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Mulheres e colheres

Eloy Melonio *

Imagine duas mulheres vivendo uma situação semelhante de “violência doméstica”: uma, em 1962, e outra, em 2021. Em que se diferenciam as duas realidades?

É óbvio que o cenário atual está mais iluminado, embora ainda faltem elementos importantes em sua cenografia. E o antigo, sombrio, pintado com as cores cinzentas do medo, da submissão.

As duas — uma mais que a outra — são parte do enredo desse “drama” vivido por muitas mulheres no Brasil. Felizmente, nestes novos tempos, o clímax já nos deixa entrever um desfecho auspicioso.

A primeira situação é do tempo das “colheres” que viviam caladas na gaveta do armário. E a segunda é de hoje, do tempo das “palavras” empoderadas que voam em todas as direções.

Entre uma e outra, lembro dos meus dias de criança, quando, aos 10 anos, via aquele “senhor” bem-vestido, de passos compassados, saudando as pessoas na rua. Sua esposa, uma mulher triste, insegura, com quatro filhos. E eu, moleque que brincava quase o dia inteiro na rua, não entendia direito quando o povo falava que “ele batia nela”.

Mas eu já sabia que “A voz do povo é a voz de Deus”. E se era assim…

Algo me incomodava naquele enredo: por que as pessoas ficavam caladas, como se nada estivesse acontecendo? Não aparecia ninguém com uma “colher” (ou “faca”) para botar na garganta do patife e gritar: Pare de fazer isso, seu covarde!

É que nessa época não havia leis de proteção à mulher, e todos se calavam diante dos absurdos cometidos pelos maridos malcriados. Até a polícia, composta integralmente de homens, passava “panos quentes” para esfriar os casos que chegavam às delegacias. E o criminoso continuava fazendo o papel de gente boa, com sua reputação integralmente preservada. E nada de alguém se manifestar! Nada de colheres!

Até porque a ordem presumida era não meter as pobrezinhas em encrencas. E briga de marido e mulher era uma dessas presunções. Talvez a “faca” fosse a arma apropriada, mas, para criar um adágio rimado, terminaram adotando as inofensivas “colheres”.

Lembro-me agora de ter recentemente lido alguma coisa sobre “violência doméstica”. Era, na verdade, a coluna da promotora Gabriela Manssur na revista CLAUDIA, na qual ela sugeria duas atitudes: “Esteja ao lado delas” e “Combater o mal em suas raízes”.

Nessas leituras, informação e conhecimento. Tirar a venda para ver o que está na nossa cara: o medo de se meter no problema do outro, aquela velha atitude do “eu não tô nem aí”.

A grande lição é apoiar “os movimentos e as leis” em defesa e proteção das mulheres. Não é tarefa difícil, desde que “ela” não seja a mulher do seu melhor amigo ou do seu chefe.

Realmente, não é tão simples, mas algo precisa ser feito. E a receita é basicamente esta: “palavra amiga” e “solidariedade”. Em suma, não apenas “cortar o mal pela raiz”, mas aniquilar todo o mal, incluindo suas ramificações. Se possível, até a sua sombra. Ou seja, não ver apenas a especificidade do caso, mas abrir a cortina que esconde as artimanhas desse cenário desprezível.

Nessa receita, podemos incluir: conhecer o problema, suas motivações, e buscar a solução. Casos de violência se repetem porque não chegam ao conhecimento das pessoas — parentes ou amigos próximos. Tampouco das autoridades. Livre, “a bruxa” ronda os relacionamentos, pintando casos e casos com as cores cinzentas da submissão, do medo, ou bordando vidas e vidas com os fios do aprisionamento, da ameaça.

A realidade de hoje deve-se, em grande parte, a uma personagem expressiva na defesa dos direitos da mulher. Maria da Penha Maia Fernandes, uma mulher com coragem e palavras à tiracolo. Sua luta resultou na lei que leva o seu nome, a terceira mais bem-avaliada do mundo.

