Começou a circular essa semana uma das novas publicações do Grupo de Pesquisa (GP) Rádio e Midia Sonora, vinculado à Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação).
A ideia da publicação surgiu nas discussões e planejamento do GP Rádio e Mídia Sonora, durante o Congresso da Intercom, em 2018, quando a Lei de Radiodifusão Comunitária nº 9.612/98 completava 20 anos.
Um dos textos da obra, com o título “Do alto-falante à rádio comunitária Bacanga FM: comunicação e organização popular no bairro Anjo da Guarda, em São Luís-MA”, tem autoria do professor do curso de Rádio e TV da UFMA, Ed Wilson Ferreira Araújo, do mestrando em Comunicação (UFMA) Jefferson Saylon Lima de Sousa, e dos radialistas Robson Silva Correa, Rodrigo Augusto Mendonça Araujo, Rodrigo Anchieta Barbosa.
O comitê editorial selecionou oito textos que retratam a história das rádios comunitárias, a reaproximação com os movimentos sociais, as falsas rádios comunitárias, a cidadania e autonomia nas emissoras, as culturas populares e massivas na programação e as re-existências das rádios em alto-falantes.
A pesquisadora Denise Cogo prefacia a obra. “Esta coletânea representa um registro histórico da luta pela democratização da comunicação que, nas décadas de 1990 e 2000, estava centralizada na ‘reforma agrária do ar’ e atualmente se expande para as redes digitais, inclusive com as resistências destas estações nos novos ambientes”, pontuou o coordenador do livro, professor Ismar Capistrano Costa Filho, da Universidade Federal do Ceará.
VEJA A LISTA DE ARTIGOS DO LIVRO
Sobre comunas comunicacionais radiofônicas: uma análise crítica do processo histórico de formulação da Lei n. 9.612 (João Paulo Malerba)
Rádios Comunitárias: a retomada do ideal comunitário no processo do fortalecimento da organização popular (Márcia Vidal Nunes)
Cidadania Comunicativa e Autonomia Comunicativa: lutas pelo direito à comunicação nas rádios comunitárias (Ismar Capistrano Costa Filho)
Do alto-falante à rádio comunitária Bacanga FM: comunicação e organização popular no bairro Anjo da Guarda, em São Luís-MA (Ed Wilson Ferreira Araújo, Jefferson Saylon Lima de Sousa, Robson Silva Correa, Rodrigo Augusto Mendoça Araujo, Rodrigo Anchieta Barbosa)
Os receptores das rádios comunitárias em Fortaleza (Catarina Tereza Farias de Oliveira)
Rádios comunitárias só no nome: um panorama das rádios comunitárias no Agreste de Pernambuco (Giovana Borges Mesquita, Sheila Borges de Oliveira, Diego Gouveia e Rodrigo Barbosa)
Salada Sonora: o que dizem as paisagens sonoras e a rádio de poste sobre viver em comunidade em um Bairro Popular de Salvador (Andrea Meyer Medrado)
Rádio GAC: uma análise da participação dos moradores da Quadra no processo de criação da rádio poste (Milena de Castro Ribeiro)
Pelos alto-falantes da Voz Tupi muita gente namorou e até casou. A música de Odair José Pare de tomar a pílula era “febre”. Havia também os animados shows de calouros que revelaram talentos musicais nos bairros de São Luís
Antes do
surgimento da rádio comunitária Bacanga FM, no Anjo da Guarda, houve pelo menos
três serviços de alto-falante no bairro: Voz Tupi, Voz Montecarlo e a Rádio
Popular. No início da década de 1970, a Voz Tupi foi a principal referência de
comunicação local utilizando equipamentos de propagação da voz – microfone,
amplificador e alto-falante. Nesse interstício surgiu ainda a Voz Montecarlo. A
partir de 1988, durante uma década (até 1998), foi a vez da Rádio Popular dominando
os “ares” do Anjo da Guarda e adjacências.
Originada
no bairro Lira, a Voz Tupi chegou no Anjo da Guarda após o rumoroso incêndio
nas palafitas do Goiabal, em 1968, que provocou o primeiro grande deslocamento
populacional para a região Itaqui-Bacanga.
Memórias e emoções de José de Ribamar Furtado sobre a Voz Tupi
O radialista José de Ribamar Furtado, 63 anos, também conhecido no meio radiofônico como Ribinha, lembra um bordão marcante falado pelo advogado Jurandir Sousa : “Voz Tupi, 20 anos no ar servindo bem a comunidade”. Furtado começou a trabalhar na Voz Tupi logo no início da década de 1970, como operador, assim que a emissora chegou no Anjo da Guarda.
Segundo
o radialista, a amplificadora cresceu junto com o bairro e foi uma prestadora
de serviço para os moradores. “Era uma escola e ajudou muito na minha caminhada
no rádio no Maranhão. A Voz Tupi era chamada o cacique
suburbano e teve como donos iniciais o advogado Jurandir Sousa,
Vadico e Oliveira”, recordou.
