por Ed Wilson Araújo
Ao longo de toda a minha vida de jornalista eu nunca tinha escrito um texto com título tão apelativo, escandaloso e sensacionalista.
Num dia triste e frio de Porto Alegre, eu saí do teatro São Pedro pensando no padre Antonio Vieira:
“A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena.Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto […]. (VIEIRA, 2013)
Foi assim que a minha alma ficou após as cortinas se fecharem – torturada, sentindo o açoite das cenas, em harmonia coma navalhada das falas. Cada ator tinha, entre os dentes, a língua ensanguentada pelo ódio das lâminas atravessadas no meio da boca.
Baseada no texto do dramaturgo grego Dimitris Dimiátridis, com a direção de Luciano Alabarse e Margarida Peixoto, a peça “A vertigem dos animais antes do abate” aborda a formação e a decadência de uma família conturbada pela sexualidade do patriarca, produzindo um turbilhão de paixões entre o casal, os filhos e um amigo.
A trama é atravessada por conflitos de toda ordem das paixões – amor, ódio, avareza, desejo, ira, ganância, inveja,arrogância, luxúria, fome de poder… – numa impressionante dinâmica cênica com final surpreendente, que resulta em ato extremo insinuado no título desse texto.
Pausa para o(a) leitor(a) me chamar de spoiler!
No teatro, a família esfacelada parece receber inspiração filosófica. É como se Nietzshe colocasse querosene na fogueira de Bakunin.
Escrita por um grego nascido em 1944 (Dimitris Dimiátridis) a peça bebe na fonte da tragédia grega clássica.
Como não sou crítico de teatro, fiz referência ao espetáculo apenas para falar sobre outras dimensões da tragédia -a vida comum das pessoas fora do palco.
Por diferentes caminhos, estilos e formas de expressão, o sentido da tragédia está presente tanto nos artistas eruditos quanto nos compositores populares. Ocorre que as distintas formas de apropriação das pulsações do mundo pelos artistas levam a produção cultural para ambientes separados: o bar cult e a choperia; o teatro acarpetado e apraça; o meio da rua e o palco sofisticado; o You Tube e o velho rádio.
Todos são válidos e refletem o espírito democrático da produção, distribuição e consumo dos bens culturais.
O brega e a sofrência, por exemplo, são manifestações precisas dos conflitos humanos, onde o amor é sempre acentralidade.
Em torno dele, o amor, circula um imenso caleidoscópio de sentimentos e motivações tantas.
Na música popular, aquela que toca nas quitandas, nos botecos, nas espeluncas das feiras, nas choperias, serestas, clubões e galpões de festa, barracões e terreiros, o amor é o mantra.
Com ele, circula uma atmosfera de sentimentos e atos: ciúme, traição, machismo, vingança, perdão, reencontro,decepção, interesse, desejo, sexo, poder e impotência, dinheiro, casamentos e divórcios, paz na cama, separações e reencontros, frustrações, volta por cima,opressão, exploração, submissão…
Esse é o manancial de sensações que permeia as músicas dominantes nas camadas populares.
A sofrência, por exemplo, percorre com maestria esse universo das subjetividades plenas de desejo, em versos fáceis,rimas previsíveis, acordes padronizados, bons de memorizar e repetir, cantar sem perceber, automaticamente.
A música popular industrial ou mesmo a produção artesanal transformada em hit de massa na era digital penetra no universo sensorial das pessoas em busca de fidelizá-las pelo coração, no sentido mais piegas para a tradução do amor.
Os temas das composições são sempre os mesmos, mas nunca perdem a majestade: o amor, na sofrência, só faz sentido se tiver conflito, frustração, contrariedade, dor … em uma palavra, tragédia!
As coisas do coração alimentam uma estética sonora fatal, precisa, direto ao ponto frágil – a crise conjugal, o amor não correspondido, relacionamento proibido ou incompatível pela posição social, dinheiro, as antíteses do casal, cenas de ciúme, desprezo, abandono,infidelidade, reconciliação e tantos outros lances.
A cada tempo, a indústria fonográfica ou alguém de fora do circuito comercial fabrica uma letra mágica, transformada em mantra nos programas de rádio, celulares, nas redes sociais, radiolas dos bares,carros sonorizados e shows ao vivo nas festas populares.
Se você, caro(a) leitor(a), andar pelos bairros de São Luís vai perceber enormes cartazes colados nas paredes anunciando festas grandiosas dos cantores de brega, sofrência e sertanejo universitário, apenas para ficar nesses exemplos.
Esses shows, às vezes produzidos até fora do circuito comercial, arrastam multidões.
O hit marcante o ano inteiro está sempre colado no tripé amor / traição / sofrimento.
2018 já tem um verso predominante, com um título formado apenas por duas letras: “Oi”, composição de Bruno Caliman e sucesso na voz de Leo Magalhães. O refrão, uma febre, é de uma simplicidade cruel:
“Toda vez que você me disser oi / Eu vou responder só oi”
Esta letra, como outras a cada época, virou epidemia musical. Toca em todos os lugares, independente da chamada grande mídia, às vezes sem o controle dos donos das gravadoras gigantes.
É a música temática daquilo que é latente na vida comum: “chifre”, escracho, deboche, a fofoca d@s feirantes, as futricas da vizinhança, o papo predileto dos homens no balcão do bar, a resenha da quitanda, o papo em volta do jogo de dama e dominó ou depois do jogo de futebol e dos fuxicos dos homens bisbilhoteiros que não curtem esporte.
Sem qualquer pretensão de escrever sobre teatro, tema que desconheço, tomei a peça citada apenas para abordar outro tipo de tragédia – a música consumida nos meios populares, o lugar onde,concretamente, um processo de indústria criativa se alastra, capaz de produzir fenômenos como Reginaldo Rossi e Amado Batista, este último colecionador de prêmios e tantos discos de ouro e platina.
Eis o som da malemolência, da pilantragem e da malandragem, dos homens e mulheres vadios (no sentido filosófico da vadiagem)…. É o hit da sacanagem, da traição pela frente e por traz, da raparigagem e do tomamento de gosto com a pessoa proibida.
A traição refinada na tragédia grega é a raparigagem da sofrência. O cult sofisticado e o trivial comem o mesmo alimento espiritual – as paixões e as suas deformações.
Ou mutilações. O pênis decepado no teatro é a imagem e semelhança do homem ou mulher impotente, traído(a)! Ele geralmente vai para a mesa de bar e finaliza a farra madrugada adentro, com uma cerveja quente, derrotado por si mesmo, diante da incapacidade de amar ou ser amado.
Certas melodias suscitam amputação. É oque se costuma dizer sobre determinado padrão denominado “música de cortar pulso”.
Ao final de um processo grotesco de aniquilação do casamento e da família, o patriarca na peça “A vertigem dos animais antes do abate” decepa o próprio pênis, apontando o seu órgão genital -a representação da virilidade – como responsável pela sucessão de tragédias.
No teatro, o pênis, participante da cópula que engendra a criação, é um objeto sexual propagador da destruição de uma família inteira por crime e loucura.
A instituição familiar, um dos pilares da sociedade burguesa, foi implodida no teatro grego.
Outras tantas tragédias cotidianas são narradas pela música do meio popular, falando sobre a vida comum e as dores do amor.
Sofrência, foi a tragédia que te pariu!
Leia mais sobre a peça “A vertigem dos animais antes do abate aqui e aqui
Imagem: recorte do cartaz da peça “A vertigem dos animais antes do abate”, retirada dese site