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Horror e esplendor nas caminhadas de Walt Whitman pela América

Para ler e ouvir. O poeta Celso Borges resenha e interpreta trechos da obra Dias exemplares, do escritor Walt Whitman, fundador da poesia moderna americana com Folhas de relva. Ao navegar na leitura de Dias exemplares, Borges encontra a catarse de WW nas páginas de um livro em que o autor relata os horrores da Guerra de Secessão e posteriormente as belezas naturais dos Estados Unidos

Veja abaixo a resenha e ouça os trechos de Dias exemplares

Celso Borges

Andei tateando esperança nos últimos dias e a encontrei depois de um café com afeto na casa do amigo Fernando Abreu. Ela estava num pequeno livro que ele me emprestou, Dias exemplares, reunindo os diários de Walt Whitman (1819-1892) sobre suas caminhadas pela América do Norte no século 19, entre 1863 e 1882. A radiografia telúrica dos passos do bardo libertário pelos Estados Unidos está numa linda edição numerada, de 2019, da editora Carambaia, com tradução e posfácio de Bruno Gambarotto.  

Na época em que esses diários foram lançados pela primeira vez, em 1882, eles foram recebidos como um volume gêmeo de Folhas de relva, obra fundadora da poesia moderna americana, que Walt Whitman praticamente reescreveu durante toda a vida. Publicado inicialmente em 1855, Folhas de relva teve outras seis edições, a última delas em 1881.

Dias exemplares começa em 1863 como um projeto de narrativa sobre a Guerra da Secessão (1861-1865), que aboliu a escravatura nos Estados Unidos, mas matou milhões de americanos. Naquele momento, Whitman é, nas palavras de Bruno Gambarotto, “o enfermeiro (wound-dresser), bardo instalado no coração do país dilacerado para cuidar de suas chagas, que substitui o poeta provocador de 1855, o sábio de 1856 e o dândi desiludido de 1861”.

Livro traduz guerra e paz na escrita de Walt Whitman

A guerra devastou o país. Whitman percorre acampamentos, hospitais e enfermarias, de norte a sul, visitando e conversando com os soldados, muitos deles próximos da morte. Quase toda a primeira parte do livro relata esses dias dolorosos e posso, por isso, chamá-los de Diários de Guerra. A forma como o poeta trata e acompanha os americanos feridos é comovente. Whitman fala com ternura com alguns deles, leva-lhes conforto, às vezes um pedaço de biscoito, uma flor, frutas, doces. Outras vezes escreve para os parentes dos soldados. Todo esse sentimento se transfere para a prosa demasiadamente humana, que percorre as páginas do diário.

A verdadeira guerra nunca entrará nos livros, anuncia o poeta na página 139:

Os anos do futuro jamais conhecerão o inferno fervilhante o negrume do pano de fundo infernal das incontáveis cenas menores e interiores da Guerra da Secessão; e é melhor que não o conheçam – a guerra real nunca entrará nos livros. Nas influências piegas dos tempos atuais, também, a atmosfera nervosa e os eventos típicos daqueles anos correm o risco de ser totalmente esquecidos. Passei noites em vigília ao lado de um homem doente no hospital, alguém que não sobreviveria muitas horas. Vi seus olhos brilharem e arderem enquanto se levantava e recobrava as crueldades infligidas ao seu irmão rendido e as mutilações do cadáver depois…….

Essa foi a guerra. Não foi uma quadrille em um salão de baile….

Whitman adoece durante a secessão, tem crises de fraqueza, tontura. Isso se intensifica nos anos seguintes, culminando com um derrame cerebral, em 1873, que o deixa coxo. 1874 e 1875 são dois anos difíceis, de recuperação lenta, mas que traz bons resultados. O poeta passa semanas a fio, meses inteiro no campo, num local recluso e rural ao longo do riacho Timber, afluente do rio Delaware. Ali fica na casa dos amigos Stafford, entre o riacho, campos e trilhas próximas.

Do horror ao esplendor

Whitman não voltará a se locomover como antes, mas retoma, em 1876, suas caminhadas e, com ela, a segunda parte dos Dias exemplares, que nomeio como Diários da Natureza. Neles, saúda a exuberância da paisagem americana, viajando e passeando nos seis anos seguintes, entre lagos, montanhas, vales e pradarias. A pé, de barco ou de trem, atravessa a América com seus rios volumosos, entre eles o Mississipi e o Delaware, sob o manto de estrelas cintilantes em meio às constelações de Orion, Ursa maior, Escorpião, Touro, a Aurora Boreal, a rubra Aldebarã e outros quadrantes de luz.

