Em 14 de novembro de 1876, quando São Luís vivia uma sofisticada efervescência cultural, motivo da falsa denominação de Atenas Brasileira, a cidade foi palco de um dos crimes de racismo mais bizarros já registrados.
A vítima não foi nenhum “escravo fujão”, como eram estigmatizados os negros que se recusavam aos maus tratos, escapavam do cativeiro, e, por isso, eram enforcados em praça pública.
Naquele tenebroso novembro, a violência foi desferida contra um menino negro de apenas 8 anos de idade, configurada em quatro atos brutais.
Primeiro: o garoto foi torturado e assassinado;
Segundo: houve um sepultamento às pressas do corpo mutilado;
Terceiro: apontada como autora, Dona Anna Rosa Viana Ribeiro, típica representante da aristocracia provinciana, foi absolvida por unanimidade;
Quarto: o promotor do caso, Celso Magalhães, que levou a júri a baronesa Anna Rosa Ribeiro, foi execrado da cidade.
O rumoroso episódio ficou conhecido como o “Crime da baronesa”.
“Nesse tempo o Maranhão vivia um clima de efervescência cultural, representado por humanistas e intelectuais, integrantes do Grupo Maranhense que fez a Província receber o título de Atenas Brasileira. A condessa, por sua vez, se arrimara nos dotes jurídicos e na palavra vigorosa do afamado jurista Paulo Belfort Duarte, representante de poderoso clã maranhense.”
“Assim, no dia do julgamento, a fidalga Anna Rosa Ribeiro compareceu à sessão acompanhada do seu marido e irmão. Vestia um traje de seda preta e envolvia o rosto e o busto com um véu de crepe. Acompanhavam-na dezoito damas, vestidas de luto, em sinal de protesto que ocuparam os primeiros bancos do salão. O povo apinhava-se nas galerias e a cidade vivia uma excitante expectativa do debate e da decisão.”
“A decisão seria, porém, como era próprio do tempo: a absolvição unânime, que transitou em julgado, à falta de recurso.”
Ao fim e ao cabo, não só a baronesa fora absolvida unanimemente, como o seu marido, o médico Carlos Fernandes Ribeiro, chefe do Partido Liberal, assumiu em 1878 a presidência da Província do Maranhão e tratou logo de demitir o promotor Celso Magalhães, que morreu um ano depois de ser defenestrado da comarca de São Luís.
O episódio caracteriza não só um crime de racismo, mas uma prática da cultura política fisiologista, provinciana e clientelista marcante no Maranhão há séculos e presente em pleno ano de 2020, quando um morador de rua foi torturado, amarrado pelos pés com uma corda e arrastado por uma caminhonete até a morte, em pleno Centro Histórico de São Luís.
# cena 1: o VLT dorme em um cemitério no Aterro do Bacanga;
# cena 2: um fantasma brinca de malabares no Circo da Cidade;
# cena 3: caiu uma chuva de lixeiras na cidade;
# cena 4: o abrigo do Largo do Carmo virou pó;
# cena 5: uma onda gigante varreu as bancas de revista;
# cena 6: festival de música vira palanque gospel;
# cena 7: um homem arrasta e mata um morador de rua amarrado a uma caminhonete no Centro Histórico.
Vou dar zoom na # cena 3: repentinamente, nos lugares mais esquisitos, onde não tem calçada, só matagal e lama, a prefeitura plantou um pé de lixeira em cada poste.
Você sabe quanto foi gasto nesse arranjo? Tem ideia de como seu dinheiro foi aplicado? Houve licitação? Qual empresa ganhou?
De uma hora para outra algum gestor iluminado decidiu que teria de colocar lixeiras por toda parte e assim foi feito. Até nos lugares inadequados.
Há décadas as obras são tocadas sem qualquer mecanismo de consulta aos moradores, empreendedores e fruidores dos espaços públicos.
No geral, são ouvidas as empreiteiras, os lobistas e os negócios do entorno. O trânsito muda para atender o condomínio. O esgoto sem tratamento é jogado num rio qualquer. A zona rural é devastada para atrair grandes empreendimentos… e por aí vai…
O Plano Diretor, principal meio de planejamento da cidade, é ignorado pela maioria da população porque a prefeitura vem escondendo esse tema tão importante da agenda pública.
É muito estranho. Com tanto dinheiro torrado em propaganda para divulgar obras, quase nada é investido na divulgação das audiências públicas de revisão da legislação urbanística.
Vivemos em uma cidade sem participação e transparência, princípios fundamentais de uma administração democrática.
Um dos sintomas mais graves do genocídio cultural é a falta de diálogo sobre as decisões de interesse coletivo.
Os cidadãos foram consultados para saber se a melhor solução seria derrubar o abrigo do Largo do Carmo?
Quem decidiu plantar lixeira, questionou os moradores sobre calçada ou rampa?
Não existe conexão entre a gestão e os cidadãos. As intervenções urbanas são feitas sem qualquer mecanismo de participação da população. E sem transparência quanto à aplicação dos recursos públicos.
O atraso em São Luís é tamanho que reforma de praça, operação tapa-buracos, asfaltamento, capina do matagal e chuva de lixeira viram exemplo de gestão.
Em qualquer capital antenada com os princípios elementares da civilização, equipamentos como bancas de jornais e revistas são incorporados à dinâmica das cidades, inclusive adaptadas às inovações tecnológicas.
Aqui, bancas são exterminadas.
