos e molhados, varejo e atacado, floresceu lá no cais, sob a luz das lamparinas”.

As lamparinas, os lampiões que “iluminaram”, por exemplo, os “caixeiros viajantes que tinham sonhos delirantes com a negra Catarina, e os pregoeiros, que sempre vivem no mundo da lua, vendendo frutas e verduras, e gritando pelas ruas tem caranguejo, farinha d’água e bobó”.

Assim, a Praia Grande, iluminada ou não, era e foi o sonho delirante de muitas pessoas, que também iluminadas ou não, fizeram e fazem histórias, suas lendas e magias, num recanto belo, de poesias, amores e paixões, entorpecidas, muitas delas, de álcool e drogas.

Umas das “figuras tarimbadas” mais presentes da Praia Grande era o poeta Nauro Machado. Não sei se o local foi fonte de sua bela e profunda inspiração, mas, com certeza, foi o “palco iluminado às velas” de muitas gerações, que como Nauro suplicavam “abre-me as portas, mãe, enquanto as estrelas buscam em mim agora a treva infinda, sem luz alguma no meu olhar a vê-las…..só para mim, que vou comigo pelas manhãs nascendo todas cegas ainda”.

Indo agora “imbora”, vou com a “Namorada do Cangaço” de César Teixeira, dando “Adeus, morena, o meu coração é um passarinho solto que não se pega com a mão” e sempre “voltar pra casa todo fim de ano cantando um bolero de Waldick Soriano”.

Mãe, te amo, em e por sua eterna memória.

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Machismo e acusação inquisitiva em Dom Casmurro: forças subjacentes ao suposto adultério

Por Arnaldo Gomes, professor de Língua Portuguesa.

Com grande relevância na produção literária de Machado de Assis, o romance Dom Casmurro faz voltar às memórias, “quase póstumas”, que dialogam com Memórias Póstumas de Brás Cubas – obra inicial do realismo no Brasil.

Conforme afirma Alfredo Bosi, a narrativa em primeira pessoa revela um Bentinho dominado por uma lacuna. Nesse sentido, pode-se perceber a melancolia de Bento Santiago (Bentinho) por meio do relato de suas reminiscências, com um tom negativo não apenas sobre faltas e perdas de outras pessoas em sua vida, mas sobre a falta de si mesmo (capítulo II):

         “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência[...]Só me faltassem os outros,vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo,e essa lacuna é tudo.”

A leitura atenta dessa metalinguagem pode ajudar o leitor a entender que, nos capítulos subsequentes, o discurso monolítico de Bentinho, interessado em compor a imagem de Capitu como dissimulada e adúltera, é permeado por fissuras reveladoras de ambiguidades: não se deve dar credibilidade ao que profere o narrador acerca da suposta infidelidade da sua mulher, posto que ele mesmo se revela inseguro e, por conseguinte, perturbado; narra os fatos a partir de um olhar uno e inquisitivo. Sob esse viés, vale salientar a reflexão feita pelo filósofo Edgar Morin, de que “ todo ponto de vista é sempre uma vista a partir de um determinado ponto”. Observe-se ainda que, a despeito de toda a acusação, Capitu não tem direito ao contraditório na trama da narrativa.

À luz da processualística contemporânea, poder-se-ia alegar nulidade do processo contra Capitu, visto que não houve isonomia entre as partes, tampouco ela foi intimada para apresentar a sua defesa. Portanto, não existe igualdade e, muito menos equidade, caso se pretenda dirimir um conflito, quando a parte interessada em acusar pretende ainda proferir a sentença.

Entender esse conjunto de elementos que permeiam o enredo é fundamental à percepção de que a genialidade de Machado de Assis não se limitaria certamente à questão instigante sobre a existência – ou não – do adultério em Dom Casmurro. É a partir da compreensão dessas questões que se percebem as temáticas – como o machismo de um “Casmurro” e a acusação sem provas contra Capitu- que emergem como forças subjacentes na obra, cujo debate não se limita às instituições (família e casamento) do século XIX; ao contrário, permanece vivo na sociedade contemporânea, numa prova inequívoca de que o olhar percuciente do autor projeta Dom Casmurro para além do seu tempo e traz à baila temáticas que não se tornam extemporâneas. Ao contrário, permanecem vivas e atuais.

Essa concepção é corroborada pelo próprio Machado de Assis, ao afirmar seu Sentimento de Nacionalidade: “o que se deve esperar de um escritor é, antes de tudo, um certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos num tempo e no espaço”. Faz-se, pois, inconteste a intenção do autor de projetar as diversas temáticas na obra em tela (suposto adultério, machismo, acusação inquisitiva e violência simbólica), só que o faz em tom nada panfletário ou incisivo. Essas questões, não obstante, devem ser compreendidas nas contradições e fraquezas do narrador-personagem, desveladas no próprio discurso de Bentinho e – intencionalmente – exploradas pelo realismo investigativo de Machado de Assis, um analista crítico à hipocrisia das instituições e um exímio observador da alma humana.

No entanto, é difícil pensar em Dom Casmurro e não ser seduzido a discutir sua temática mais visível. Para o escritor Arnaldo Sampaio Godoy, pensa-se que Capitu traiu, porque Capitu poderia ter traído. Essa é,portanto, a mais injusta e infame das provas. De fato, Godoy tem razão. É injusto e violento dar como certo aquilo que poderia ter ocorrido, ainda que não se tenha como provar se realmente ocorreu. É assim que o machismo e a insegurança de Bentinho agarram-se à possibilidade da traição, com o ardil de torná-la verossímil e subordinar a ela todas as conclusões possíveis, a fim de impossibilitar qualquer conclusão que não esteja vinculada à premissa acusatória, escolhida por ele para condenar Capitu.