Sua história é marcada por duas tentativas de homicídio, além de agressões físicas e psicológicas. Cansada de sofrer nas mãos do marido, foi além da denúncia comum. Recorreu à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos em busca da própria proteção e de uma salvaguarda definitiva para proteger, de forma integral, a mulher.

Esse cenário, montado ao longo dos últimos anos, é também fruto do trabalho de um exército de “guerreiras” em várias frentes. No Congresso Nacional, nos órgãos da Justiça, nas associações de mulheres. Nos projetos de peso nacional, como o “Justiceiras”, da OAB, e — ressalte-se — da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, a CE do TJMA.

Em decorrência dessa lei e toda essa movimentação, hoje chovem notícias de “feminicídios” e outros tipos de “violência doméstica e familiar” na imprensa nacional. Homens da espécie do vereador Jairinho (Rio de Janeiro-RJ), acusado do assassinato de Henry Borel, seu enteado de 4 anos, filho de sua atual companheira, que — mesmo poderosos — estão sendo presos, julgados e condenados.

A realidade é que nem todos os casais vivem na praia ensolarada das canções românticas. “Também há dias em que a chuva cai” (The Fevers). E aí o bom senso dita que é hora de parar para conversar. Ou reclamar, como fez Adão: “A mulher que tu me deste por companheira…”.

Mas jamais maltratar, machucar, matar.

Se o casamento não vai bem, existem os procedimentos terapêuticos e os trâmites legais. O que não se pode admitir é que “um lado” use de sua força física ou poder financeiro para maltratar, menosprezar e subjugar o outro. Ou, ainda pior: ficar impune! Quanto à sociedade, calar-se é o mesmo que “deixar a vítima no banco dos réus”.

Se tivesse os poderes mágicos de Harry Potter, correria ao passado para gritar aos meus vizinhos: Guardem suas colheres, seus imbecis! E soltem suas atitudes!

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Eloy Melonio é professor, escritor, poeta e compositor

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Receita e mulher

Eloy Melonio é professor, escritor, poeta e compositor.

Maria, Zilda, Dulce, Chiquinha, Arcângela, Fernanda, Marielle, Elza.

Que me perdoem os homens, mas não vou dar aqui uma “receita” de mulher. Se essa era a sua expectativa, podem tirar o cavalinho da chuva. Nem mesmo Vinicius de Moraes foi capaz de fazê-lo, apesar de sua genialidade. Porque a mulher é muito mais que apenas um rosto atraente, geralmente com cabelos longos, quadril largo, peitos polpudos e pernas torneadas. Um aspecto físico que é captado natural ou sutilmente pelo olhar masculino interessado em curtir com ela momentos de intimidade.

O certo é que a mulher não é apenas isso. Ela é muito mais que “nádegas” e “saboneteiras”, como exigia o poeta. É óbvio que, em sua poesia, Vinicius fala em nome de um olhar sensual, típico do boêmio de sua época. E está perdoado por isso, posto que seu poema “Receita de Mulher”, de 1959, é uma estupenda peça literária. Mas está longe de representar, em sua plenitude, as mulheres deste país. Carl Jung também o perdoaria, porque, assim como as pessoas têm medidas diferentes (sapatos, roupas etc.), “não existe uma receita para a vida que sirva para todos”.

É inegável que a mulher ocupa espaço privilegiado nos versos dos poetas, nas músicas românticas e nas cenas de qualquer love story. Poemas, canções e filmes exaltam sua beleza e sensualidade. Um cenário em que é geralmente apresentada como musa, amada, amante, sedutora. E tudo isso por causa de sua fina e atraente natureza feminina.

Aproveitando esse potencial, o marketing do mundo dos negócios associou seu sex appeal ao imaginário coletivo dos homens (e das mulheres). Se Gisele Bündchen usa essa marca de batom, também Ana Paula vai querer usá-la. Do mesmo jeito, se a Juliana Paz curtia uma “boa” cerveja, muita gente também seguia o seu estilo de vida.

E, assim, surgiram as misses, as cover girls, as top models, a garota do Fantástico, a Vera Verão, da Itaipava.