Já o bancário
aposentado Raimundo Silva Pereira Neto
morou no Lira e no Anjo da Guarda, onde chegou em novembro de 1969. Nos dois
bairros recorta as memórias da Voz Tupi, liderada por Wlademir de Oliveira
Silva, o Vadico, e Jurandir Sousa. Nas duas amplificadoras a música dominava a
programação, mas elas repercutiam também os acontecimentos do bairro, avisos,
informes, utilidade pública, anúncio de aniversário e falecimento de moradores,
notas sobre o dia-a-dia da comunidade e propaganda do comércio local.
No Anjo
da Guarda a amplificadora funcionava nas proximidades do Teatro Itapicuraíba. “Era
um cômodo onde tinha o estúdio e um poste de madeira com o alto-falante. Existia
um grupo de músicos do Anjo da Guarda (Chiquinho, Seu Doca, Vavá). Eles
anunciavam ‘daqui a 15 dias vai ter um programa de calouro’ e as pessoas se
inscreviam e no dia montavam o palco, passavam as músicas e era convidada uma
equipe para fazer o julgamento. Havia muita participação popular”, enumerou
Neto, reiterando que os programas de calouros eram o aspecto mais emblemático.
“Pra mim aquilo já era o estímulo da produção da arte popular. A Voz Tupi
estimulava isso através da música”, enfatizou.
Cacique suburbano
A expressão “cacique” era uma referência à cultura indígena. No bairro Coréia, por volta da década de 1950, havia a amplificadora Voz Guarani, conforme o relato de Ligia Oliveira Belfort (reveja aqui)
Provavelmente,
as denominações indígenas dos serviços de alto-falante seguiam a lógica dos
Diários Associados, de Assis Chateaubriand, que designavam as emissoras
filiadas sempre com referência às etnias. No Maranhão, a rádio Gurupi e depois
a Timbira são exemplos dessa tendência.
José de Ribamar Furtado conta que foi levado para a amplificadora por Haroldo Viana. “Eu comecei como operador. A Voz Tupi tinha dois pratos (toca discos) e por ali eu comecei a aprender a colocar a emissora no ar. Havia um amplificador de 75 watts, a válvula. Com a ida do Haroldo Viana para Brasília eu passei a ser locutor também. Aos poucos fui tomando consciência da responsabilidade que eu estava abraçando para que essa aprendizagem me levasse até o rádio”, explicou.
José de Ribamar Furtado: do alto-falante ao rádio profissional, trabalha atualmente na Câmara dos Vereadores de São Luís
Espalhadas
em diversos bairros de São Luís, as amplificadoras geralmente apresentavam como
principal produto a programação musical e nos fins de semana os animados “shows
de calouros”. Segundo Furtado, os concursos de cantores amadores na Voz Tupi
eram oportunidades para revelar novos talentos musicais que tinham dificuldade
de inserção nas rádios.
Em algumas ocasiões, a Voz Tupi fazia a retransmissão das partidas de futebol ou inseria os jornais falados das emissoras profissionais de rádio AM, mas os hits davam o tom na programação. “O essencial era tocar os sucessos. Quando chegou aquela música de Odair José, “Pare de tomar a pílula”, ave maria, era legal”, comemorou, explicando que os discos (LPs de vinil) eram comprados nas lojas ou distribuídos pelos produtores e propagandistas das gravadoras.
Odair José era um dos cantores mais tocados na Voz Tupi
A escritora Lourdes Lacroix, no livro “São Luís do Maranhão Corpo e Alma” registra a existência das amplificadoras desde janeiro de 1930 na capital, quando “a Casa Autovictor, situada na Praça João Lisboa, inaugurou um serviço de altofalante com o objetivo de projetar artistas locais.” (Lacroix, 2012, p. 520)
Embora
já houvesse emissora profissional de rádio AM instalada em São Luís desde o
início dos anos 1940, os serviços de alto-falante ou voz ainda tinham uma
relativa importância nos anos 1970. “Havia uma disputa fantástica pela
audiência entre as rádios profissionais, mas existia um apelo popular porque a
gente tinha nosso espaço através dos serviços de alto-falante, apesar da força
do rádio AM no Maranhão”, esclareceu Furtado.
As
formas de arrecadação ocorriam mediante a cobrança pela veiculação de mensagens
comemorativas, anúncio de produtos dos estabelecimentos comerciais, divulgação
de festas e eventos em geral.
No Anjo
da Guarda a Voz Tupi funcionava diariamente das 11h às 13h e das 17h às 19h.
Excepcionalmente aconteciam as alvoradas musicais para homenagear um
aniversariante. Nessas ocasiões a emissora tinha uma transmissão específica às
6h da manhã com oferta de músicas e mensagens ao homenageado.
