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Dois velórios: Cunha Santos leva para o túmulo o jornal de papel

por Ed Wilson Araújo e José Reinaldo Martins

As novas gerações de jornalistas, nascidas e criadas no mundo digital, devem experimentar intensas sensações com os dispositivos tecnológicos. Toda era cultural tem seus prazeres e assim o mundo gira cada vez mais rápido, sempre ao mesmo tempo agora.

Jornalistas veteranos tiveram outros deleites: sentir o cheiro de tinta e papel, ouvir o tec tec da máquina de escrever, ir para a rua feito cães farejadores de notícias e encerrar a edição com um encontro no bar, entre outras tantas emoções.

A antiga Peixaria Carajás, no São Francisco, é testemunha do jornalismo boêmio e malandro, no bom sentido da coisa. Nas madrugadas, passando pela avenida Castelo Branco, era impossível não esticar uma boa prosa com J. França, depois de ele ter fechado a edição de O Estado do Maranhão.

Por essas coincidências da vida e da morte, o jornalista Cunha Santos faleceu no Dia do Poeta (20 de outubro) e na semana em que O Estado do Maranhão encerra suas atividades como um dos mais longevos impressos da terra onde o padre Antônio Vieira pregou.

Escritor, cronista refinado, democrata e boêmio inveterado, Cunha Santos vai embora junto com o jornal de papel, deixa muitas saudades e os seus livros “Meu calendário em pedaços”, “O esparadrapo de março”, “A madrugada dos alcoólatras”, “Paquito, o anjo doido” e “Odisséia dos pivetes”, além de inúmeros textos espalhados em vários diários que podem ser consultados na web ou nos arquivos vivos da Biblioteca Pública Benedito Leite.

Quer mais uma coincidência?

Neste outubro de despedidas, um dos mais prestigiosos impressos do mundo começou a recrutar leitores para experimentar sua aposta no futuro do presente: The New York Times Audio, “um novo aplicativo para jornalismo de áudio e contação de histórias”

Segundo o NYT, a nova plataforma vai oferecer “artigos narrados, podcasts e conteúdo de áudio de uma lista de editores de primeira linha.”

Enquanto São Luís não vira Paris e de Nova Iorque só tem a Estátua da Liberdade, sobrevivem entre os mais antigos no papel O Imparcial e o velho Jornal Pequeno de guerra (a última tribuna de Cunha Santos), provas da resistência de um meio de comunicação que pulsou intensamente e concomitante à magia do rádio e ao encantamento da televisão.

O impresso está desaparecendo sem alarde, quase despercebido, mas pode ser que ainda tenha uma sobrevida em periodicidade semanal, com reportagens especiais focadas em jornalismo de profundidade.

Seria uma espécie de impresso vintage, aos domingos, com textos e imagens muito especiais, destinado a um público seleto. Algo como edição de colecionador.

Valeria a pena ressuscitar o Colunão de Walter Rodrigues ou o Jornal Pessoal de Lucio Flávio Pinto, duas penas memoráveis que eu guardo até hoje e releio vez por outra, para nunca esquecer como se escreve bem.

Então, nesta quinta-feira (21), serão dois velórios em um só dia: de Cunha Santos e do jornal O Estado do Maranhão

No entanto, fiquemos atentos ao mais importante: acabando o impresso, fica o Jornalismo, uma instituição da modernidade, filha do Iluminismo, fundamental para mediar o público com base nos critérios de verdade.

O Jornalismo teve um papel essencial no desmonte da farsa perpetrada pela Lava Jato, desmascarando Sergio Moro e toda a quadrilha organizada em parte do Ministério Público Federal para destruir a democracia no Brasil.

E segue na missão civilizatória de combater a desinformação e o obscurantismo.

Que assim seja.

A esta hora, J. França e Jonaval Medeiros da Cunha Santos já se encontraram no céu e, lá de cima, dão boas gargalhadas vendo esse corre corre sem fim das pessoas solitárias e ansiosas ao celular, caladas, sem aquele clima caloroso e o ambiente onomatopéico da velha redação do jornal de papel: tec tec tec.