Categorias
notícia

Chico Discos: sebo de esquerda tem um inusitado cliente bolsonarista

Ed Wilson Araújo

No térreo de um dos sobrados mais encantadores do Centro Histórico de São Luís, decorado com livros, discos de vinil, CDs, capas de DVDs, revistas e tantos outros objetos retrô, um homem baixo, calvo, de voz mansa e óculos com aros retangulares prepara lentamente a massa de um delicioso pão de queijo, ao som de Antônio Nóbrega, rodando em uma sofisticada vitrola.

Acompanhado de café, uma das especialidades da casa, o lanche e a conversa são calmantes para o corre da cidade. No cruzamento das ruas São João e Afogados, número 393/397, o casarão azul, oxigenado por janelões, é pilotado por Francisco de Assis Barbosa, 63 anos, aposentado.

O café do Chico Discos é uma das atrações da casa. Foto: Instagram @chicodiscos

Nascido no município de Peri-Mirim, na Baixada Maranhense, ele migrou para São Luís aos 14 anos de idade. O gosto por livros vem desde os anos 1980, quando freqüentava as bancas e os sebos extintos da avenida Magalhães de Almeida, na parte velha da cidade. “Antonio dos Prazeres era o que mais vendia livros, não pelo título, mas pela espessura da obra. Alguns até tinham conhecimento dos autores, mas tem dono de sebo que não gosta de leitura”, compara.

Dois outros sebos – Papiros do Egito e Poeme-se – fizeram parte da sua formação de livreiro. Desde então virou um leitor compulsivo “dos clássicos russos aos brasileiros”, pontua. Uma das suas leituras preferenciais, na atualidade, é o chileno Roberto Bolaño, autor de “Os detetives selvagens” e “2666”.

Com o tempo, Francisco Barbosa virou Chico Discos, um empreendimento que já passou por quatro endereços. Tudo começou em março de 2005, na Fonte do Ribeirão, com um sebo e locadora de DVD. Mudou para a rua 7 de Setembro, em 2008; e ficou dois meses na rua dos Afogados, até fincar raízes no atual endereço.

PROMISCUIDADE CULTURAL

Ainda não há um consenso sobre os usos da expressão sebo. Ela pode servir para designar algo surrado, como os velhos cadernos de anotações de compra a crédito (os fiados) nas quitandas de feira.

Decoração atrai também pessoas interessadas em selfie. Foto: Instagram @chicodiscos

A pessoa que lida com sebo é também designada como alfarrabista ou vendedor de obras antigas. No geral, o lugar do comércio ou troca livros usados faz referência a algo ensebado ou velho de tanto uso e manipulação ao longo do tempo. Sebo é lugar de coisas sebosas, mas geralmente freqüentado por gente asseada.

O proprietário define o Chico Discos como “sebo promíscuo”, lugar onde se compra, vende e troca livros usados e discos de vinil. Além de sebo e livraria, o ambiente é um bar, cafeteria, cachaçaria e livraria, porque também vende livros novos.

Vez por outra o sobrado instagramável recebe eventos “só para amigos seletos”, alerta Barbosa. Entre eles, os mais antigos. “Por exemplo, gente que era estudante quando ia ao sebo na Fonte do Ribeirão e hoje é professor universitário”, detalha. Mas o ambiente é freqüentado por uma clientela variável. “Alguns vêm aqui só para tirar foto, tomar café, beber ou procurar obras exigidas para as provas de Língua Portuguesa e Literatura nas universidades públicas”, explica.

Tem sempre música boa tocando no ambiente. Foto: Instagram @chicodiscos

Leitor contumaz, ele manifesta a óbvia preferência por vender livros, mas revela que as bebidas, os lanches e os petiscos têm boa procura. Em 2005, antes da sua aposentadoria, ele tirou um ano de licença sem vencimento para se dedicar integralmente ao sebo. Indagado sobre a viabilidade do empreendimento, vai direto ao ponto: “Não tem romantismo no comércio. Livro é mercadoria.”

MARANHÃO: POTÊNCIA EDITORIAL

A frase emblemática do sebista remete à São Luís do passado, quando havia um vasto mercado livreiro turbinado pela máquina de produção editorial das tipografias e a pujança dos jornais impressos. A obra de doutorado de Roberto Sousa Carvalho, “Maranhão, província tradutora: livros e tradutores em São Luís do séc. XIX”, publicada pela Editora da UFMA (2022), apresenta argumentos e dados estatísticos sobre o expressivo movimento intelectual focado na tradução de grandes obras literárias publicadas na Europa, principalmente. 