Essa postura unilateral do narrador-personagem pode levar o leitor a emaranhar-se nas armadilhas do enredo e não atentar para o fato de que, contrariando a tese de quem a vê como adúltera, Capitu seria um exemplo de mulher injustiçada, como são tantas outras ainda hoje. Sob o predomínio da presunção de sua inocência, pode ser vista como uma metonímia da parte pelo todo, do individual pelo coletivo: de mulheres vítimas da violência perpetrada pelo machismo. No caso de Bentinho, um machista confuso e de extrema fraqueza moral, visto que teria suportado a traição, sem que tivesse a coragem de romper o casamento.

Para além da discussão sobre o suposto adultério, é importante perceber que Dom Casmurro é um libelo de condenação sem provas, bem ao gosto dos inquéritos medievais, pois busca construir uma verdade com base numa razão edificada sobre si mesma. Essa inquisição, reprodutora de tantas iniquidades (contra mulheres, negros, indígenas e tantas categorias historicamente vulneráveis) precisa ser suplantada.

Por fim, se Edgar Morin é cético quanto à imparcialidade do olhar, percebe-se que realidade e ficção andam juntas, já que – na obra de Machado de Assis – o mais importante não é o fato em si, mas a constelação de intenções e ressonâncias que o envolvem.

Imagem destacada capturada neste site

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Livro histórico e afetivo sobre São Luís tem nova edição e está disponível para download

São Luís do Maranhão, Corpo e Alma”, obra da historiadora Maria de Lourdes Lauande Lacroix (foto acima) sai em dois volumes, em formato digital e tem coordenação editorial do professor Flávio Reis.

São Luís do Maranhão, Corpo e Alma apresenta vasto painel, em escrita livre, sobre a evolução urbana, os costumes e as manifestações culturais e artísticas da capital maranhense. Numa narrativa envolvente, Maria de Lourdes Lauande Lacroix  mergulha de forma apaixonado na historiografia, nas memórias e iconografia de São Luís.

Capa do volume I da nova edição

A primeira edição, de 2012, foi um grande sucesso de público e crítica e se esgotou rapidamente. A nova edição, ampliada, começou a ser feita em 2015 e ficou pronta no final do ano passado. O livro foi elaborado com vasta utilização dos álbuns fotográficos da cidade de São Luís e montado no Studio Edgar Rocha.

“Os dois volumes têm novos textos e fotografias e são publicados somente em versão digital, pelo menos por enquanto, pois ainda não há perspectiva de edição impressa. Esse livro é uma pesquisa importante, tecida com o cuidado de uma escritora que tem recursos de narração e vai envolvendo o leitor”, afirma Flávio Reis
A segunda edição de São Luís do Maranhão, Corpo e Alma tem o prefácio de Benedito Buzar e posfácio de Flávio Soares. A obra estará disponível para download gratuito a partir desta quinta-feira, dia 21 de maio no seguinte endereço: https://saoluiscorpoalma.blogspot.com/

Leia abaixo o posfácio escrito pelo historiador Flávio Soares

POSFÁCIO

Vida e morte da São Luís antiga:

histórias, memórias e imagens

Flávio Soares

Um comentário sobre São Luís do Maranhão, Corpo e Alma, da professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix, cujo escopo não seja, obviamente, apresentar o que a escritora “quis escrever”, mas refletir e problematizar sobre o tema da cidade através dessa escrita, deveria começar pela questão do seu valor no conjunto dos trabalhos da autora.

Característica talvez única entre os escritores do seu grupo-geração, esses trabalhos iniciaram e coincidiram, no caso dela, com o momento em que, abrindo também a terceira idade, a professora proporcionou lugar à escritora. Tal condição, é certo, dera sinais em outro momento, quando, por exemplo, escreveu a dissertação de mestrado, A Educação na Baixada Maranhense, publicada em seguida, em 1983; mas, também é verdade, apenas no final da carreira docente, de fato, a escritora apareceu. Havia se aposentado antes na Universidade Federal do Maranhão, no começo dos anos noventa do século passado (dezembro/1991); lecionou ainda como professora substituta na mesma instituição e depois integrou o quadro de docentes do Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, quando lançou os primeiros livros da fase atual enquanto escritora, fechando o ciclo das atividades como professora e passando a se dedicar a escrever e publicar livros de história. Todos sobre São Luís, tema quase absolutamente ausente até então no seu campo de interesses, delimitado pela História moderna e contemporânea, sobretudo da Europa ocidental, especialmente Inglaterra e França. 

Até o momento, com a segunda edição desta obra, oito livros, entre os quais duas reedições ampliadas e revistas do primeiro, A fundação francesa de São Luís e seus mitos (2000), integrando conjunto relativamente pequeno e rico de trabalhos com extensões variadas, fruto de quase vinte anos de pesquisa incessante. Importa, aqui, advertir ao leitor quanto a, pelo menos, três condições iniciais da relação entre autora, obra e assunto.

De início, considerar que a São Luís de interesse da autora, e com a qual mais se afina, se refere ao ajuntamento urbano gestado nos quadros da colonização moderna do país, impulsionado principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, quando, no contexto da instalação de uma colônia de exploração escravista, seus elementos agrários, mercantis e político-administrativos ganharam maior volume, densidade e sentido quase de “comunidade”, fazendo com que seu aspecto inicial de fortaleza, burgo senhorial militar, “grande aldeia” ou povoação de algum tom barroco, sobretudo pela longa presença jesuítica, fosse  superado pela fisionomia mais urbana, de ar neoclássico e, certamente, eclética, hoje reconhecida como a da “São Luís antiga”. A rigor, portanto, surge como um tipo misto de cidade colonial moderna (leia-se, portanto, a expressão “cidade antiga” sempre no sentido de antiga modernidade ou modernidade antiga), sede, do ponto de vista do poder dominante e proprietário dos solos e imóveis, de grupos oriundos do grande comércio, das fazendas e da administração real portuguesa, em associações as mais variadas.

