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Paixões, varíola e machismo em São Luís, na novela “Maria Arcângela”, de Erasmo Dias

Ed Wilson Araújo

Organizado pelo poeta Nauro Machado, o livro “Erasmo Dias e Noites” reúne artigos, crônicas, contos, poemas e uma novela, “Maria Arcângela”, ambientada nos desdobramentos da epidemia de varíola ou “bexiga”, nos meados do século 19, quando São Luís vivenciou o isolamento social, quarentena, pânico e morte.

“Foi quando a peste chegou. A última varíola que assolou São Luís. Interditaram parte do Codozinho, pois lá estava o Isolamento, hospital para onde iam os bexigosos.” (DIAS, 2016, p. 358)

A novela se passa na fronteira entre a Belira, o Codozinho e a Madre Deus, onde transbordam variadas paixões : o gosto pela tiquira, os encantamentos por homens boêmios, morte em decorrência da peste, religiosidade, preconceito e a rivalidade entre grupos de bumba-meu-boi.

Sapateiro famoso, Mestre Quirino e sua mulher Rita criavam a filha Maria Arcângela na simplicidade do casebre construído em uma nesga de terra do novo bairro criado após uma ocupação eleitoreira na cidade. Pairava no ar o receio da varíola:

“Tudo foi indo num ramerrão do comum que entedia. O Mestre batendo sola, Rita sempre triste, com medo da invasão, dizia: Maria Arcângela crescendo, bonita, gordinha, mistura racial de homem de cor e mulher brancarana, e já mudando os dentes de leite.

Foi quando a peste chegou. A última varíola que assolou São Luís. Interditaram parte do Codozinho, pois lá estava o Isolamento, hospital para onde iam os bexigosos.

O pânico tomou conta da cidade. A pavorosa passava sem sirene, que não as havia, batendo e retinindo a campainha: era um a mais que ia para o recolhimento do Lira. As escolas todas fecharam. O governo reagiu com uma vacinação domiciliar e compulsória. Foram proibidas as reuniões. Enquanto, porém, a autoridade decretava as suas medidas de salvação pública, o povo, independente e liberto como o é, reagia ao seu modo. Pouco importava que o rabecão, derramando desinfetante, passasse dez vezes por dia, na rua do Passeio, levando os mortos, recolhidos nas residências. Quando o guarda sanitário saída, após a vacinação, a dona da casa dizia: “Vamos passar limão nessa porcaria, que isso é só pus. Credo, a doença dá em quem tem de dar”. Com medo da vizinhança, as famílias escondiam os doentes, argumentando: “O Lira, sim, só quem não sabe, é um matadouro! Da outra vez, vovó se tratou em casa e está a mesminha”. (DIAS, 2016, p. 358)

Observadas as temporalidades, o drama de Erasmo Dias ocorre no contexto da ocupação espacial da cidade, sempre pautada no discurso de que São Luís seria “moderna”, empurrando a pobreza para a periferia.

(Leia aqui artigo sobre a gripe espanhola e o advento da luz elétrica na capital do Maranhão, alusiva à obra “Os degraus do paraíso”, de Josué Montello).

Àquela época as autoridades sanitárias tomaram providências para impedir os sepultamentos no interior das igrejas, onde a convivência misturava os fiéis vivos e os mortos, objetivando ainda inibir a condução dos defuntos em caixões abertos durante os cortejos fúnebres pelas ruas.

Capa do livro Erasmo Dias e Noites, organizado pelo poeta Nauro Machado

Nas áreas cotadas para fazer um cemitério estava a localidade Gavião, hoje um dos tradicionais lugares de sepultamento em São Luís (veja a foto destacada, de Gaudêncio Cunha).

Então, o cemitério passou a ser um equipamento incorporado à ideia de higiene social adequada às medidas sanitárias modernizadoras.

Os conflitos na novela se dão com a descoberta de que Maria Arcângela, até então tida como filha de Rita e Mestre Quirino, na verdade era rebenta do glamuroso cantador de bumba meu boi Edinho. Assim conta Erasmo Dias, nas palavras do cachaceiro (apreciador de tiquira) Romualdo:

“Seu doutô, a finada Rita – a quem Deus a tenha – era do chifre furado. Brancarana bonita e de xandanga, como nunca eu vi. Que o Mestre não me ouça, lá onde todos os dois já estão, mas a pequena, a Maria Arcângela, não era filha dele; era filha do Edinho, que cantava como ninguém e sabia bater um pinho de fazer chorar.

[…]

– Doutô, lhe digo, sobre aquela conversa que as vez a gente fala da falecida Rita, veja como as coisas são: quando ela pegou a lixa lá na Belira, no outro dia Edinho pegou a peste aqui neste Codozinho, que hoje é uma cidade. Todos dois morreram no mesmo dia e na mesma hora.” (DIAS, 2016, p. 359)

A novela se passa nos bairros tradicionais de São Luís: Belira, Codozinho e Madre Deus

Viúvo de Rita, Mestre Quirino criava Maria Arcângela sem saber desse fato. Até que um dia Maria Arcângela aparece grávida. Por coincidência, o pai da criança era outro cantador de boi pelo qual ela se apaixonara perdidamente: Luizinho.

