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LATIFÚNDIO CULTURAL

Joãozinho Ribeiro (*)

As festas nordestinas sempre foram entendidas por mim como um dos maiores ativos da região. Não somente pelo aspecto cultural simplesmente, porém pelos econômicos, sociais, comunitários…Seja pelo ponto de vista simbólico, seja pela afirmação da cidadania e da autoestima da população. Sendo o São João um momento ímpar desta valorização e de reconhecimento dos criadores e produtores culturais em todos os sentidos e gêneros: cantores, compositores, músicos, cantadores, mestres, brincantes, bumba-bois, cordelistas, quadrilhas, cacuriás, grupos de danças variados etc.

Este celeiro de produção criativa tem se transformado ultimamente num grande filão econômico, e a música tem sido o seu carro-chefe. Este sentimento e o pressentimento de possibilidades de grandes negócios atraíram a atenção da poderosa indústria cultural do país; de produtoras que vendem pacotes de “atrações nacionais” o ano inteiro e todo ano para estados e municípios, modificando os lugares do acontecer solidário, tão característico dos nossos festejos populares, assim entendidos pelo professor Milton Santos, e colocando nos referidos espaços um repertório tão banalizado e descartável, alheio à história e à tradição locais de nossas genuínas manifestações, por muito tempo desprezadas e até mesmo reprimidas.

Tenho tocado nesta tecla já faz algum tempo, preocupado também em não enveredar pelo xenofobismo barato nem pelo bairrismo discriminatório. Como diria o grandioso Paulinho da Viola: “Sem preconceito, ou mania de passado”, estamos assistindo a um espetáculo dantesco, com certeza patrocinador de danos irreparáveis a curto, médio e longo prazo no meio ambiente cultural. Um desmonte contínuo das conquistas no plano das políticas de cultura, e um desfazimento da construção coletiva de mãos e mentes caprichosas de várias gerações: Valdelino Cécio, Michol Carvalho, Arlete Nogueira da Cruz Machado, Nélson Brito, Terezinha Jansen, Carlos de Lima, Domingos Vieira Filho, D. Celeste, Mestre Marcelino, Américo Azevedo, D. Zelinda Lima, Nerine Lobão, Moraes, Humberto, Mestre Felipe…

Aportam por aqui oportunismos e interesses de todos os gêneros e estilos: políticos, midiáticos, eleitorais, digitais, econômicos… Até com gente fabricando um São João inteirinho pra chamar de seu, sem o mínimo conhecimento ou respeito pelos significados simbólicos e ancestrais desta nossa rica tradição popular. Herança deixada por nossos avós, como bem lembrado pelos versos do genial Guriatã do Maracanã.

Transformar a festa popular mais legítima do Nordeste em palco para a espetacularização da cultura popular e consagração dos consagrados, que passam o ano inteiro batendo recordes e mais recordes de acessos nas plataformas digitais de música, impulsionados pela monetização da imagem e da alma e pelo direcionamento dos algoritmos, torna-se um verdadeiro sacrilégio cultural. Se bancados por dinheiro público, mais sacrilégio e sacanagem ainda!

Penso que passamos a lidar com algo que eu atreveria de chamar de uma espécie de latifúndio cultural. Uma apropriação por poucos das grandes fatias dos orçamentos públicos e privados da cultura. Um coronelismo cultural em plena era digital, onde repertório e programações oficiais espelham e repetem os gostos dos governantes estaduais e municipais, muitos deles ligados ao agronegócio; tratando de um festejo público como uma festa privada em uma de suas muitas fazendas.Um casamento (im)perfeito entre o latifúndio geográfico e o latifúndio cultural, ungidos pela desigualdade, excludência e invisibilidade artística, além da negação da diversidade.

A brincadeira e a morte do boi, para nós maranhenses, sempre teve um outro entendimento, e significados que estão diretamente ligados com nossas crenças, cultos, credos e ancestralidades. Atualmente, os coveiros da cultura colocam pás de terra nestas manifestações, sob a desculpa esfarrapada de que é isso que o povo quer – a contratação de “artistas nacionais” a peso de ouro, para encharcar as praças e arenas da massa desinformada e despossuída do acesso aos bens culturais.