Moradora de São Lu ís até hoje, a autora viveu as últimas décadas do tempo da cidade antiga ou do tempo antigo da cidade, onde nasceu, passou infância, adolescência, juventude, estudou, concluiu bacharelado em direito (iniciado em Belém do Pará), licenciou-se em História, constituiu família (após casar-se com o ex-padre e sociólogo canadense Gilles Lacroix, no Canadá, onde também, na Universidade de Laval, especializou-se em História Contemporânea), e durante anos, dividiu-se, profissionalmente, entre as atividades na Previdência Social e as da docência no Departamento de História da UFMA.

Tais elementos de identificação são importantes não só para orientar o leitor, desde logo, quanto ao espírito e propósitos da obra, mas para começar a compreender a forma por ela tomada. Porque não é apena inventário histórico sobre a cidade antiga como objeto distante no tempo e espaço; é, igualmente, esforço extraordinário de rememoração, isto é, de elaboração das histórias e memórias da velha cidade enquanto partes também das histórias e memórias da escritora.

A segunda condição, além das afinidades naturais e biográficas, diz respeito ao tempo visado: tempo de longa duração, desaparecido ou em desaparecimento. Aspecto decorrente do fato de que a narradora testemunhou, a partir de determinado momento, em sua cidade, o impacto de um processo de transformações convencionado chamar “modernização” nas Ciências Sociais, de âmbito nacional e mundial, com particularidades históricas e regionais segundo cada situação.

No caso abordado, a ênfase do relato recaiu sobre a responsabilidade de políticas, planejamentos e administrações de governo equivocadas, decorridas das intercorrências e contradições históricas entre “interesses da cidade” como um todo, públicos, e, em especial, interesses de grupos ou particulares dos seus governantes, potencializadas no período indicado. Tais políticas, se não foram causas exclusivas, foram decisivas para a convergência entre aquele processo nacional de “modernização”, também chamado de “desenvolvimento”, e a “mutilação”, ou mesmo desfiguração e destruição, da cidade antiga. Embora em razão dos objetivos específicos do livro, a autora não teça ou se detenha em traçar paralelos, pois não é um estudo comparativo, trata-se, quanto à intensidade, de convergência talvez única no universo das capitais brasileiras. Lembre-se de várias “cidades históricas”, Ouro Preto (laboratório da política do patrimônio), Belém, Salvador, Recife, Rio de Janeiro, mesmo São Paulo, lugar do processo de metropolização e mistura urbana mais radical do país, onde áreas antigas, ou pelo menos suas memórias, parecem, à primeira vista, mais preservadas.

Em suma, na situação da capital maranhense, apesar do aspecto de lenta agonia da cidade antiga ligado a um processo relativamente vagaroso mas, sobretudo nas últimas quatro décadas, cada vez mais acelerado de urbanização, a dar a impressão (até por confronto, talvez, com a situação ao lado, mais drástica e reveladora, de Alcântara) de patrimônio histórico e arquitetônico que resiste “naturalmente” à “doença da pedra” e suas “ruínas verdes” e tudo mais, os processos de transformações acabaram mesmo foi levando à hecatombe de um dos acervos de construção “civil” mais importantes da América Latina, exemplo único de “sucesso urbano antigo”, dando dimensões mais largas ao caso ludovicense. Desde que não se reduza a São Luís antiga à sua configuração física, ao traçado e edificações, trata-se de verdadeiro colapso de uma experiência urbana, histórica e social, de onde emergiu a São Luís atual.

Falência bem mais ampla se considerar que ela se liga a um processo de modernização, de urbanização, que não surgiu organicamente, de dentro da cidade antiga, obedecendo às suas necessidades internas de atualização, mas de fora, dissociado, mesmo em contraposição, e não articulado, reajustado, à velha matriz urbana. O modo como foram politicamente conduzidas a “conservação” do núcleo antigo e a construção da cidade moderna além rio Anil, acabou resultando, hoje vemos, numa velha cidade degradada e num simulacro de cidade moderna, para dizer o mínimo.

Também, acrescente-se terceira condição, não é irrelevante o leitor ter em conta o surgimento do livro em pauta no decênio ora encerrado, isto é, algum tempo após o período da degradação, entre as décadas de 1930 e 1980, para dar algumas balizas cronológicas. No período indicado, é difícil imaginar no estado esta obra escrita por quaisquer autores. Especialmente a partir de meados dos anos 60, dominado por um paradigmadesenvolvimentista e autoritário, só depois questionado, num ou outro ponto, em seus aspectos ilusórios. Apenas nas décadas recentes, pós-hecatombe, pós-história da cidade velha, mudanças nas “condições de possibilidades” sociais, no campo cultural e intelectual em particular, permitiram àquela expansão do núcleo antigo ganhar visibilidade pelo seu avesso catastrófico.