“A participação de tradutores na vida editorial da cidade de São Luís, durante o século XIX, é forte indicativo de que o especializado trabalho que realizaram ia muito além da simples necessidade de títulos estrangeiros ditada pelo mercado editorial – negócio livreiro, aliás, que apenas se iniciava no Brasil. Daí a assunção: o trabalho de tradução, em solo maranhense, permite que se o encare como resultante de uma orientação de caráter coletivo, tamanha a quantidade de especialistas que labutaram nesta seara.”. (CARVALHO, 2022, p. 20)

Pesquisa de doutorado resultou no livro “Maranhão, província tradutora”

“Cerca de 45 tradutores maranhenses verteram para a língua portuguesa 266 títulos, sem computar outras 97 traduções de não nascidos na Província e de anônimos, o que fez São Luís se equiparar ao Rio de Janeiro, porque foram as únicas províncias brasileiras a se destacar no campo da tradução, no século XIX.” (CARVALHO, 2022, p. 41)

Figuram entre os tradutores Odorico Mendes, Sotero dos Reis, Cândido Mendes, Gonçalves Dias, Estevão Rafael de Carvalho, Felipe Conduru, Antonio Rego, Pedro Nunes Leal, José Ricardo Jauffret, Cesar Marques, Joaquim de Sousa Andrade (Sousândrade), Henriques Leal etc.

Edição de “Os miseráveis” é uma das preciosidades da coleção de livros raros do pesquisador Roberto Carvalho

Havia ainda os tradutores anônimos. Poucos meses depois de publicado na França, em 1862, o clássico “Os miseráveis”, de Victor Hugo, já estava convertido para o português, em São Luís, através de uma parceria entre as tipografias de Belarmino de Mattos e de Corrêa de Frias, informa o escritor Roberto Carvalho, apontando o detalhe: “Os miseráveis” ludovicense não tem a identificação do tradutor.

Para saber mais sobre os tradutores, acesse aqui o podcast Escuta Ciência.

A TRÓIA DE NAURO MACHADO

A pesquisa de Carvalho corrobora também o desmonte de uma versão equivocada sobre São Luís ser a “Atenas Brasileira”, quando apenas uma fração da elite local sabia ler e escrever, em uma cidade onde a maioria da população era analfabeta, ainda no contexto da escravidão.

Denominar-se “Atenas Brasileira” nunca foi exclusividade da província do Maranhão. Algumas cidades, revela Carvalho, atribuíam-se o título relacionado à urbe intelectual grega.

“Em uma rápida inspeção nos jornais brasileiros do oitocentos, verificaremos que aparecem o qualificativo Atenas Brasileira para outras cidades/províncias. Este é o caso, por exemplo, de São Paulo e Bahia. Ao que se percebe, o título é uma referência genérica, emprestado a algumas localidades por alusão aos intelectuais e às suas produções, assim como porque sediaram instituições científicas-educacionais de destaque.” (CARVALHO, 2022, p. 20)

Para o poeta Nauro Machado, São Luís nunca foi Atenas. Era uma Tróia devastada na relação de amor e ódio com o escritor. A referência a Tróia aparece na obra do filósofo Marco Rodrigues, denominada “Hermenêutica da angústia: freqüências existenciais através da poética de Nauro Machado”, publicada em 2022, pela Editora Dialética.

Segundo o autor, o poeta vivia um tipo de exílio em sua própria cidade, como se fosse um pária ou estrangeiro, às vezes incompreendido, angustiado em uma eterna solidão; e, em outras situações, muito elogiado e reconhecido.

Obra do filósofo Marco Rodrigues analisa “O anafilático desespero da esperança”, livro do poeta Nauro Machado

“A imagem de São Luís como uma Tróia arrasada, em contraposição a Atenas, é que as suas personas e respectivas vozes, as que de fato as representa com escol e brilhantismo, são inteiramente ignoradas, quando não silenciadas pela ignorância, tornando-as párias do descrédito. Nauro, nesse contexto, é uma ilha dentro da Ilha, um exílio existencial em suspensão num fora-dentro, nessa Ilha-Tróia que se encontra sempre sob ameaça de invasões, pilhagem, descaso, saques e destruição – apesar de resistir bela mesmo em condição de ruína e decadência”, explica Marco Rodrigues.

Veja abaixo uma demonstração da Tróia arrasada em que vivia Nauro Machado.