Walt Whitman pousa o corpo e os olhos na América rural. No contato com a natureza, busca recuperar o vigor perdido nos anos anteriores. O que tem à frente durante os longos passeios é o espetáculo maior da mãe terra com suas revelações de luz, brisas de setembro roçando as copas das arvores. Ora ouve um passarinho cantando ao longe embalado pelo silêncio ao redor, ora vê deslumbrado um arco-íris se levantando no fundo do céu quando o vento mudou de direção e as nuvens rapidamente se abriram como cortinas.

Tudo parece divino nesses dias exemplares. Deslumbrado, o poeta é capaz de ouvir grilos e gafanhotos a 200 pés de distância, enquanto se veste de sombras entre álamos, nogueiras e carvalhos no exercício de sua prosa diária. Toma banhos nus e solitários e enumera listas de flora e fauna, que ouve e vê no corpo colorido e libertador da natureza que o cerca. Na página 214 saúda as flores silvestres:

… oceanos delas dão contornos às estradas através dos bosques, demarcam os limites dos cursos d’água, crescem ao longo das antigas cercas e espalham-se em profusão sobre os campos. É muito comum ver uma flor de oito pétalas amarelo-ouro, clara e brilhante, com um tufo marrom no centro, quase tão grande quanto um meio dólar de prata; ontem em um longo percurso, observei que elas ocupavam densamente as margens dos riachos por toda a parte. Há também um lindo mato coberto de flores azuis (o azul das velhas xícaras chinesas bastante estimadas por nossas tias-avós), que sempre paro para admirar… Deixe-me dar os nomes de algumas dessas flores perenes e ervas amigáveis que conheci por aqui em uma ou outra estação em minhas caminhadas:

Azaléia silvestre, madressilva silvestre, rosas silvestres, varas-de-ouro, erva piolheira, açafrão da floresta, lírio do charco, trombeta, manjerona cheirosa, ageratina, selo-de-salomão, erva cidreira, hortelã, gerânio silvestre, heliotrópio silvestre, bardana, dentes-de-leão, feiterinha, coreópsis, ervilha silvestre, madressilva, sabugueiro, caruru-de-cacho, girassol, camomila, violetas, clemátis, sanguinária, magnólia, asclépia, margarida silvestre, crisântemo silvestre.

Enquanto lia as páginas desse Dias Exemplares, tentei de alguma forma me transportar para a exuberância daquela luz que aquece o corpo do poeta enquanto ele ouve os assovios que o circundam e o embalam e sente na pele os ventos americanos. A intensidade dessa percepção, tanto da guerra quanto da natureza, me levou a gravar algumas páginas desse diário, me aproximando mais uma vez do espírito poético desse artista que descobri no começo dos anos 1980, traduzido por Geir Campos, num pequeno volume da coleção Cantadas Literárias, da editora Brasiliense.

A partir desse encontro, WW tornou-se para mim uma referência cada vez mais libertadora do verso livre que ele inaugura e que se seria um instrumento importante e definitivo para a poesia que se espalhou pelo mundo no século 20.

Áudios do horror: Diários da Guerra

Um soldado de Nova York

A morte de um herói

Um soldado ianque

Áudios do esplendor: Diários da Natureza

Pequenas cenas de outono

O céu – dias e noites – felicidade

Dias e noites do verão maduro

Melhor vista das cataratas do Niágara

https://youtu.be/pTrHEPyr3jo

Calor em Nova York

Imagem destacada / divulgação / Walt Whitman / capturada neste site

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Base de Alcântara: ameaçados de expulsão, quilombolas querem ficar em casa, no Maranhão

Reportagem publicada originalmente no Uol

Ed Wilson Araújo

Colaboração para Ecoa, em São Luís

04/04/2020 04h00

O visual tranquilo da praia de Mamuna, no município onde vive a maior população quilombola do país, tem um vizinho incômodo. Do alto das dunas e de frente para o mar é possível ver, do lado direito, a cobiçada plataforma do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão.