Décadas, por um lado, do fim do relativo isolamento da condição provinciana, quando, como efeito da nova e explosiva onda de modernização, decorrentes não apenas de fatores econômicos, mas também político-estratégicos (não esqueça o fato de São Luís ser a capital de um estado porta de entrada para a Amazônia), começaram a aparecer nas paisagens do interior da ilha e da baia de São Marcos as hoje rotineiras filas de vagões de minérios de ferro da ferrovia Carajás e de navios “vindos da China”, dizem, conectadas pelo novo Porto do Itaqui, enquanto, bem perto, do outro lado da mesma baía, no continente, em meio às ruínas de Alcântara e desarranjos no modo de vida das comunidades locais, era assentada uma base espacial; quando, também, além das pontes – do Caratatiua, do São Francisco e Bandeira Tribuzi – e da barragem do Bacanga, de uma hora a outra, sob o império da indústria da construção civil e do mercado imobiliário, apareciam em formas modernas já obsoletas torres e mansões à beira das praias de águas escuras (Ponta da Areia, Calhau, Olho d’Água, Araçagi), como que formando, de fato, uma nova e gigantesca “Praia Grande”, para uso das classes altas e médias, erguidos ao longo das Avenidas Litorânea e dos Holandeses; às margens das Avenidas rasgadas com nomes de personagens evocando a memória antiga da cidade – Jerônimo de Albuquerque, Franceses, Daniel de La Touche, São Luís Rei de França -,  acumulavam-se  conjuntos habitacionais para uso das classes médias, altas e baixas, com rótulos em forma de siglas esquisitas e sem graça (COHAMA, COHAFUMA, IPASE, COHAB, COHAJAP, COHATRAC); e, em áreas periféricas cortadas por Avenidas com denominações de sentido histórico também simbólicas – Portugueses, Africanos, Guajajaras -, explodiam cortiços, mocambos, guetos, favelas e palafitas – chamados eufemisticamente de “vilas”, “jardins”, “parques” – das classes populares, trabalhadoras e pobres urbanas, frutos em parte das novas guerras de ocupações irregulares e invasões (também, ou sobretudo, dos “ricos”, note-se). Hoje, uma extensa mancha urbana se formou no noroeste da Ilha, município de São Luís, em processo de deslocamento cada vez mais rápido rumo aos municípios de São José do Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa, no leste da Ilha, gerador de “bairros sem história e sem cidade” (Frederico Burnett, “São Luís por um triz”, 2011, p. 108)

Ao mesmo tempo, a percepção de aspectos, crescentes dia à dia e sobrepostos ao longo de décadas, de degradação, sujeira, ruínas, enfermidades, em relação àquela área mais antiga e originária ou de modernidade mais envelhecida da São Luís atual, ainda que ocupada por famílias humildes, órgãos públicos e algumas atividades de comércio, oficina e serviço, e, mais ainda, apesar do “promontório” e da construção rápida de vias de escape e barreiras protetoras ao “patrimônio” contra a modernização arrasadora, como  as pontes, o “anel viário”, a “zona tampão” (de tombamento estadual), etc., possibilitou ver também na expansão indicada o afloramento de elementos até então latentes que lhe deram, para usar uma imagem de pensamento, o aspecto de produção de resto ou carcaça de um corpo urbano no espaço da grande São Luís em gestação.

Possibilitou um ponto de vista a partir de um horizonte de desaparecimento inédito. Por exemplo, ao contrário da “ideologia decadentista” oficial, secular, que comporta uma ideia de “abandono”, de “parada no tempo” (reinterpretada, irônica e interessadamente, como “protetora” da parte mais antiga da cidade histórica) ou da “cidade por um fio”, mas alimentada ainda por expectativas desenvolvimentistas de crescimento e ressurreição futura dos bons tempos da “idade de ouro” (no melhor dos casos cada vez mais ingênuas), agora não há mais isso. Sobretudo, depois que, enfim, a velha São Luís foi incluída na lista do “Patrimônio Mundial” da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, criada em 1945), em dezembro de 1997, na administração Roseana Sarney, a distância entre título, plano e realidade como que se tornou abissal, e, que fique assinalado, graças, em grande parte, a razões (reconhecidas pela autora) especialmente ligadas a medidas e ações de governos, principalmente estadual e municipal (em suas três esferas: executiva, legislativa e judiciária), claramente insuficientes e omissas, desarticuladas, eleitoreiras e emergenciais quando não baseadas em pura maquiagem, propaganda e retórica vazias. Revalorização discursiva e desvalorização prática da “cidade histórica” são faces de uma mesma forma de gestão e governo. 

Falência de uma política patrimonialista do patrimônio histórico e cultural da cidade, incapaz de efetivamente sintetizar, a não ser como relação caricata, o “antigo” e o “moderno”. No exemplo talvez o mais simbólico de todos, típico de Godfather da tribo, da morada cercada de palmeiras frente ao mar nos bairros modernos luxuosos e a apropriação pessoal do edifício antigo sagrado a título de conservação. O dano histórico e social tornou-se irreparável por quaisquer “política de conservação” possível. Como o instituto do tombamento de bens, materiais e culturais, poderia, efetivamente, se aplicar numa realidade incapaz de dissociar o privado e o público? Difícil não ver e sentir que não há mais fio algum…

Por isto também nada mais longe do espírito deste trabalho que o desejo da revitalização, restauração ou renascimento da São Luís antiga como museu a céu aberto, centro de atração turística, consumo, investimentos e negócios (segundo linha estabelecida por organismos internacionais no pós-guerra, como a UNESCO, de transformar cidades antigas em “patrimônios históricos e culturais” e, assim, em oportunidades econômicas e produtos de mercado), no contexto da sucessão de gestões, de esquerda ou direita, a essa altura tanto ou quase tanto faz, precárias, ineficientes, corruptas, armadas e assistencialistas de contingentes populacionais da grande São Luís cada vez mais tomada pelo inchaço urbano, o desemprego e a escravização do trabalho, a servidão por dívida, indústria da construção civil voraz e especulação imobiliária, a privatização e o desastre ambiental da Ilha, despersonalização e individualismo patológico, a desumanização e o mercenarismo de hospitais e médicos, o “apocalipse motorizado”, a violência das rotas e guerras do narcotráfico, a informalidade administrativa e econômica como forma de camuflar práticas ilegais e o domínio de milícias, etc., enfim, a dissolução dos frágeis vínculos históricos e sociais de civilidade ou urbanidade pela barbárie.

A compreensão deste livro deve, portanto, partir, além das suas afinidades e sentido particular de “final de um tempo” em relação à São Luís antiga, especialmente das suas relações (circunstanciais ou não) com o agora pós-catástrofe proveniente de e posterior a uma história de intervenções e expansão cujo resultado final em relação ao projetado, menos que atualização conservadora ou mesmo “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, menos ainda que reforma urbana profunda, evidenciou-se traumático e trágico.