Uma das cenas mais chocantes da novela é a sessão de espancamento verbal e físico protagonizada por Mestre Quirino em sua (até então) filha Maria Arcângela, ao tomar conhecimento de que ela estava grávida e seria mãe solteira, “falada” no bairro inteiro.

A surra só não levou a nocaute a menina porque a velha parteira Nhá Maria Teresa adentrou no barraco arrotando a pura tiquira e flagrou a balbúrdia. Tentando impedir a sessão de violência, durante a discussão com o irado Quirino, ela revelou aquilo que nos bastidores toda a vizinhança já sabia – Maria Arcângela era filha de outro homem, o boieiro Edinho.

Ao saber da traição, Mestre Quirino teve até uma congestão e morreu babando de ódio.

Além do machismo, a religiosidade e o misticismo compõem a trama, como o hábito de passar limão no local da vacina para evitar o pus, registrado nesse trecho:

“A peste se alastrava. Mestre Quirino se vacinou, vacinou a filha e a mulher.

Rita não acreditava, passou limão nas incisões do braço. Dias depois, o febrão, o delírio, a denúncia da vizinhança e dizem que ela morreu de bexiga-lixa, lá no Isolamento, cheia de tantas e dolorosas pústulas, que, nuazinha, rendeu a alma, posta sobre folhas verdes de bananeiras, já que plásticos em aqueles tempos não havia.” (DIAS, 2016, p. 358-359)

Se o limão não resolvesse, a fé ajudava. As procissões em honra a São Sebastião davam o tom do fanatismo religioso:

“A varíola declinou. Nas ruas do subúrbio, ainda que proibidas as reuniões, já não se encontravam os grupos de penitentes, com velas acessas e uma imagem pequenina do Santo, cantando medievalescamente, tomados de fé, as coplas que arrepiavam de um a todos:

Oh mártir de Cristo,
Meu Santo Varão,
Livrai-me da peste
Meu glorioso mártir
Meu São Sebastião”.

Toda a novela é cerzida pela representatividade da cultura popular enaltecida nas brincadeiras de bumba meu boi. Nesse folguedo, o destino de duas mulheres se encontra – a mãe Rita e a filha Maria Arcângela, tocadas pelo feitiço boêmio dos cantadores Edinho e Luizinho.

Parte da novela, nas entrelinhas, aborda as normas sanitárias impulsionadoras do progresso de São Luís. As periferias cresciam como uma espécie de “higienização” do tecido urbano já em meados do século 19, traduzida na hipótese de uma cidade supostamente mais saudável aos seus moradores.

Novamente, a promessa de São Luís “moderna” desfila no terreno da ficção.

Afinal, quando seremos Paris?

Leia mais sobre a promessa de modernidade em São Luís.

Imagem destacada / cemitério do Gavião / Gaudêncio Cunha.

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Quando a morte e o fanatismo religioso chegaram em São Luís: a gripe espanhola, por Josué Montello

A primeira promessa de que São Luís ia virar Paris veio com a iluminação elétrica em substituição aos antigos lampiões de gás. Era um deslumbre generalizado ver a cidade clareada pela nova tecnologia – o povo na rua como se estivesse vendo o homem pisar na lua.

Modernidade. Essa alegria foi interrompida pouco tempo após a inauguração da “eletricidade”, quando chegaram os registros de que a gripe espanhola começava a somar óbitos mundo afora. Havia uma contagem regressiva para a “sinistra” adentrar ao Maranhão.

No livro “Os degraus do paraíso”, Josué Montello conta….  

“Depois, como se a nova luz da noite as atraísse, começaram a chegar as más notícias do Norte, do Centro e do Sul. A morte andava lá fora matando às cegas. Um arrepio de frio, febre alta, delírio, e o que até há pouco não era nada passou a ser o desespero e a sepultura. Dezenas, centenas de casos, destruindo famílias inteiras de um dia para outro, no Rio de Janeiro. Ninguém tinha sossego. E era mais quem perguntava: quando a morte chegaria em São Luís? Toda gente se entreolhava, apegando-se aos seus santos. E as lâmpadas elétricas, nos negros postes de iluminação urbana, tinham um ar de espanto – que amedrontava.”

“Até que uma noite, no começo de outubro, a morte entrou de manso pelas ruas tortas que se esgueiram para o mar, escondida no corpo de um marujo de olhos em brasa e andar gingado. Dias depois a cidade lhe sentiu a presença sinistra, nos primeiros esquifes roxos que saíram das casas do meretrício para o Cemitério, à noite, sem acompanhamento, sob o olhar das lívidas lâmpadas elétricas.”