Mamuna e as outras povoações do Território Quilombola de Alcântara foram surpreendidas na semana passada com a resolução federal publicada no Diário Oficial da União em 27 de março. Assinada pelo general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República e coordenador do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB), a Resolução nº11 ordena “providenciar, por meio do Comando da Aeronáutica, a execução das mudanças das famílias realocadas, a partir do local onde hoje residem e até o local de suas novas habitações, incluindo o transporte de pessoas e semoventes [animais domésticos]”. Na prática, a medida pode expulsar de seus lares 300 famílias.

Nenhuma ação oficial sobre a remoção de quilombolas havia sido anunciada até então, embora a liberação do uso comercial da base de Alcântara por meio do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), em vigor desde dezembro e firmado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos em março, já inquietasse há tempos a população local.

Torre do Centro de Lançamento de Âlcantara, no Maranhão (14/09/2018) - Evaristo Sá / AFP
Torre do Centro de Lançamento de Âlcantara, no Maranhão (14/09/2018)Imagem: Evaristo Sá / AFP

Recebida em meio a preocupações sobre o impacto do novo coronavírus nas comunidades, a notícia provocou alvoroço entre os moradores. A resolução determina ações de nove ministérios para efetivar a mudança, mas não estipula prazo nem o número de famílias a serem removidas.

“Em um momento em que ninguém esperava, sai uma resolução dessa e as pessoas ficam aflitas, nervosas, chegando até a adoecer – Dorinete Serejo, moradora da comunidade Canelatíua e coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe)”

Caberá ao Ministério da Agricultura, por meio do Incra, apontar “frações do terreno compatíveis com os reassentamentos de cada comunidade quilombola, considerando, para fins de planejamento, que a área de consolidação do Centro Espacial de Alcântara será desocupada”, detalha o documento.

Quilombolas não foram consultados

Representantes de várias organizações quilombolas contestaram a resolução, argumentando que a remoção só pode ser feita após consulta às comunidades, seguindo as determinações da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados”, diz o artigo.

Durante o trâmite do acordo para o uso comercial da base espacial de Alcântara, em fevereiro, houve pouco diálogo junto aos moradores. Mas a remoção dos quilombolas não havia sido, ainda, mencionada pelos interlocutores do governo federal.

“Tentamos de todas as formas negociar com as autoridades federais, o governador [Flávio Dino, PCdoB], a bancada maranhense e o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (Democratas). Antes de votar a AST, nós queríamos que as comunidades fossem consultadas para a gente colocar dispositivos de proteção ao território”, diz o antropólogo Davi Pereira Junior. Nascido em Itamatatíua, uma das comunidades mais antigas do Maranhão, ele assessora os territórios quilombolas da região.

Dorinete Serejo, moradora da comunidade Canelatíua e coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) - Arquivo Pessoal
Dorinete Serejo, moradora da comunidade Canelatíua e coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe)Imagem: Arquivo Pessoal

A coordenadora do Mabe, Dorinete Serejo, acompanha a relação conflituosa entre os interesses do programa espacial e os das comunidades descendentes de matriz africana há 40 anos. “Nunca tivemos de bater frente a frente, mas se enfrentando pelos caminhos legais, com audiências, reuniões, conscientizando e levando esclarecimento para as comunidades.”

Nessa peleja, organizações locais sistematizaram o Protocolo Comunitário sobre Consulta Prévia, Livre e Informada das Comunidades, um documento com o objetivo de subsidiar e orientar as tratativas com o Estado acerca do Território Quilombola de Alcântara. Assinado por 197 comunidades, o protocolo trata como cláusula “pétrea” o procedimento de consulta, estabelecido na Convenção da OIT e assegurado pela lei brasileira.

Por que a localização interessa

Estrutura do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão (14/09/2018) - Pedro Ladeira / Folhapress
Estrutura do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão (14/09/2018)Imagem: Pedro Ladeira / Folhapress

O Centro de Lançamento de Alcântara é cobiçado pela engenharia aeroespacial pela localização geográfica próxima à linha do Equador, proporcionando economia de combustível do foguete, pelas boas condições climáticas, pela estabilidade geológica e pelo suporte logístico com acesso a São Luís.