Eis o dado de atualidade que permite ler essa obra como necrológio, elaboração radical de uma perda, mas, obrigatoriamente, também como reinvenção, nos campos da história, memória e imaginário da cidade antiga. Um tipo de luto, pergunta-se?  Quem sabe em relação às perspectivas e esperanças predominantes anteriormente. Em analogia inevitável com a Coruja de Minerva filosófica, parece que só agora com distância e possibilidade real de balanceamento, “Clio” pode inspirar o trabalho de reconstituição fisionômica e tecelagem dos fios esgarçados, fragmentados, do que aconteceu. Momento em que a cidade antiga ao deixar de ser contemporânea, ao se tornar “não-contemporânea”, pode, enfim, revelar algo de si à nossa contemporaneidade tão insólita…

A autora pode então voltar várias vezes ao básico. Às origens coloniais da cidade, à sua pré-história de “grande aldeia”, por assim dizer, rearranjando dados fundamentais e seus significados míticos e históricos, como a cerimônia religiosa cristã francesa e a Batalha da Guaxenduba, resultante na vitória portuguesa, mas também aos momentos cruciais e finais da sua história, nos anos 1940/1950. A pretexto circunstancial de “comemoração” dos 150 anos da Associação Comercial do Maranhão, descreveu em A Campanha da Produção (2004), pela primeira vez em seus trabalhos com apoio ilustrativo e cru das imagens, o último suspiro da Praia Grande e sua burguesia agroexportadora. Inspirado em Jerônimo de Viveiros, autor do clássico História do Comércio do Maranhão, escrito nas décadas de 1950 e começos da de 1960 mas sem chegar até aos anos da Campanha, o estudo permite problematizar um pouco a história do “alto comércio” a partir da visão do historiador.

Faz pensar, por exemplo, que diante da “catástrofe” da Abolição da Escravidão, em cuja enxurrada foram juntos a grande lavoura e o setor açucareiro e de engenhos (incluindo Alcântara e outras regiões da Baixada estudadas pela autora), a “loucura industrial” foi, no fundo, fruto de um cálculo inteligente e esperto através do qual a alta burguesia prolongou sua forma de acumulação por mais 50 ou 60 anos (diferente de Recife/Pernambuco, por sua vez, onde se transitou para o sistema de “usina”). No caso em pauta, porém, em princípio o maior desafio, imagina-se, era o de manter e fortalecer a posição competitiva de São Luís/Maranhão diante do processo avassalador de integração à nova fase econômica do país fundada no capitalismo urbano-industrial baseado no centro-sul. Isso exigiria o aprofundamento da “loucura industrial” além da forma de acumulação primitiva característica dos negócios da Praia Grande desde o final da era colonial.

Era o desafio da industrialização, da tomada ao pé da letra do mito da “Manchester brasileira”, que, levado à sério, poderia acabar implicando o enfrentamento de questões de base postas desde a Abolição e Proclamação da República, como, por exemplo, as reformas agrária e urbana. A Campanha buscou precisamente, diante dos impasses, aumentar a produtividade dos camponeses com assistência técnica, médico-sanitária, de infraestrutura, sem tocar na estrutura da propriedade das terras e fazendas. Como em várias outras regiões do país, antigas tensões no campo se agravaram, a revolta dos caboclos foi atiçada e lideranças, como Manuel da Conceição, apareceram.

Com a falência do esquema de negócios “algodão-fábricas têxteis-bancos”, a burguesia local simplesmente foi abandonando e/ou fugindo da velha área nobre da cidade, sitiada e ocupada, cada vez mais, pelas classes populares e pobres, para as quais, talvez, inicialmente tenha se tornado lugar de sobrevivência e “resistência”, mas, hoje, tristemente, desterro, beco infeliz, sem saída ou de grande precariedade social. Aja sofrimento e paciência!

 Fato é que o fim daquela cidade mercantil marítima de mentalidade senhorial, levou junto qualquer veleidade, caso a “loucura industrial” tenha sido mais que um delírio ou cálculo de adaptação, de tornar São Luís polo competitivo no Brasil, ou mesmo no norte e nordeste. Procurou, principalmente a partir do Golpe de 1964 e do governo do “Maranhão Novo”, quando não emigrar do estado, a melhor posição possível (no limite até de uma vida nova de classe média por exemplo) no contexto do inchamento urbano e consolidação da região como periferia do capitalismo industrial brasileiro dependente. Os “distritos industriais”, sabe-se, com uma ou outra fábrica estabelecida, nunca passaram das placas. A essa altura o valor da produção industrial do Maranhão havia declinado de 0,7%, em 1907, para 0,2%, em 1958, enquanto São Paulo saltara, nos mesmos anos, de 16,5% para 55,0% (Lopes, JB, p.20, 1971).

É a partir, portanto, da relação tridimensional da autora com a São Luís antiga –  repita-se: afinidade biográfica, consciência do “fim de um tempo” e escritura pós-catástrofe -, que o livro em foco implica um assunto e um modo de composição sobre os quais vale refletir.