Uma das capas da obra de Montello

Depois, revela Montello, partiram outros corpos de vários lugares da cidade, até mesmo dos sobrados da rua Grande e rua da Paz. A cidade ficara deserta. Em meio ao pânico, pedradas certeiras estilhaçavam as lâmpadas nas ruas, talvez como ato de revolta diante da tragédia coletiva simultânea ao milagre da luz. Seria a energia elétrica uma espécie de maldição?

“Os degraus do paraíso” tem a forte presença da personagem Mariana, dotada de uma fé obsessiva, a ponto de apostar as suas forças na formação do filho Teobaldo em padre.

Todos os propósitos da sua vida eram dedicados ao ordenamento do filho, considerado por ela ungido à missão sacerdotal.

Eis que, apesar de todo o seu fervor católico, Mariana perdeu o rebento mais querido e prometido ao sacerdócio, atropelado por um dos poucos veículos que transitava por São Luís no início do século 20. A morte de Teobaldo provocou uma depressão violenta em Mariana, piorada após o contágio da gripe espanhola.

Trancada no sobrado localizado na esquina das ruas do Sol e da Cruz, no Centro Histórico de São Luís, mortificada com perda do filho e ameaçada pela gripe espanhola, Mariana começou a ser tratada por uma enfermeira evangélica, em visitas diárias.

Aos poucos, o fervor católico de Mariana ganhou outros tons de fé, passando ela a questionar os cânones da sua religião original. Parte dessa virada decorria de uma interpretação da personagem sobre a perda do filho, prometido para ser padre.

Os questionamentos sobre o catolicismo, estimulados pela enfermeira evangélica, cresciam à medida que Mariana conseguia progressos no tratamento da gripe espanhola, principalmente devido ao isolamento social.

Nesse ínterim da narrativa de Josué Montello, outros fatos correm no romance, sempre marcado pela cidade vazia, macabra, em quarentena e silêncio, rompidos apenas pelos cortejos fúnebres das novas vítimas da gripe e pelas pedradas nas lâmpadas.

A tensão da obra fica por conta da conversão radical de Mariana à religião evangélica, elevada a tal ponto de fanatismo que renega a filha Cristina, irmã de Teobaldo, admitida no convento para ser freira.

Embora narrado em uma São Luís do passado, “Os degraus do paraíso”, romance de Josué Montello, trata de temas atuais: isolamento social e fanatismo religioso. É uma boa leitura para esses tempos de solidão.

Vou ficar por aqui para não ser spoiller de livro de papel.

A Literatura e a ficção científica estão recheadas de estórias sobre colapsos da humanidade causados por doenças. O professor e filósofo Marco Rodrigues escreveu recentemente sobre o coronavírus e a obra “A peste”, de Albert Camus. Acesse o artigo aqui.

OBS: O sobrado de Mariana, cenário principal da obra de Montello, é hoje o atual prédio do Ipam (Instituto de Previdência e Assistência do Município), na rua do Sol, esquina com rua da Cruz.

Imagem destacada / rua do Sol, na antiga São Luís / capturada neste site

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Romancista afro-brasileira Maria Firmina dos Reis tem adaptação para o teatro

O espetáculo “Maria Firmina dos Reis: uma voz além do tempo” estreia nos dias 30 e 31 de outubro, às 19h30, no Museu de Artes Visuais (Rua Portugal, 273, Praia Grande), com sessões gratuitas e acessíveis em libras e áudio descrição.  A obra é fruto de uma pesquisa da atriz maranhense Júlia Martins a respeito da primeira romancista afro-brasileira e maranhense que deu voz ao feminino e através da literatura criticou as injustiças de uma sociedade machista, racista e escravocrata, perpetuada nos dias atuais.

Segundo a produção do espetáculo, esta é a primeira abordagem na linguagem teatral com uma releitura da obra e vida de Maria Firmina dos Reis, símbolo de resistência e luta contra a escravidão, esquecida por mais de um século, apesar da sua importância na construção da literatura afro-brasileira.

O espetáculo é uma realização do Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro, com patrocínio do Banco da Amazônia, apoio do Grupo Universitário de Teatro (GUT), Núcleo de Acessibilidade da UFMA, Museu de Artes Visuais, Pajama Produções, Escola de Cinema/IEMA e Guajajara Filmes.

FICHA TÉCNICA

Elenco: Júlia Martins

Direção: Leônidas Portella

Preparação Corporal: Shamach Pacheco

Cenário e Figurino: Marlene Barros e Marcos Ferreira

Iluminação: Renato Guterres

Trilha sonora: Beto Ehongue

Ilustração: Da cor do barro

Designer gráfico: Adryano Costa

Assistente de Produção: Tairo Lisboa

Produção: Júlia Martins e Victor Silper

Classificação: 10 anos

Entrada gratuita