Analistas políticos veem ainda a motivação dos Estados Unidos para controlar uma base espacial de posição estratégica na América do Sul, com o acordo comercial firmado entre os países e o consequente apoio dos EUA para a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Entre os 18 integrantes da Câmara Federal e os três senadores do Maranhão consultados para o acordo, apenas o deputado Bira do Pindaré (PSB) votou contra. Presidente da Frente em Defesa das Comunidades Quilombolas, o parlamentar ingressou com um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) visando sustar os efeitos da Resolução nº 11, e diz que vai acionar medidas judiciais para assegurar os direitos das famílias ameaçadas de remoção.

“Não havia nenhuma garantia diante daquela decisão da Câmara Federal [com o AST] de que as pessoas teriam a preservação dos seus territórios – Bira do Pindaré, deputado federal (PSB-MA)”

Embora a bancada federal tenha avalizado o acordo, o Governo do Maranhão, por meio da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular, divulgou no dia seguinte à publicação da resolução, 28 de março uma nota repudiando o remanejamento.

“É inaceitável repetir equívocos do passado recente, em eventual novo remanejamento, quando sequer foram solucionados os passivos de implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Instamos o Governo Federal a reconhecer e respeitar o direito das comunidades quilombolas ao seu território, investindo em tecnologias que permitam a convivência pacífica, colaborativa e contributiva entre os quilombolas e o Programa Aeroespacial Brasileiro”, assinou o secretário Francisco Gonçalves da Conceição.

Famílias e culturas em risco

A remoção pode alcançar 30 comunidades com aproximadamente 300 famílias, totalizando cerca de 1 mil pessoas — o município todo tem 22 mil habitantes. Quem afirma é o antropólogo Davi Pereira Junior. Nascido em Itamatatíua, uma das comunidades mais antigas do Maranhão, ele assessora os territórios quilombolas da região. No levantamento feito junto às organizações locais, o antropólogo estima o impacto total sobre 800 famílias, considerando a tendência de assentar os removidos em áreas já povoadas por outras comunidades no município.

A história da base de Alcântara se prolonga desde a década de 1980, com uma série de episódios. Na foto, a família de José Silva e Margarida Raimunda de Araújo na agrovila do Cajueiro, em 2002. Em 1985, o governo transferiu os moradores de um quilombo na região para a instalação da base. Em 2002, os membros da comunidade relataram que as terras para onde foram transferidos eram improdutivas - Jorge Araújo/Folhapress
A história da base de Alcântara se prolonga desde a década de 1980, com uma série de episódios. Na foto, a família de José Silva e Margarida Raimunda de Araújo na agrovila do Cajueiro, em 2002. Em 1985, o governo transferiu os moradores de um quilombo na região para a instalação da base. Em 2002, os membros da comunidade relataram que as terras para onde foram transferidos eram improdutivasImagem: Jorge Araújo/Folhapress

Em Alcântara, a presença de comunidades negras rurais, formadas por descendentes de africanos escravizados, vem de ao menos dois séculos atrás. No início da década de 1980, ainda na ditadura militar, ocorreu a primeira remoção de comunidades tradicionais para a implantação do CLA. Naquele período houve a desapropriação de 52 mil hectares e o deslocamento de 312 famílias originárias de 23 povoados do litoral, transportadas para sete agrovilas construídas pela Aeronáutica, nas proximidades da sede do município.

Pautada em muito trabalho na pesca, na agricultura familiar, no extrativismo e na criação de animais, a sobrevivência de mulheres e homens do meio rural pobre está diretamente relacionada à quantidade e à qualidade dos recursos naturais. Quando uma família é deslocada do quilombo para a agrovila ocorrem várias mudanças no modo de viver, principalmente na aquisição dos alimentos, comprometendo a segurança alimentar.

Os deslocamentos compulsórios interferem ainda no desmantelamento dos laços familiares e das práticas culturais. Em várias comunidades quilombolas as religiões de matriz africana estão presentes em cultos e terreiros. A iyalorixa Jô Brandão, integrante do Fórum de Mulheres de Axé da Renafro (Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde), classifica Alcântara como terra de encantarias. A Pedra de Itacolomi, exemplifica, é um lugar de oferendas de tantos terreiros do Maranhão, principalmente o tambor de mina.