UM PREFÁCIO INDESEJADO

Quando o poeta completou 50 anos de idade, em 1985, mereceu uma reportagem especial no caderno Alternativo, do jornal O Estado do Maranhão, hoje extinto, mas à época vinculado ao Sistema Mirante de Comunicação, conglomerado de mídia sob a propriedade da família liderada por José Sarney.

PH se queixa do prefácio não elogioso. Imagem: reprodução do jornal O Estado do Maranhão (Acervo da Biblioteca Benedito Leite). Foto: Ed Wilson Araújo

Em meio aos vários elogios, a publicação também imprimia, na Coluna do PH, editada pelo colunista social Pergentino Holanda, uma severa crítica ao poeta.

Este repórter consultou o jornal nos arquivos da Biblioteca Pública Benedito Leite. Na edição de 2 de agosto de 1985, na Coluna do PH, com o subtítulo “Parabéns à poesia”, constam as seguintes notas:

As notas ácidas do PH. Imagem: reprodução do jornal O Estado do Maranhão (Acervo da Biblioteca Benedito Leite). Foto: Ed Wilson Araújo

“Nauro Machado faz, hoje, 50 anos de idade”

“Trata-se de um homem de quem me julguei amigo, em face das recíprocas demonstrações de cordialidade que marcaram certo período do nosso relacionamento. Mas em face, justamente, dos malentendidos que nos levaram a sérias e cáusticas divergências, inclusive como contendores de renhidas batalhas na imprensa, não somos, presentemente, amigos. Nem creio que venhamos, de novo, a sê-lo.”

Após um trecho em que tece elogios à poesia como expressão da cultura, PH volta à carga:

“De lado fica o homem que respondeu com farpas e pequenas agressões às demonstrações públicas de reconhecimento ao seu talento. Esquecido fica o homem que não teve a grandeza de rever seu compromisso de prefaciar meu livro de estréia – “Existencial de agosto”. De fato, como acertado, o prefácio foi escrito. Nele, porém, se registra as inflexões de um caráter que não pode ser exemplar.”

Na foto acima, Nauro Machado e Josué Montello em noite de autógrafos. Imagem: reprodução do jornal O Estado do Maranhão (Acervo da Biblioteca Benedito Leite). Foto: Ed Wilson Araújo

O ranço de Pergentino Holanda decorria de um pedido feito a Nauro Machado para que prefaciasse o livro do colunista. O poeta relutou, até que escreveu um prefácio não elogioso, resultando na ira de PH.

Seguem, na mesma página, outras notas pejorativas fazendo referência aos conflitos entre o poeta, o escritor Josué Montello e o presidente da Academia Maranhense de Letras (AML) Luis Rêgo.

OUTRA SÃO LUÍS

Enfim, se nunca chegou a ser Atenas, aquela cidade ilustrada pelas elites intelectuais acabou. Não existe mais! Hoje, está reduzida a pequenos e saudosos espaços de produção e circulação da Literatura, como os sebos, por exemplo. Nauro Machado, na São Luís de 2024, seria insultado direta e indiretamente pela completa destruição da política cultural do Maranhão e da capital, São Luís, onde impera a barbárie “forrozeira”, “sertaneja”, “piseira” e de “axé music” nos grandes eventos junino e carnavalesco bancados com dinheiro público.

As imagens aéreas desses espetáculos grotescos dão a impressão de que São Luís, Cidade Cultural Patrimônio da Humanidade, é um enorme terreiro de vaquejada.

Nesse caso nem caberia uma comparação à Tróia de tantas batalhas gloriosas, mas a um “latifúndio cultural”, como bem colocou o poeta e compositor Joãozinho Ribeiro, em artigo publicado neste blog.

Voltando à personagem Chico Discos, quando perguntado sobre o trato com a clientela, ele lembra várias situações inusitadas. Conta que toda semana aparece alguém estranho. Quando o sebo funcionava na Fonte do Ribeirão, um senhor separou uma pilha de discos de vinil, passou duas horas escolhendo e disse que ia levar todos, mas no final revelou que não tinha radiola. Na lata, Chico pensou alto: “Quem não tem gaiola não compra curió.”

Eleitor declarado de Lula, sua preferência partidária é facilmente perceptível pela disposição das capas das obras de esquerda nas estantes, com destaque para livros com as imagens do MST e do petista presidente. “Ponho alguns exemplares estrategicamente posicionados para espantar bolsonaristas”, enfatiza.

QUEM É O LEITOR DE DIREITA?