No auge das revistas de mulher pelada, alguém gritava com ar de superioridade: Já sei quem vai ser a capa da Playboy deste mês! Muita gente ainda se lembra (e até guarda exemplares) das capas mais vendidas com a Feiticeira, a Tiazinha, Adriane Galisteu, Carla Perez.

É importante destacar que, em quarenta anos de Playboy no Brasil, apenas nove mulheres negras posaram em suas capas. Em 1980, um ensaio apresentava “Sônia e as mulatas”. Dezesseis anos depois, a belíssima Isabel Fillardis provocou filas nas bancas de revista.

Mas o que existe além dessa representação sensual da mulher? Para os especialistas, uma variedade de qualidades e potencialidades. Entre elas: a mulher é apaixonada pelo que faz, não tem medo de assumir riscos, quer evoluir na carreira. E está, hoje, fortemente representada no mercado de trabalho: a cientista, a produtora cultural, a política, a policial, a juíza, a agricultora, a empresária, a motorista da van escolar.

Além de tudo isso, vale destacar a quase esquecida “companheira”, expressão bíblica para a primeira mulher, criada a partir da costela de Adão, que, muitas vezes, mesmo trabalhando fora, é dona de casa em tempo integral.

Preciso aqui, de forma especial, falar da mulher em sua condição de cidadã, engajada em várias frentes. Que luta pelos seus direitos e que, corajosamente, representa outras mulheres. Essa, em geral, não está nem aí para o “estereótipo” de Vinicius de Moraes, embora algumas delas (juízas, delegadas, médicas, procuradoras) se encaixem na descrição do poetinha.

Hoje, quando se destaca em nível nacional ou internacional, a mulher não é vista como mulher apenas, mas como alguém que luta pelo bem-estar das pessoas. Infelizmente, o mundo dos smartphones ainda não foi capaz de ver, ouvir e entender a sua voz de modo a equipará-la ao seu companheiro. E isso, como diria Roberto Carlos, por causa de um “detalhe tão pequeno”: quem ainda faz as leis são esses sujeitos que se dizem seus companheiros. Felizmente, elas sabem que um longo caminho ainda as separa do “oásis” da igualdade. Mas já conseguem vislumbrar, no bom sentido, a mesma “sombra e água fresca” que os homens desfrutam há muito tempo.

No Brasil, a palanque político mudou muito nas últimas décadas. Nesse novo cenário, as mulheres ganharam espaço e voz no debate em torno de questões essencialmente femininas como aborto, assédio, maternidade, igualdade de direitos. Não sei dizer o número de atrizes nesse palco, mas sei que sua representatividade se torna cada vez mais forte e mais consistente.

Nosso século se orgulha de ter empoderado duas jovens que chamaram a atenção do mundo com seu grito de indignação: a paquistanesa Malala Yousafzai, a mais jovem vencedora do Prêmio Nobel da Paz, em 2014; e a “pirralha” sueca Greta Thunberg, que, aos 16 anos, foi escolhida “Person of the Year/2019” pela revista Time. Aliás, essa honraria — não é demais lembrar — era, até pouco tempo atrás, reverência midiática exclusiva dos homens.

É notório que a mulher hoje pisa e repisa os estereótipos impostos pela mente dominante do homem. Já destronou o famigerado “sexo frágil” e o cambaleante “Por trás de um grande homem…”. E consolida sua posição na sociedade em busca de mais direitos, mais reconhecimento e oportunidades. Mas ainda tem uma lista considerável de “pedrinhas” para tirar do meio do caminho.

É sempre bom lembrar que “uma jornada de mil milhas começa com o primeiro passo”. E jamais esquecer as grandes mulheres que teceram, de certa forma, a história do mundo contemporâneo: Geraldine Ferraro, a primeira candidata à vice-presidência dos Estados Unidos, em 1984, Margaret Thatcher, a “primeira” primeira-ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990. E tantas outras, famosas e anônimas, no Brasil e no mundo, que fazem parte do rol das mulheres que pensam e agem para dar o devido colorido à sua importância na sociedade moderna.