Nesse contexto, a remoção de uma comunidade envolve também relações com a natureza, os meios de produção, a religiosidade, as práticas e os saberes passados em gerações. “Se os humanos não estão sendo respeitados em dizer que não querem ser deslocados, imagine você escutar ancestrais que são invisíveis, sobrenaturais e respondem de forma diferente na relação com a espiritualidade, a natureza e as pessoas”, compara.

“Nos preocupa muito a resolução porque subentende que não haverá respeito aos templos nem às práticas religiosas das comunidades de terreiro nos quilombos – lyalorixa Jô Brandão, integrante do Fórum de Mulheres de Axé da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde”

Regularização fundiária parada

Enquanto a aprovação do acordo para liberação comercial ocorreu em tempo recorde, a regularização fundiária das áreas se arrasta em um processo judicial. O advogado especialista em direitos humanos Diogo Cabral menciona quatro décadas de conflito envolvendo os quilombolas e as sucessivas gestões na Presidência da República. Entre poucos avanços e muitos recuos, ele cita um progresso em 2008, quando o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado pelo Incra assegurou ao Território Quilombola de Alcântara uma área de 78,1 mil hectares e reservou ao CLA 9,3 mil hectares.

Quando tudo parecia favorável ao andamento da titulação, em abril de 2010 a medida foi contestada pelo Ministério da Defesa e pela própria Aeronáutica. “Ambos requereram a instauração da Câmara de Conciliação da Arbitragem Federal da AGU (Advocacia Geral da União) e a suspensão do processo de titulação”, explica Cabral.

Segundo o advogado Eduardo Corrêa, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, a regularização fundiária é um passo fundamental para assegurar a permanência das comunidades tradicionais nas suas áreas de origem. Apesar das sucessivas cobranças, judicialização e lutas políticas, a titulação está parada no tempo.

Paralisada também ficou a gigantesca obra da empresa binacional Alcântara Cyclone Space, uma parceria entre o Brasil e a Ucrânia com o propósito de comercializar e lançar satélites do CLA por meio do foguete espacial Cyclone-4, de tecnologia ucraniana. Criada em 2003, a empreitada consumiu R$ 483,9 milhões do Brasil, segundo auditoria do Tribunal de Contas da União, mas a obra não foi concluída e nenhum lançamento chegou a ser feito, rendendo ao foguete o apelido de “sucata espacial”. Em abril do ano passado, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (Democratas), promulgou lei extinguindo a empresa.

No mesmo ano de 2003, uma explosão no CLA matou 21 técnicos civis que trabalhavam na operação de lançamento do Veículo Lançador de Satélite (VLS-3).

Embora não determine o prazo para a remoção dos quilombolas, a Resolução nº 11 estabelece a próxima reunião plenária do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro em 20 de agosto de 2020. Até lá, iniciativas judiciais e políticas dos movimentos sociais, no Congresso Nacional, no Ministério Público da União e de outras instituições devem ser tomadas para anular as medidas anunciadas pelo governo federal, garantindo a permanência das famílias.

Na quarta-feira (1), a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal pediu que o CDPED não desloque famílias quilombolas de Alcântara, sobretudo neste momento. Em acordo firmado na quinta-feira (2) entre representantes do GSI e do MPF, o governo se comprometeu a não fazer as remoções durante a pandemia.

Imagem destacada: Comunidade rural quilombola no Maranhão / Luís Henrique Wanderley / Agência de Notícia do Estado do MA

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Sociólogo Atílio Boron explica as motivações do golpe na Bolívia

O golpe na Bolívia: cinco lições
por Atilio A. Boron, via GGN
Tradução de Roberto Bitencourt da Silva

A tragédia boliviana ensina, eloquentemente, várias lições que nossos povos e nossas forças políticas e sociais populares devem aprender e registrar em suas consciências para sempre.

Aqui, uma breve enumeração, em tempo real, e como um prelúdio para um tratamento mais detalhado no futuro.

Primeiro, não importa o quanto a economia seja administrada de maneira exemplar, como o fez o governo de Evo, o crescimento, a redistribuição, os fluxos de investimentos são garantidos e todos os indicadores macro e microeconômicos são aprimorados, a direita e o imperialismo nunca aceitarão um governo que não serve a seus interesses.

Segundo, precisamos estudar os manuais publicados por várias agências americanas e seus porta-vozes disfarçados de acadêmicos ou jornalistas para poder perceber os sinais ofensivos a tempo.