Não adianta higienizar os espaços e inaugurar obras se a mentalidade provinciana permanece entranhada na administração da cidade.
Genocídio cultural não diz respeito apenas às ações específicas relacionadas à morte dos espaços e do fomento às diversas manifestações artísticas na cidade.
No fundo, o genocídio é uma forma de governança excludente, instituída nos moldes arcaicos, amparada numa levada obreira, como o milagre dos tapumes e puxadinhos em anos eleitorais.
Todo esse peso é suportado pelo alicerce duro do pragmatismo eleitoral. Aí quase tudo vira uma prática arcaica entre as elites principais.
O Plano Diretor, a grande política, o governo municipal esconde.
Apesar da boa aparência e gentileza do prefeito, São Luís parece administrada na vida real por alguém saído recentemente do estado de natureza, bicho bruto do agronegócio, tipo de gente que odeia jornal, banca de revista, atriz, gay, estética, leitura, encantamento, poeta, índio e arte em geral.
Além de requalificar as praças, a cidade precisa mudar é a mentalidade provinciana, racista e; às vezes, estúpida, como a ocupar irregularmente os espaços para estacionamento. Essas marcas do autoritarismo, herdeiras das sociedades escravocratas e clientelistas, ainda estão presentes no dia a dia da gestão tocada pelo quero, posso e mando…tirar as bancas de revista, derrubar o abrigo, arrancar o circo, fazer um VLT nas coxas ou enfiar lixeiras nos postes.
Outro forte traço do genocídio cultural é o processo de gentrificação dos espaços públicos, a exemplo do ocorrido na “península”, que transformou uma vila de pecadores no “Leblon ludovicense”.
Os espectros da direita e da extrema direita rondam São Luís. Uma das variações do bolsonarismo, a bibliocracia, está presente e valendo na gestão do prefeito Edivaldo Holanda Junior (PDT).
O exemplo mais esdrúxulo é o recente edital para um festival de música religiosa que exclui as vertentes emanadas do rico patrimônio estético dos povos de matriz africana.
A mentalidade provinciana e racista de hoje guarda resquícios de fatos marcantes em outras épocas: o mulato Gonçalves Dias rejeitado pela família de Ana Amélia; o exílio forçado de Aluísio Azevedo após a repercussão da obra “O mulato”; a fuga de Nina Rodrigues porque era incompreendido na sua província; os rituais de matança de escravos no Largo da Forca Velha (hoje praça da Alegria); a rumorosa absolvição unânime da grã-fina Anna Rosa Viana Ribeiro, acusada de torturar e matar uma criança negra de oito anos, no final do século 19; os escritos racistas de Corrêa Araújo contra Nascimento de Moraes…
Esses e outros tantos outros exemplos estão bem aí, na cara da gente, todos os dias, na São Luís que quer virar Paris…
A capital do Maranhão está parada, olhando o retrovisor: as velhas práticas permanecem e a novidade é tão antiga quanto os esqueletos do passado.
Então, é mais ou menos isso: uma sequência dos últimos 30 anos repaginados no velho discurso da renovação. Assim, novas gerações conservadoras e os 50 tons de bolsonarismo manobram à direita na antiga ilha rebelde.
# cena 7: a serpente acordou expelindo veneno: “sou 19 e estou pronto”
Imagem destacada / As novas caras do conservadorismo: Eduardo Braide, Duarte Junior e Neto Evangelista lideram as pesquisas para a Prefeitura de São Luís em 2020
Um grupo de intelectuais negros(as) de todo o país deflagrou a coleta de assinaturas para endossar o manifesto que exige a retomada dos objetivos e da missão institucional da Fundação Cultural Palmares, que vem sendo desviada pelo governo Jair Bolsonaro e depreciada na gestão do seu atual presidente Sérgio Camargo.
Em uma de suas agressões verbais, Sérgio Camargo referiu-se ao Movimento Negro como “escória maldita”.
O manifesto vai circular em três idiomas (espanhol, inglês e francês) e servirá de denúncia em redes internacionais de direitos humanos.
Até a publicação desse post, cerca de 1500 assinaturas já estavam computadas na plataforma change.org
Clique aqui para ler o manifesto inteiro e assinar
A iniciativa do manifesto visa destituir Sergio Camargo do cargo, investigação e punição pelos seus atos, bem como o retorno da entidade ao seu eixo original: trabalhar para a promoção da política cultural de igualdade e inclusão que contribui para a valorização da História e a preservação das manifestações culturais, científicas e artísticas da população negra como patrimônio nacional.
Veja abaixo trechos do manifesto:
“Esta carta denuncia os atos ilegais cometidos pela pessoa no comando da Fundação Cultural Palmares e exigimos investigação, bem como punição severa por suas irresponsabilidades.
[…]
Sérgio Nascimento de Camargo, desqualifica o Movimento Negro brasileiro o tempo todo, caracterizando-o como “escória maldita” e frequentemente expressa seu desejo de revogar a comemoração do Dia da Consciência Negra.
[…]
Atitudes como as tomadas pelo presidente da Fundação Cultural Palmares são inaceitáveis e criminosas, uma vez que destroem o patrimônio e os valores históricos, sociais, econômicos, científicos, éticos e civilizacionais resultantes das influências africanas na formação da sociedade brasileira. O modus operandi racista do presidente atual da Fundação Cultural Palmares e seu corpo diretivo fere o princípio constitucional de moralidade administrativa.”