Entre erros e acertos, a história não pode mais perder de vista o valor, a força e o poder das mulheres. Nesse contexto, um bom exemplo vem de Hillary Clinton, a bem-sucedida política norte-americana: “Por mais difícil que isto possa parecer para mim, eu aprendi muito com as derrotas” (prefácio de seu livro “Hard Choices”, Ed. Simon and Schuster).

Nesse viés, ainda existem algumas esquinas difíceis de dobrar. Como diz a canção, “nem sempre o sol brilha/ Também há dias em que a chuva cai” (Mar de Rosas, The Fevers). O radicalismo e a intolerância político-ideológica são — muitas vezes — pontos inconsequentes. Quando transformam a luta em guerra, perdem tempo e espaço. Se veem o homem apenas como um inimigo, perdem de vista o oásis dos sonhos dourados. Em todo processo de mudança, a política é a rua principal. E aí, mais que “força e obstinação”, quem precisa caminhar de peito aberto é a capacidade de dialogar.

No universo das redes sociais, a panela de pressão ferve repleta de opiniões, argumentos e posições. E é por lá que está, hoje, caminhando a humanidade. Em muitas situações, as trincheiras são necessárias. E, como já disse, bem melhor que a guerra é o diálogo e a negociação. E, nesse contexto, a mulher parece ter o perfil ideal para entrar nessa lida democrática.

A intenção de Júlia Gama (Miss Brasil 2020) é uma oportuna lição: “Como Miss Brasil, eu desejo o diálogo e a inclusão, eu desejo construir mais pontes e menos muros. Espero usar a minha voz para falar de cuidados, proteção social e de saúde”.

E quanto às “oito mulheres” da primeira linha deste ensaio?

Apesar da escolha aleatória, são mulheres reconhecidas e, algumas vezes, homenageadas por sua representatividade nas mais variadas áreas do universo político-social deste país. Se adicionar um título ou sobrenome, facilmente serão reconhecidas: Maria da Penha, Zilda Arns, Irmã Dulce, Chiquinha Gonzaga, (…), Fernanda Montenegro, Marielle Franco, Elza Soares.

Dessas, ressalto a persistência e a determinação de Elza Soares, que, aos 90 anos, continua trabalhando como nunca. Sobre sua vida, ela revela: “Faço questão de ser ativista. Eu brigo, grito, vou à luta. Pelos gays, pelos negros, pela juventude, pela mulheres, por quem não é ouvido” (Veja, coluna Primeira Pessoa, 5-8-2020).

Essa lista não significa que essas são as mais destacadas ou as mais representativas. São apenas alguns exemplos. Você pode ter outros nomes. O que importa aqui é a atitude da mulher diante dos desafios da vida, da sociedade e do mundo. E como enfrentá-los.

Uma delas você certamente não conseguiu identificar. E por que está nessa lista? Porque, mesmo “anônima”, foi, para a sua família, um exemplo de força, caráter, dignidade.

Essa mulher — física e socialmente — está longe do perfil idealizado por Vinicius de Moraes. E muito distante das “socialites” e “beldades” que habitavam o imaginário do poeta. Era, ao contrário, uma “guerreira”, no estrito uso do termo. Analfabeta, acordava cedo para preparar os filhos para a escola. Fazia de “tudo” em casa, pois nunca teve empregada para ajudá-la a criar os cinco dos nove filhos sobreviventes. Suas “nádegas” não eram bonitas, pois se sentava no chão para quebrar coco e, com isso, ajudar na renda da família. Em vez de “saboneteiras”, o destaque eram os ombros. Estes sim, fortes de tanto carregar peso. E as mãos calejadas de lavar roupa com sabão em barra. Uma incontestável representante das milhões de mulheres que habitam os mais precários e vulneráveis espaços deste país.

Arcângela era simplesmente uma dona de casa. Mulher modesta, e — acima de tudo — honrada, trabalhadora, sonhadora. A eterna “companheira” de vida e túmulo de Seu Manoel Rodrigues, meu pai.

E habilitada a entrar em qualquer lista de mulheres dignas, aqui e alhures.

Imagem destacada / divulgação / Atividades do Elas que São Elas!, grupo de alunas da Universidade Vila Velha, no Espírito Santo.