Esses escritos invariavelmente destacam a necessidade de destruir a reputação do líder popular, que no jargão especializado é chamado de assassinato do personagem, como ladrão, corrupto, ditador ou ignorante.

Essa é a tarefa confiada aos comunicadores sociais, auto-proclamados como “jornalistas independentes”, que em favor de seu controle quase monopolista da mídia, moldam o cérebro da população com tais difamações, acompanhadas, no caso em questão, por mensagens de ódio dirigido contra os povos nativos e os pobres em geral.

Terceiro, atendidos os parâmetros e as ações expostas acima, é a vez da liderança política e das elites econômicas reivindicarem “uma mudança”, encerrando a “ditadura” de Evo que, como escreveu o notório escritor peruano Mario Vargas Llosa, há alguns dias, é um “demagogo que quer se eternizar em poder “.

Suponho que Llosa estará brindando com champanhe em Madri quando ver as imagens das hordas fascistas saqueando, queimando, acorrentando jornalistas a um poste, raspando a cabeça de uma prefeita e pintando-a de vermelho, destruindo as atas da última eleição para cumprir o mandato de dom Mario e “libertar a Bolívia de um demagogo do mal”.

Menciono o caso dele porque foi e é o imoral porta-estandarte desse ataque vil, desse crime sem limites que crucifica as lideranças populares, destrói uma democracia e instala o reino do terror encarregado de gangues contratadas para repreender um povo digno que a audácia de querer ser livre.

Quarto: as “forças de segurança” entram em cena. Nesse caso, estamos falando de instituições controladas por várias agências, militares e civis, do governo dos Estados Unidos.

Eles os treinam, os armam, fazem exercícios conjuntos e os educam politicamente. Tive a oportunidade de verificar quando, a convite de Evo Morales, abri um curso sobre “Anti-imperialismo” para oficiais superiores das três armas.

Naquela ocasião, fiquei envergonhado pelo grau de penetração dos slogans americanos mais reacionários herdados da era da Guerra Fria e pela irritação indiscutível causada pelo fato de um indígena ser presidente do seu país.

O que essas “forças de segurança” agora fizeram foi sair de cena e deixar o campo livre para o desempenho descontrolado das hordas fascistas – como as que agiram na Ucrânia, na Líbia, no Iraque, na Síria para derrubar ou tentar fazê-lo em neste último caso, líderes incômodos para o império – e assim intimidam a população, a militância e o governo.

Ou seja, uma nova figura sociopolítica: o golpe militar “por omissão”, permitindo que as quadrilhas e os bandos reacionários, recrutados e financiados pela direita, imponham a sua lei.

Uma vez que o terror reina e ante a impotência, ou incapacidade de defesa, do governo, o resultado era inevitável.

Quinto, a segurança e a ordem pública nunca deveriam ter sido confiadas na Bolívia a instituições como a polícia e o exército, colonizadas pelo imperialismo e seus lacaios da direita indígena.

Quando foi lançada a ofensiva contra Evo, o governo optou por uma política de apaziguamento e não de resposta às provocações dos fascistas. Isso serviu para encorajá-los e aumentar a aposta: primeiro, exija segundo turno; depois, fraude e novas eleições; a seguir, eleições, mas sem Evo (como no Brasil, sem Lula); depois, renúncia de Evo; finalmente, dada a sua relutância em aceitar chantagens, semeie o terror com a cumplicidade da polícia e das forças armadas e force Evo a renunciar.

Do manual, tudo do manual. Vamos aprender essas lições?

Atilio A. Boron – Sociólogo argentino, com doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard, professor da Universidade de Buenos Aires. É autor de diversos e importantes livros.

Imagem destacada: Evo Morales renunciou após pressão da elite local e dos Estados Unidos / Foto: Agência Brasil

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ONU deveria adotar o programa “Mais Médicos” para a humanidade

Um espectro ronda o mundo. Cuba, um país boicotado pela ditadura dos Estados Unidos, ainda consegue ser escola de referência em uma das profissões mais caras, requisitadas e cobiçadas no mundo inteiro – a Medicina.

Ao exportar médicos para tantos países, Cuba poderia ser elevada à condição de multinacional da saúde pública, gratuita e de qualidade, atendendo principalmente aqueles que mais precisam.

Esse é o debate principal: saúde não é mercadoria.