Começa que, dado o “novo” horizonte, curto e emergencial, difícil ou impossível de planejar, é pelo trabalho da pesquisa que se faz o mergulho direto na matéria histórica constitutiva do núcleo antigo, fonte primeira do relato e de seus desdobramentos. É a partir da investigação quase etnográfica e não conceitual do urbano, além do faro desenvolvido, que o objeto do livro – a experiência histórica da São Luís antiga – foi percebido como “cadinho” ou “cadinhos” de váriasvivências, práticas, condutas e crenças, valores, ideias.Condições ou associações de classes e moradias diferentes, etnias heterogêneas, grupos, categorias sociais e tipos humanos singulares (nada blasé) e movimentos religiosos, ideológicos ou expressões culturais e artísticas distintas. Conjunto de situações e processos materiais e imateriais, coexistindo e convivendo num mesmo espaço e tempo, ou segundo uma variedade de lugares e ritmos de tempos, estabelecendo entre si relações de familiaridade e estranhamento, tensões mas também negociações e fusões, sincretismos, miscigenações e segregações, liberdade e escravidão, civilização e barbárie.O traçado da cidade, por exemplo, apesar da geometria regular, foi capaz de comportar uma arquitetura de estilos diversos e misturados, principalmente quando São Luís se estende para além dos limites das ruas do Egito e Formosa. Enfim, penso eu, a cidade enquanto crisol, se não no sentido pleno de uma “comunidade urbana” enquanto “cidadania” (inexistente), certamente no sentido geral de multiplicidade de elementos, ou melhor, de fragmentos políticos, sociais, econômicos, culturais. Em suma, uma cidade cuja característica principal, por isso mesmo, é a sua quase indeterminação ou fragilidade de caráter no tempo.

Reparando bem, a compreensão no sentido indicado, da cidade antiga como “multiplicidade”, ou pequeno laboratório de heterogeneidades, já aparece, de certa maneira, nas pesquisas dos livros sobre fundação, mito e guerra colonial, quando se retoma em outra chave a figura do português Jerônimo de Albuquerque Maranhão em relação a determinado modo de olhar o francês Daniel de La Touche. A fundação francesa, vista como mítica e fruto da combinação mais recente do galicismo e narcisismo de elites decadentistas, sobretudo letradas e políticas, é deslocada para a genealogia colonial portuguesa em um sentido não exclusivista, “distinto”, mas “mestiço”, “múltiplo”, sem que tal signifique ausência de violência, mas um modo de dominação mais mediatizado.

Mas, é sobretudo neste São Luís do Maranhão, Corpo e Alma que a ideia de multiplicidade é levada mais longe. Mas, note-se, a multiplicidade percebida pela pesquisa, nos termos indicados, é entendida como característica mais do passado que do presente (ou não?), pois, apesar de construída neste tempo caótico, a pesquisa não projeta (até porque não há projeção) sobre a São Luís antiga uma diferenciação ou complexidade, real ou simulada, um multiculturalismo qualquer, por exemplo, que seria reconhecida na São Luís contemporânea, ou vice-versa; na verdade, a “multidão”, a corporificação social do fenômeno em questão, percebida na matéria histórica investigada, não é, porém, percebida como fenômeno de consciência ou reconhecimento individual e social, com raríssimas exceções, a exemplos de João Lisboa nos seus folhetins (em um dos quais apresenta a extraordinária visão da multidão como serpente de mil cores “sem rabo nem cabeça”, isto é, como multiplicidade incompleta, diferente da outra serpente, a da lenda da cidade, completa e adormecida); a exemplo também de Aluízio Azevedo em alguns parágrafos de O Mulato, e mais um ou outro autor.

Trata-se de um dado de realidade, porém não reconhecido, latente. Uma multiplicidade cuja lógica específica da indeterminação aponta mais para uma sociabilidade fragmentada e segregacionista que uma genuína comunidade urbana ou “cidadã” (associação autônoma, nos termos de Max Weber). O que se coloca como um passo adiante no entendimento da “cidade” tendo em vista o modo como normalmente ela foi percebida.

Atingida pelo impacto modernizador, que, apesar de “mutilador” e traumático, carrega novos elementos, a multiplicidade urbana tradicional, isto é, a velha modernidade, sem ser efetivamente superada e atualizada (o que implicaria a “síntese” indicada), já que nem reconhecida era, passa a girar no espaço-tempo da São Luís contemporânea, pós-moderna e já totalmente tomada pelo fetiche da imagem da mercadoria, enquanto ruína de não importa qual cor e puro espetáculo sombrio.  Consciência dramática da passagem e possibilidade históricas interrompida ou mesmo perdida de vez, mas também da necessidade de se insurgir e erguer contrapontos e alternativas à lógica fantasmagórica objetiva que passou a sufocar a cidade e suas memórias e possibilidades.

A matéria e a composição da obra, além da pesquisa livre, passam também pelo arquivo da relações de intimidade da autora com a velha cidade, escavado no livro; relação indissociável de uma vida cuja trajetória foi informada, em boa medida, por aquele complexo de “cadinhos”, emaranhado de espaços-tempos, lugares ou roteiros nas hierarquias sociais, filtrados nos termos da cultura predominante. Assim como grande parte da trajetória de vida da autora, mas com teor de percepção, consciência e reflexão mais amadurecido, esta obra-ensaio é o resultado eclético de várias influências, absorvidas, dosadas, organizadas e sintetizadas, elas mesmas, se não em regras, em orientações de pesquisa e composição.

O leitor observará, por exemplo, no uso dos materiais, a diversidade das fontes. Desde documentos primários do Arquivo Ultramarino de Lisboa, crônicas antigas, jornais, legislação, relatórios, mensagens de governo, revistas, bibliografias, mapas, passando por memórias pessoais, familiares, cada vez mais utilizadas, também de outras pessoas com as quais se relaciona, conhece ou conheceu, até o emprego variado das imagens, como ilustração e, progressivamente, linguagem estética própria. Mescla de erudição e crítica, a composição do livro também incorpora um aspecto literário e artístico, crescentemente elaborado e refeito. Aspecto de interesse porque marca de identificação da São Luís antiga, mas, provavelmente, em nível cultural mais profundo, como o da língua, traço histórico de elites urbanas oriundas da colonização católica, ibérica, portuguesa. Em todo caso, recorde-se. Desde os tempos da província, principalmente após o choque anárquico da guerra dos bem-te-vis (Balaiada) e da insurreição escrava (1838-41), a mais radical revolta de caboclos e negros ocorrida na história da região, ludovicenses, em particular o grupo mais instruído dos senhores e senhoras, num movimento instintivo de conjuração, assimilação e diferenciação de classe, fundindo recalque, adaptação, sublimação, defesa e generalização, fabricaram para si um padrão singular como “atenienses” do Brasil.

