Eloy Melonio é cronista, contista, poeta e letrista, e é membro da APB e da ATHEART.
Num certo dia do século XVIII, o pai da química soltou esta: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Não sei o que os cientistas estão dizendo hoje sobre a célebre “lei da conservação da matéria”. E fico a imaginar se a tal transformação, preconizada por Lavoisier, realmente acontece. E se acontece, seria ela a salvação do lixo?
Seja qual for a resposta, vamos direto ao lixão. Porque é lá que o lixo é largado à sua própria sorte. Só não sei se ele se transforma ou se conserva sua composição original. Caso se transforme, fica-me a dúvida se é para melhor ou pior. Ou se é apenas lixo novo virando lixo velho.
Não pretendo aqui produzir uma tese científica sobre o lixo. Poderia até escrever sobre o lixo político, bem mais na calçada da nossa realidade. A ideia é7 defender que o lixo não é tão lixo assim. E que parte de sua importância se deve ao fato de ele estar, em certa medida, associado ao luxo.
— Como assim?!
É que o lixo não nasce do nada, pois é resultado de uma ação humana. Já o luxo é um modo de vida caracterizado por despesas supérfluas e pelo gosto da ostentação. Ainda que incompatíveis, “lixo e luxo” parecem muito próximos, como se um não existisse sem o outro.
Mas uma coisa os distingue: o lixo é indesejável, “persona non grata”. Um coadjuvante que deve sair logo de cena, deixando o cenário limpo. No outro papel, o luxo é protagonista, sempre bem-vindo e aplaudido — ambição de quase todo ser humano.
A loucura por conquistar o luxo e o desejo incontrolado de ostentá-lo é o que facilita a busca da polícia por criminosos exibidos. É o luxo entregando o lixo. E aí o grito de vitória: game over.
Nas festas glamourosas, o luxo é o anfitrião, o “cabeça branca da lancha”. O lixo também se faz presente desde os preparativos até “não se sabe quando”. É o primeiro a chegar e o último a sair. Entre os dois, um convidado contrariado pode facilmente dizer que “a festa do luxo foi um lixo”.
Pessoas mal-intencionadas costumam dizer que o melhor lugar para o lixo é “qualquer lugar”, desde que esse lugar seja bem longe de sua casa. Mesmo em situações contraditórias, “lixo” e “luxo” podem conviver por algum tempo, mas chegará a hora de se separarem. Um fica, o outro vai.
As duas são muito parecidas — personagens quase idênticas no teatro da ortografia. Duas sílabas, ambas começando com “l” e terminando com “o”, tendo o “x” como fonema de conexão sonora. Se permutarem a vogal da primeira sílaba, uma torna-se a outra.
Na arte da palavra, pintam e bordam com suas múltiplas possiblidades. Se o convocássemos para uma descrição dessa realidade, acho que Caetano Veloso repetiria: “(…) o avesso do avesso do avesso do avesso”.
No campo semântico, nossas musas servem de metáforas na música, na poesia ou em qualquer outra concepção de arte. Se a vida de uma pessoa é um luxo, você logo imagina alguém de vida bem vivida. Se é um lixo, a imagem é de pobreza, desprazer. E se tudo na vida depende de contexto, ciscar no lixo é o maior luxo para qualquer pintinho.
O cearense Ednardo desfila nas duas alas desse enredo: “Eu sou a nata do lixo/ Eu sou do luxo da aldeia”. Charlie Brown Jr. se joga na filosofia: “Eu conheço o lixo e o luxo/ Eu sei quanto vale uma vida”. A galera do Mundo Bita (premiado grupo que faz música infantil) brinca com o politicamente correto: “Nem tudo que sobra é lixo”. Para Sandra de Sá, o último recurso de um relacionamento desgastado: “Vou jogar fora no lixo”.
Carlos Seabra resume, neste haicai, um drama urbano: “terreno baldio/ lixo revirado/ gato vadio”. Mario Quintana tenta achar o que olhos comuns não conseguem ver: “(…) nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí… Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!”
E, enfim, é da natureza do lixo ficar do lado de fora das festas, condenado a passar a noite na chuva, nos cantos, nos postes. Em nenhum instante, pode se dar ao luxo de estar no salão nobre. Se aparece por lá e se demora, logo vem alguém e o recolhe. Exatamente como faz a polícia com aquele torcedor bagunceiro nos estádios de futebol.
No último capítulo da telenovela “Elas por Elas” (Rede Globo/11-4-2024), — reedição da versão de 1982 — uma cena se destaca: duas mulheres, cada uma em seu vestido branco, casam-se numa cerimônia simples. Depois das juras de amor, beijam-se na boca. Tudo isso às 18h15 de uma sexta-feira. Desconfio que, 42 anos atrás, essa cena não fazia parte do enredo ou não era assim tão explícita. Não lembro o fundo musical da versão atual, mas bem que podia ser: “Novos tempos, novos dias”.
Para combater esse modernismo, militantes da “direita” conservadora gritam contra as cenas e os conteúdos apresentados pela emissora. E não se acanham em acrescentar ao seu tradicional nome uma palavrinha dissílaba de sentido pejorativo.
É um grande alívio ver o “lixo” caminhando para se tornar “resíduo” (sólido ou não)” e ter seu domicílio definido como “aterro sanitário” — um luxo ainda distante da realidade brasileira.
Livre, e em processo de ressignificação, lixo pode entrar no bloco da semântica para brincar um novo carnaval. Da arquibancada da alegria, aplausos do imortal Joãosinho Trinta, porque para ele “pobre gosta de luxo. Quem gosta de lixo é intelectual”. Por enquanto, “na medida do possível”, lixo vai “levando essa vida”. Quanto à sua amiguinha esnobe… Bem, aí já é outra história.