Por isso Cuba incomoda tanto. Um país que sobrevive ao bloqueio econômico internacional ainda consegue desenvolver expertise na formação de uma elite de profissionais, alimentar e educar suas crianças e ter bom desempenho nos esportes.

E, de sobra, criar uma escola internacional de cinema e televisão, referência na produção audiovisual do mundo.

Isso tudo acontece em um país permanentemente boicotado e ameaçado pela ditadura imperialista estadunidense, seja ela regida por Barack Obama ou Donald Trump.

Há uma tese na elite econômica internacional: Cuba não pode dar certo. É preciso demonizar este país que foge à lógica do mercado e da agenda neoliberal.

Vem daí o denuncismo e o veto a todas as parcerias estratégicas do Brasil na América Latina e na África, visando impedir a costura de um núcleo de poder econômico entre os países mais pobres.

A gente não vê na televisão e não conhece as agendas positivas de Cuba porque as agências internacionais de notícias boicotam, censuram e dificultam a circulação de informações sobre a ilha.

Cuba só é notícia sob o enquadramento da Prisão de Guantánamo, de uma ditadura exótica ou do turismo caro para estrangeiros.

Então, é o caso de pensar e refletir sobre as contradições e os critérios de noticiabilidade: Cuba se fechou porque quis ou devido ao bloqueio econômico internacional?

A longevidade do partido comunista no poder, associado ao sentido de ditadura, se tem erros, jamais pode ser comparada à ditadura internacional dos Estados Unidos, seja em território cubano ou em qualquer lugar do planeta.

Vamos pensar juntos. Qual regime e modelo econômico é mais nocivo à humanidade? O imperialismo dos Estados Unidos ou o socialismo à cubana?

Enquanto os Estados Unidos fabricam guerras mundo afora, matando milhões de pessoas para alimentar os lucros da indústria de armas, Cuba exporta médicos para salvar vidas.

Quais iniciativas são mais produtivas ao planeta? A cobiça incontrolável das multinacionais que destroem o meio ambiente, escravizam e matam pessoas ou o atendimento do médico cubano aos ribeirinhos da Amazônia?

Cuba retém parte da remuneração dos médicos para que possa haver mais investimentos na formação dos profissionais. Isso não tem qualquer relação com escravidão.

Educação e Saúde pública são tratadas como política de Estado, não relacionadas ao lucro, universalizadas para qualquer cidadão cubano.

O que rege a política de Saúde e Educação é a lógica humanitária e não a do lucro que enriquece os hospitais privados e desmonta o SUS, tendência predominante no Brasil.

Por tudo isso, a ONU deveria adotar o programa Mais Médicos como parâmetro de Medicina solidária para atender às pessoas desamparadas em todo o planeta.

O ataque ao programa “Mais Médicos” (sob o argumento de que os cubanos eram escravizados no Brasil) é tão desprovido de fundamento que até alguns eleitores de Jair Bolsonaro discordaram do “messias”.

Sinal de que o Brasil ainda tem salvação e pode levar essa fatia do eleitorado a pensar sobre as diferenças de concepção.

Os argumentos a favor, por sua vez, são masoquistas. Bolsomínios ferrenhos queixam-se da taxação sobre os médicos de Cuba, mas calam diante da extorsão do Bradesco nas suas contas.

Estes mesmos seres humanos que reclamam de Cuba engolem a língua para os juros altos no Brasil e silenciam diante dos sucessivos aumentos nos planos de saúde, no gás, na energia elétrica e no reajuste exorbitante nos salários dos ministros do STF.

É preciso internacionalizar Cuba no que este país tem de bom: a expertise na Medicina e a universalização da Educação. E deixar de lado seus defeitos: o mando de um só partido e a imprensa única.

Democracia, com todas as imperfeições, é o melhor caminho.

Cuba é uma ideia necessária ao contraponto neoliberal.  E o Mais Médicos a prova concreta de que Educação transforma. E a submissão ao imperialismo só vai produzir mais miséria no mundo.

É preciso manter acesa a chama da utopia, perseverar nas diferenças e afirmar as boas experiências que tanto incomodam aqueles que se julgam donos do mundo e senhores absolutos do poder.

Imagem: Raul Hernandez trabalha em São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, através do programa Mais Médicos (Foto: Karina Soares)