Ora, essa medida de reconhecimento e status foi posta também em questão pelas mudanças ocorridas no século XX. De um lado, pela violência e desmanche causados, mas, de outro, porque trouxeram à tona formas diferentes de expressão e comunicação: a oralidade das culturas populares; a audiovisual da cultura de massas (cinema, rádio, televisão); a científica das universidades; formas atuais de linguagens estéticas (em poesia, música, literatura, artes plásticas, teatro, arquitetura) e, mais recente, a linguagem virtual dos programas de computadores, dos simulacros. Sem passar ao largo, mas antenado, o escrito em questão capta a atmosfera em mutação e, à sua maneira, dialoga com tais meios de expressão, o que lhe dá traços não só de história e rememoração, como já escrevi, mas também de empenho de reconstrução do lugar da Autora e da escrita.

Pela exploração das correspondências entre história e memória, palavra, texto e imagem, o artesanato da escrita recria uma espécie de caleidoscópio através do qual histórias são contadas, memória e imaginário reelaborados, almas e corpos dissecados e mostrados. É daí, talvez, da fricção entre conteúdo da multiplicidade e forma caleidoscópica, se puder dizer assim, que provém, no contexto das transformações indicadas e dos escritores maranhenses contemporâneos, o fogo, a energia radical, extemporânea, a força atuante e atualizadora, na base da relação estabelecida entre autora, livro e assunto: esforço de recomposição da linguagem e reelaboração da história, memória e do imaginário da cidade e da autora do ponto de vista da consciência tanto de uma falência histórica quanto do ânimo para existir, resistir e persistir.

Exagero? Nem tanto se o leitor considerar que aqui se trata de remoer o testemunho, a percepção e, em particular, afetos vários, complicados e delicados em torno de uma tragédia urbana e social como a da São Luís antiga. Como, de outra forma, enterrar mortos, exorcizar fantasmas e liberar novas energias? Difícil responder, mas vale ressaltar um ponto.

Não há recusa do envolvimento emocional com o tema. Nem poderia. Qualquer tentativa de distanciamento, adoção exclusiva de postura objetiva, fria, técnica, ao modo das abordagens científicas, como as que proliferaram na chamada área dos “estudos urbanos”, no caso dela, soaria restritiva ou falsa. Afinal se trata da cidade onde nasceu e cresceu. Então há sim elementos de nostalgia, saudade, tristeza, dor. Contudo, o trabalho – elaborador de uma passagem -, não fica preso aí, não se encerra no círculo fantasmagórico do culto aos mortos, da melancolia, queixume, percepção autopiedosa, idealizações escapistas ou otimismos restauradores inocentes, comum às reações tradicionalistas, mas não só. Não. Ele dá passos adiante, se insurge e apresenta e potencializa outros elementos, de denúncia, indignação, revolta, crítica, ironia, etc., os quais funcionam como contraponto, contrapeso, e configuram um equilíbrio lúcido e sensível, resistente e modulável, singular em relação ao tema, que, ao ser formulado, deu à obra da autora força compreensiva, matiz próprio, tom harmonioso e dissonante. Basta comparar com obras, escritas e iconográficas, existentes sobre São Luís (feitas por memorialistas, historiadores, geógrafos, urbanistas, sociólogos, jornalistas, fotógrafos, artistas em geral) ou outra cidade do estado, como Alcântara de Antônio Lopes, por exemplo, e mesmo fora do Maranhão, elaborados segundo antigos cânones eruditos e literários ou novas regras e enfoques acadêmicos, teóricos, empíricos e metódicos, para se dar conta do passo dado e a perspectiva aberta quanto à forma de percepção do tema da cidade.

Livro para ser ao mesmo tempo lido, visto e sentido, implica um tipo de compreensão que toma a vida urbana de maneira transversal, aquém e além de uma ciência urbana. E mesmo que, em função de um conjunto de circunstâncias e condições históricas e sociais, gerais e particulares, a São Luís antiga, provinciana e moderna à sua maneira, jamais tenha chegado, nem na alucinação “ateniense” mais alta, perto da situação das capitais dos centros do capitalismo mundial e nacional (Londres, Paris, Berlim, São Petersburgo, Chicago, Nova York, Buenos Aires ,  São Paulo, Rio de Janeiro), e talvez por isso mesmo, este trabalho indica ser possível abordagem fora dos lugares comuns e entediantes, sobre a experiência urbana em zonas periféricas extremas,  onde e quando, por conta do domínio dos elementos agrários e rurais, ela se apresenta ainda quase como miragem no meio da floresta.

Imaginado e escrito em linguagem clara, distante do jargão universitário, com liberdade só possível à maturidade da vida e também com muitas pitadas de delicadeza, elegância, classe e sentido de beleza ou gosto característicos da autora, São Luís do Maranhã, Corpo e Alma é contribuição rara às bibliotecas brasileiras, em particular maranhenses, à espera discreta dos leitores.                                                                                      

Que os deuses da cidade abreviem tal espera!

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Mais que uma janela

Eloy Melonio*

Quantas histórias guarda uma janela?

Difícil imaginar! Pois sempre tivemos forte afeição por essa moldura na parede das nossas casas.

Quem já não ouviu sobre a janela de onde D. Pedro I anunciou que ficaria no Brasil, ou sobre a janela do Palácio Apostólico, em Roma, de onde o papa fala para milhares de fiéis? Na ficção, as crianças viajam na história da janela da torre onde Rapunzel ficou aprisionada por uma bruxa vingativa.

Mas da janela amarelo-dourada da foto que ilustra esta narrativa não se sabe muita coisa. Felizmente não é a sua história o que nos importa. É algo mais original, mais arrebatador.