Embora o ambiente lulista seja freqüentado por artistas, estudantes, professores, ativistas e afins do campo progressista, a clientela tem algumas variações. Entre os casos atípicos está o cliente pastor evangélico e deputado federal (reeleito) Gildenemir de Lima Sousa, do PL.

Biografia de Lula é destaque na estante. Foto: Instagram @chicodiscos

Ludovicense, neto e filho de evangélicos da Assembleia de Deus, ele cultiva a leitura desde criança. “Meu pai era pastor, tinha livros, e minha mãe era muito leitora. Ela lia a bíblia junto comigo. Desde cedo eu tive acesso aos clássicos: os russos Dostoiévski e Tolstói, Thomas Mann e André Gide e Marcel Proust, Homero, Dante, Cervantes, os alemães, franceses e a literatura brasileira”, revela. De todas as leituras, afirma que só não concluiu “Ulysses”, de James Joyce. “Já fiz várias tentativas e não consegui. Acho intransponível”, sinaliza.

Formado em Teologia, o pastor estudou Jornalismo na UFMA, mas não concluiu o curso.

Os seus livros – ele computa cerca de 10 mil volumes – estão armazenados em duas bibliotecas, em São Luís e Brasília. Segundo o pastor parlamentar, a leitura é um misto de necessidade e prazer. A sua preferência pelos clássicos russos, revela, se dá pela complexidade das personagens e a identificação do leitor com elas. “Eu me encontro ali naqueles perfis. A Literatura contribui para eu entender a alma humana. Por isso, desde os 16 anos de idade passei a assumir liderança na igreja. Eu comecei servindo os pastores, viajando durante 23 anos. Quando eu resolvi ser político, meu nome foi indicado por esses laços”, conta.

Pastor Gil e Josimar de Maranhãozinho: partes do bolsonarismo no Maranhão. Foto: divulgação

Questionado sobre a incompatibilidade entre o bolsonarismo e o conhecimento, afirma que a leitura é uma forma de trazer ensinamentos através de exemplos bons e ruis. “A gente vai tirando lições das personagens e vamos jogando luz na complexidade que é a alma humana, para entender o futuro tem de fazer o retrospecto”, esclarece.

Pastor Gil se define como homem de direita, conservador, defensor dos bons costumes e da família tradicional.

Ele disse que não leu Karl Marx na íntegra, apenas resumos, e pretende se aprofundar no filósofo alemão Friedrich Nietzsche. “Nada dessa vida é totalmente descartável ou desprezível. Eu leio Paulo Freire e prefiro evitar extremismos. O fanatismo conjuga a religião e política com fins indevidos. A pessoa fanática não tem discernimento e eu sou contra xingamentos, sou pelo respeito, principalmente para quem é diferente de mim. Respeitar quem pensa diferente é um grande mote. Acima de tudo, o respeito, porque o mundo dá muitas voltas”, assegura.

Nessa São Luís de gregos e troianos, o poeta Nauro Machado tinha razão.

Categorias
notícia

Declarações de amor à Praia Grande

Texto e foto: Benedito Lemos Junior

Ruas, vielas, escadarias, “imponentes” casarões, moradas, “meia” morada, são itens da Praia Grande, em São Luís, capital do Maranhão, que revelam e escondem histórias e “istórias”, lendas e magias, em seus mais de quatros séculos de beleza e impureza, apogeu e decadência, relatos muitos inconfessáveis de “povos” que vagueiam pela vida.

Livres e/ou acorrentados, a Praia Grande é um dos mais belos e mais significativos cenários de “pessoas”, modos de vida e de cultura, de cidadãos que lutam por muito ou quase nada.

Em 1981, o cantor, compositor e poeta César Teixeira muito bem traduziu esse cenário no samba “Praia Grande” – tema da Escola de Samba Turma do Quinto naquele ano: “foi no século passado que a Praia Grande apareceu, entre secos e molhados, varejo e atacado, floresceu lá no cais, sob a luz das lamparinas”.

As lamparinas, os lampiões que “iluminaram”, por exemplo, os “caixeiros viajantes que tinham sonhos delirantes com a negra Catarina, e os pregoeiros, que sempre vivem no mundo da lua, vendendo frutas e verduras, e gritando pelas ruas tem caranguejo, farinha d’água e bobó”.

Assim, a Praia Grande, iluminada ou não, era e foi o sonho delirante de muitas pessoas, que também iluminadas ou não, fizeram e fazem histórias, suas lendas e magias, num recanto belo, de poesias, amores e paixões, entorpecidas, muitas delas, de álcool e drogas.