Prefiro ficar com a sabedoria do irretocável Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas quer também o que não sabe.” O direito de escolha resta sacrificado, principalmente quando a democracia, no campo cultural, é atropelada pela vontade e pelo gosto particular dos governantes, geralmente ignorantes e autoritários.

Quando eu me lembro da minha bela mocidade…Quá Eulália, eu não fico pra dormir…Mãe Catirina, poupa esse boi! … Antes que aquele outro,o da Lua, resolva cercar o Planeta do Brasil…Como se não existisse o Sol…Lua, Lua cheia / Que nasce no meio das águas… No mês de maio / Tá todo mundo ensaiando / E desse jeito / Eu não vou ficar aqui…Essa matraca, já conheço, seu menino / Já esmurrou muito destino / Já fez cantador penar!… Agora que eu quero ver se couro de gente é pra queimar! (*) Poeta e compositor

7 respostas em “LATIFÚNDIO CULTURAL”

Perfeito Mestre Joãozinho. Somente quem tem a alma de um artista e a sensibilidade do poeta consegue expressar tão bem a realidade(o agora) e enxergar o depois.

A festa cultural versada na expressão e no gingado de cada povo, e pra nós do nordeste, ela( festa) respeitando a cada peculiaridade da várias localidades dessa rica região, não podemos queimar nosso manto sagrado para satisfazer os interesses econômicos do lucro sem coração. Por isso o Mestre Joãozinho Ribeiro merece o nosso apoio, pois sua voz deitada nas letras do seu artigo ecoa como o verdeiro grito de Socorro pela vida do nosso patrimônio cultural.
Fora a indústria mecânica das bandas e cantores sem alma da nossa Cultura.

criminosa apropriação cultural
de um povo sem consciência
de classe nas mãos do capital
que deve ir além da resistência
por auto-gestão como um ritual
de vida contra a morte da sabença

Querido amigo Joãozinho suas palavras tocam em uma ferida aberta no coração de quem vive e respira a cultura nordestina. A festa de São João, mais do que uma celebração, é a expressão viva da nossa identidade, das nossas raízes. É onde a música, a dança, a poesia e a arte se entrelaçam para contar a história de um povo.
Mas quando vejo essa riqueza ser tratada como mera mercadoria, sinto um aperto no peito. A cultura não é algo que se compra e se vende no mercado; ela é a alma de uma comunidade. E quando essa alma é negociada, perdemos mais do que tradições – perdemos a essência do que nos faz únicos.
Não sou contra a modernização ou a inclusão de novos elementos nas festas, mas isso deve ser feito com respeito e entendimento, não por interesses econômicos que ignoram o valor simbólico e ancestral do que celebramos. Precisamos de um equilíbrio que permita a inovação sem esquecer de onde viemos.
A música, as danças, os rituais – tudo isso conta uma história, e cada um de nós é um guardião dessa narrativa. Devemos honrar e proteger nossa herança cultural, para que as futuras gerações possam também se orgulhar e continuar a contar as histórias de nosso povo.
Portanto, que possamos ser sábios como Gilberto Gil sugere, e conscientes como você clama. Que possamos escolher o caminho que fortalece nossa cultura, em vez de diluí-la. Que o São João continue a ser um momento de união e celebração da nossa rica tradição popular.”
Um forte abraço

o velho no novo sem molestar raízes
assim aprendi com mestre patinho
e o novo no velho – mas não ridicularize
nossa cultura e seu povo bonito

Parabéns pela lúcida análise do que está acontecendo com nossa cultura . Estão acabando com o nosso São João. Não temos mais os arraiais onde brincávamos juntos com as atrações,sem palcos,sem disputas de Índia(o) mais bonita,mais malhada,fantasias mais caras…etc.. Era a comunidade que ensaiava sua brincadeira e se apresentava.
Hoje virou “show” de artistas que em nada representam nossa cultura,e ainda com nosso dinheiro.
Que tristeza!

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