Vou tentar, breve e sucintamente, reconstruir a história da janela. E vou começar pelo começo. Porque nem todo começo é o que parece ser. Assim como a lua não é a mesma em cada noite, em cada fase ou a cada olhar.

Mas essa história começa mesmo onde, ou quando?

Não sei direito. Alguém, algum dia, em algum lugar, teve a iluminada ideia de deixar um buraquinho na parede de sua moradia para a entrada de ar e claridade. E não é que todos na redondeza logo estavam olhando o horizonte por um buraquinho igual a esse!

Séculos e séculos se passaram, e a ideiazinha fajuta ainda se mantinha em voga ― aberta ou fechada. E, aos poucos, as coisas foram se abrindo a novos ares. Desde a antiguidade, a arquitetura, talvez a mais exuberante das artes, se ocupou da organização e do adorno dos espaços. E as janelas sempre tiveram destaque em suas obras.

Além do vento e da claridade, viram que, para sobreviver, o buraquinho tinha de ter mil e uma utilidades. Numa delas, talvez a mais comum, a pessoa ficava “ali” horas a fio só para ver o que estava acontecendo lá fora, como porteiro de condomínio. Dizem por aí que foi dessa mania que surgiram as fofoqueiras de plantão. E por que também não as “fake news”?

Bentinho e Capitu, protagonistas de “Dom Casmurro”, romance de Machado de Assis, por exemplo, passavam suas noites à sua janela da Glória, bairro onde moravam, no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, “mirando o mar e o céu, a sombra das montanhas e dos navios ou a gente que passava na praia”.

Na poesia, Drummond exalta o amor metendo-o por uma janela: “O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar” (O mundo é grande, in “Amar se Aprende Amando”). Eu também inventei de fazer versos para a janela: “E não demorou muito,/ estávamos, eu e ela,/ casados, olhando o mundo/ da mesma janela” (A janela de minha casa, p. 158, Dentro de Mim).

Sem perda de tempo, vamos falar da nossa protagonista. Não antes de eu lhe contar que, recém-casado, morava numa porta-e-janela, típica casinha de aluguel na periferia das cidades. Antes disso, na pré-adolescência, via filmes e shows através da janela do único vizinho que tinha aparelho de televisão. Foi nesse período que, entre tantas janelas, vi como a vida se refaz todos os dias no puxar e no empurrar de ferrolhos e trincos. E nesse abre-e-fecha, as casas se enchem de sol, ar fresco e de alegria. E se esquecem do mundo lá fora.

Abrindo as cortinas do palco da vida real, vemos como a nossa janela se mostra ao mundo. Sempre saudando o dia e a poesia. E o palco não poderia ter melhor cenário: o segundo andar de um casarão colonial na Rua Henrique Leal, no centro histórico de nossa cidade, por onde, diariamente, passam dezenas de turistas.

Se ― por alguns minutos ― parar para admirá-la, você perceberá a evolução estética do buraquinho de que falei no início desta crônica. E certamente vai se deslumbrar com a beleza e a magia dessa janela de forma e cor ricamente tecidas, que encanta as manhãs e tardes da Ilha do Amor.

Misturados aos turistas e transeuntes, estão os bem-te-vis, os beija-flores, as borboletas ― todos encantados com sua elegância, que, em dias de sol, parece querer compor uma sinfonia de tom amarelado.

Enquanto escrevo, imagino-me nesse cenário, olhando para a janela e ouvindo de seus admiradores ao meu redor os mais lindos comentários: “Que linda, toda florida!”, “Uma janela cheia de vida!”, “E toda hora tem passarinhos!”, “Tem também as essenciais abelhas, as etéreas borboletas, os besourinhos a fainar!”.

De repente, alguém exclama: Essa janela é um texto! Olho para trás. Era o Ed, um jornalista e escritor amigo meu.

E, enfim, chego a imaginar que a nossa janelinha está sempre sorrindo porque talvez queira acalentar no peito os nossos olhares. E quem sabe contar-nos as suas histórias!

* Eloy Melonio é professor, escritor, compositor e poeta.
Foto: Ed Wilson Araújo

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Josué Montello: memórias das trupiadas de bumba-meu-boi em São Luís

Fonte: Agenda Maranhão

Prenúncio dos festejos de São João, maio é o mês de recolhimento das chuvas grandes e aparição mais intensa do sol no Maranhão. Nessa época, na zona rural de São Luís e por toda a Baixada e no Litoral, os grupos de bumba-meu-boi intensificam os ensaios aquecendo os pandeirões com grandes fogueiras nas brincadeiras de sotaque da ilha, zabumba e costa de mão.

Esse tempo de preparação e festejo tem uma memorável passagem na obra “Os tambores de São Luís”, do escritor Josué Montello. No vídeo abaixo, o jornalista Ed Wilson Araújo interpreta um trecho do livro, tendo como cenário o Centro Histórico.

Os ensaios treinam as toadas e as trupiadas dos batalhões para se apresentarem nos arraiais. Uma cena emblemática se repete nesse tempo, nos sábados à noite, quando os homens desentocam dos povoados do interior da ilha de São Luís e caminham para os terreiros dos ensaios carregando suas matracas e pandeirões. As mulheres, chamadas mutucas, também seguem o ritual.

A festa em homenagem a São João, São Pedro e São Marçal tem seu esplendor em junho, mas tudo começa logo em abril, no Sábado de Aleluia, e aquece mesmo em maio, quando o sol seca a madeira e as fogueiras iluminam os quatro cantos da ilha onde o povo se reúne para bater matraca, esmurrar os pandeirões e entoar as famosas toadas.

Em 2020, com a pandemia, não teremos aglomerações. Os festejos juninos ficarão apenas nas nossas memórias e nas redes sociais. Mas no ano que vem, como sempre dizem as toadas, o boi volta a brincar.

Foto destacada capturada neste siteFacebookTwitterWhatsApp