Umas das “figuras tarimbadas” mais presentes da Praia Grande era o poeta Nauro Machado. Não sei se o local foi fonte de sua bela e profunda inspiração, mas, com certeza, foi o “palco iluminado às velas” de muitas gerações, que como Nauro suplicavam “abre-me as portas, mãe, enquanto as estrelas buscam em mim agora a treva infinda, sem luz alguma no meu olhar a vê-las…..só para mim, que vou comigo pelas manhãs nascendo todas cegas ainda”.

Indo agora “imbora”, vou com a “Namorada do Cangaço” de César Teixeira, dando “Adeus, morena, o meu coração é um passarinho solto que não se pega com a mão” e sempre “voltar pra casa todo fim de ano cantando um bolero de Waldick Soriano”.

Mãe, te amo, em e por sua eterna memória.

Categorias
notícia

Paixões, varíola e machismo em São Luís, na novela “Maria Arcângela”, de Erasmo Dias

Ed Wilson Araújo

Organizado pelo poeta Nauro Machado, o livro “Erasmo Dias e Noites” reúne artigos, crônicas, contos, poemas e uma novela, “Maria Arcângela”, ambientada nos desdobramentos da epidemia de varíola ou “bexiga”, nos meados do século 19, quando São Luís vivenciou o isolamento social, quarentena, pânico e morte.

“Foi quando a peste chegou. A última varíola que assolou São Luís. Interditaram parte do Codozinho, pois lá estava o Isolamento, hospital para onde iam os bexigosos.” (DIAS, 2016, p. 358)

A novela se passa na fronteira entre a Belira, o Codozinho e a Madre Deus, onde transbordam variadas paixões : o gosto pela tiquira, os encantamentos por homens boêmios, morte em decorrência da peste, religiosidade, preconceito e a rivalidade entre grupos de bumba-meu-boi.

Sapateiro famoso, Mestre Quirino e sua mulher Rita criavam a filha Maria Arcângela na simplicidade do casebre construído em uma nesga de terra do novo bairro criado após uma ocupação eleitoreira na cidade. Pairava no ar o receio da varíola:

“Tudo foi indo num ramerrão do comum que entedia. O Mestre batendo sola, Rita sempre triste, com medo da invasão, dizia: Maria Arcângela crescendo, bonita, gordinha, mistura racial de homem de cor e mulher brancarana, e já mudando os dentes de leite.

Foi quando a peste chegou. A última varíola que assolou São Luís. Interditaram parte do Codozinho, pois lá estava o Isolamento, hospital para onde iam os bexigosos.

O pânico tomou conta da cidade. A pavorosa passava sem sirene, que não as havia, batendo e retinindo a campainha: era um a mais que ia para o recolhimento do Lira. As escolas todas fecharam. O governo reagiu com uma vacinação domiciliar e compulsória. Foram proibidas as reuniões. Enquanto, porém, a autoridade decretava as suas medidas de salvação pública, o povo, independente e liberto como o é, reagia ao seu modo. Pouco importava que o rabecão, derramando desinfetante, passasse dez vezes por dia, na rua do Passeio, levando os mortos, recolhidos nas residências. Quando o guarda sanitário saída, após a vacinação, a dona da casa dizia: “Vamos passar limão nessa porcaria, que isso é só pus. Credo, a doença dá em quem tem de dar”. Com medo da vizinhança, as famílias escondiam os doentes, argumentando: “O Lira, sim, só quem não sabe, é um matadouro! Da outra vez, vovó se tratou em casa e está a mesminha”. (DIAS, 2016, p. 358)

Observadas as temporalidades, o drama de Erasmo Dias ocorre no contexto da ocupação espacial da cidade, sempre pautada no discurso de que São Luís seria “moderna”, empurrando a pobreza para a periferia.

(Leia aqui artigo sobre a gripe espanhola e o advento da luz elétrica na capital do Maranhão, alusiva à obra “Os degraus do paraíso”, de Josué Montello).

Àquela época as autoridades sanitárias tomaram providências para impedir os sepultamentos no interior das igrejas, onde a convivência misturava os fiéis vivos e os mortos, objetivando ainda inibir a condução dos defuntos em caixões abertos durante os cortejos fúnebres pelas ruas.

Capa do livro Erasmo Dias e Noites, organizado pelo poeta Nauro Machado

Nas áreas cotadas para fazer um cemitério estava a localidade Gavião, hoje um dos tradicionais lugares de sepultamento em São Luís (veja a foto destacada, de Gaudêncio Cunha).