Audiência e namoro pelo alto-falante
A interação com a audiência era ativa. “A comunidade sempre participou de maneira direta ou indireta, principalmente através de carta e mensagens. Sempre teve essa aproximação entre o trabalho da voz e o ouvinte. Era tão participativo que todas as vezes que falecia alguém e a gente tocava a música “El silencio” gerava expectativa para saber quem havia falecido. O bairro inteiro parava”, detalhou o radialista Furtado.
Música El silencio deixava o bairro em suspenso para saber quem morreu
Pelos alto-falantes da Voz Tupi muita gente namorou e até casou. A veiculação de mensagens afetivas ou o oferecimento de música aproximava as pessoas pela emoção. “Eu casei com a minha primeira esposa – Dulcié Bastos Furtado – através da Voz Tupi. Ela achava minha voz bacana, me admirava. Pra mim foi marcante. Eu lembro até de algumas músicas que eu colocava pra ela, como “Davy”, na voz de Nalva Aguiar; e “Meu bom José”, interpretada por Rita Lee. Mas não foi só eu não. Teve outros companheiros que se casaram pela Voz Tupi”, apontou.
Veja abaixo os videos de Nalva Aguiar e Rita Lee
Música de Nalva Aguiar foi o “cupido” no primeiro casamento de Ribinha
Ribinha também oferecia música de Rita Lee para conquistar a primeira esposa
De acordo com Furtado, as amplificadoras fizeram escola para muitas pessoas que posteriormente foram para o rádio. “Foi o berço da minha trajetória e de vários outros companheiros. Com eles aprendi a trabalhar com seriedade, informação precisa e verdadeira”, detalhou.
Imagem destacada / Entrada do bairro Anjo da Guarda / Acervo do jornal O Imparcial / capturada neste site
O jornalista e escritor Herbert de Jesus Santos vai fazer o relançamento da obra “Um Terço de Memória, Entre Anjo da Guarda e Capela de Onça, e os Heróis do Boi de Ouro (A História de Fato e de Direito do Bairro Anjo da Guarda)”, dia 28 (quarta-feira), 18 horas, no teatro Itapicuraíba.
Prestes a completar 49 anos de existência, o bairro do Anjo da Guarda é conhecido notoriamente pelo espetáculo ao ar livre da Via Sacra. Hoje com mais de 300 mil habitantes, e apesar dos percalços de infraestrutura e mobilidade urbana, o bairro é palco de grandes manifestações culturais e religiosas. Mas você sabe como o Anjo da Guarda surgiu? A história envolve, infelizmente, perdas. Mas também muita irmandade.
Casas do início da ocupação do Anjo da Guarda
Origem
Tudo começou depois de uma grande tragédia. No dia 14 de outubro de 1968, o bairro do Goiabal foi vítima de um incêndio até hoje não elucidado. Uns acreditam que foi provocado por fogos de artificio, outros por uma lamparina – tem até quem diga que foi por causa de um simples pescador que assava peixe na beira do rio. Mas, o que se sabe de fatos concretos e não de suposições, é que houve um grande incêndio no Goiabal, com uma mistura de casas em chamas, corpos queimados, lama de mangue e o desespero das pessoas, tornando o quadro ainda mais dramático. Ao todo, 78 casas ficaram completamente destruídas, deixando cerca de 100 famílias desabrigadas, conforme dados da Comissão Estadual de Transferência de População (Cetrap).
Solidariedade
Foi então que se instalou um sentimento de solidariedade e comoção não apenas pelos povoados próximos, mas também por parte do poder público, da igreja, da Companhia de Água e Esgoto do Maranhão (Caema) e até da antiga Telecomunicações do Maranhão (Telma). Os desabrigados foram remanejados para a localidade conhecida por Itapicuraíba, onde receberam roupas, alimento e cobertores. Com o passar do tempo, a localidade, que havia sido rebatizada de Vila Anjo da Guarda, passou a ser conhecida por bairro Anjo da Guarda, devido a seu crescimento repentino.
O escritor Aluísio Azevedo, na obra “O mulato”, que dá início ao Naturalismo na Literatura brasileira, descreve um sítio homônimo denominado “Anjo da Guarda”:
“Fazia preguiça estar ali. A viração do Bacanga refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom morno e aprazível. Havia a quietação dos dias inúteis, uma vontade lassa de fechar os olhos e esticar as pernas. Lá defronte, nas margens opostas do rio, a silenciosa vegetação do Anjo da Guarda estava a provocar boas sestas sobre o capim, debaixo das mangueiras; as árvores pareciam abrir de longe os braços, chamando a gente para a calma tepidez das suas sombras.”
SERVIÇO
Texto de Herbert de Jesus Santos, com adaptações do blog.