Então, o cemitério passou a ser um equipamento incorporado à ideia de higiene social adequada às medidas sanitárias modernizadoras.

Os conflitos na novela se dão com a descoberta de que Maria Arcângela, até então tida como filha de Rita e Mestre Quirino, na verdade era rebenta do glamuroso cantador de bumba meu boi Edinho. Assim conta Erasmo Dias, nas palavras do cachaceiro (apreciador de tiquira) Romualdo:

“Seu doutô, a finada Rita – a quem Deus a tenha – era do chifre furado. Brancarana bonita e de xandanga, como nunca eu vi. Que o Mestre não me ouça, lá onde todos os dois já estão, mas a pequena, a Maria Arcângela, não era filha dele; era filha do Edinho, que cantava como ninguém e sabia bater um pinho de fazer chorar.

[…]

– Doutô, lhe digo, sobre aquela conversa que as vez a gente fala da falecida Rita, veja como as coisas são: quando ela pegou a lixa lá na Belira, no outro dia Edinho pegou a peste aqui neste Codozinho, que hoje é uma cidade. Todos dois morreram no mesmo dia e na mesma hora.” (DIAS, 2016, p. 359)

A novela se passa nos bairros tradicionais de São Luís: Belira, Codozinho e Madre Deus

Viúvo de Rita, Mestre Quirino criava Maria Arcângela sem saber desse fato. Até que um dia Maria Arcângela aparece grávida. Por coincidência, o pai da criança era outro cantador de boi pelo qual ela se apaixonara perdidamente: Luizinho.

Uma das cenas mais chocantes da novela é a sessão de espancamento verbal e físico protagonizada por Mestre Quirino em sua (até então) filha Maria Arcângela, ao tomar conhecimento de que ela estava grávida e seria mãe solteira, “falada” no bairro inteiro.

A surra só não levou a nocaute a menina porque a velha parteira Nhá Maria Teresa adentrou no barraco arrotando a pura tiquira e flagrou a balbúrdia. Tentando impedir a sessão de violência, durante a discussão com o irado Quirino, ela revelou aquilo que nos bastidores toda a vizinhança já sabia – Maria Arcângela era filha de outro homem, o boieiro Edinho.

Ao saber da traição, Mestre Quirino teve até uma congestão e morreu babando de ódio.

Além do machismo, a religiosidade e o misticismo compõem a trama, como o hábito de passar limão no local da vacina para evitar o pus, registrado nesse trecho:

“A peste se alastrava. Mestre Quirino se vacinou, vacinou a filha e a mulher.

Rita não acreditava, passou limão nas incisões do braço. Dias depois, o febrão, o delírio, a denúncia da vizinhança e dizem que ela morreu de bexiga-lixa, lá no Isolamento, cheia de tantas e dolorosas pústulas, que, nuazinha, rendeu a alma, posta sobre folhas verdes de bananeiras, já que plásticos em aqueles tempos não havia.” (DIAS, 2016, p. 358-359)

Se o limão não resolvesse, a fé ajudava. As procissões em honra a São Sebastião davam o tom do fanatismo religioso:

“A varíola declinou. Nas ruas do subúrbio, ainda que proibidas as reuniões, já não se encontravam os grupos de penitentes, com velas acessas e uma imagem pequenina do Santo, cantando medievalescamente, tomados de fé, as coplas que arrepiavam de um a todos:

Oh mártir de Cristo,
Meu Santo Varão,
Livrai-me da peste
Meu glorioso mártir
Meu São Sebastião”.

Toda a novela é cerzida pela representatividade da cultura popular enaltecida nas brincadeiras de bumba meu boi. Nesse folguedo, o destino de duas mulheres se encontra – a mãe Rita e a filha Maria Arcângela, tocadas pelo feitiço boêmio dos cantadores Edinho e Luizinho.

Parte da novela, nas entrelinhas, aborda as normas sanitárias impulsionadoras do progresso de São Luís. As periferias cresciam como uma espécie de “higienização” do tecido urbano já em meados do século 19, traduzida na hipótese de uma cidade supostamente mais saudável aos seus moradores.

Novamente, a promessa de São Luís “moderna” desfila no terreno da ficção.

Afinal, quando seremos Paris?

Leia mais sobre a promessa de modernidade em São Luís.

Imagem destacada / cemitério do Gavião / Gaudêncio Cunha.