Eloy Melonio é professor, escritor letrista e poeta.
Que palavras da nossa língua você nomearia a mais bela e a mais expressiva?
Imagino as mais variadas e surpreendentes respostas. Porque assim é o nosso relacionamento com elas. Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), nosso maior lexicógrafo, também não escondia sua relação de amor com as palavras. Para ele, — entre tantas outras — “libélula” era a mais bela. Jamais imaginei que o nosso “macaquinho” (nome carinhoso usado no Maranhão) pudesse alçar voo tão alto e emblemático.
Minha intenção, aqui, é enaltecer o mais prodigioso dos encontros: homem e palavra. E, em vez do tradicional aperto de mão, um afetuoso abraço. Porque esse momento é um milagre que acontece a todo instante desde que o mundo é luz. Feitas as apresentações, saem os dois a caminhar na praia das ideias. E, nesse passeio, entram em cena o real e o imaginário, o possível e o impossível, o verossímil e o improvável.
Pra começo de conversa, “palavra” é tema de si mesma no âmbito metalinguístico. Isso porque ela sempre desfrutou do protagonismo na comunicação humana. Sem ela, a luz da criação não se acenderia, e o mundo seria silêncio e escuridão.
Então é isso! Vamos dar voz e vez à palavra, considerando sua origem e ancestralidade. Em especial porque, ocupada em seu sacerdócio, serve uma multidão de gente, esquecendo-se de si mesma. E, na condição de espelho da vida real e ficcional, quase nunca se vê a si mesma. E não é culpada de nada. Porque é mero instrumento (para o bem ou para o mal) nas mãos do emissor e do receptor. Ao contrário do que, injustamente, diz a canção: “O que vale é o sentimento/ E não palavras quase sempre traiçoeiras” (“Pedacinhos”, Guilherme Arantes).
No papel de apaixonado pela palavra, não posso vê-la elegantemente vestida ou suavemente perfumada que sou tentado a convidá-la para um bom papo. Nesse contexto, a ideia desta crônica surgiu em um instante iluminado enquanto eu folheava o livro “O Lírio do Vale”, de Balzac. De repente, deparei-me com esta pérola: “Jamais ponha esse calor nas palavras que me disser”. Caramba! Tanta sensibilidade nessa conotação ficcional me tocou o fundo da alma.
Se imaginarmos que as palavras são “abelhinhas”, o livro desse grande autor francês — além do enredo — é um enxame em que as “sociais” (produzem mel em abundância) passeiam zumbindo da primeira à última linha desse romance de amor, construindo aforismos, descrições, revelações. Por isso, um dos meus preferidos.
“O que seria do poeta sem a palavra, e da palavra sem poeta?”, pergunta um prefaciador, delimitando o palco da palavra. Que tal se refizermos a pergunta? O que seria de “nós” sem a palavra?
Para quem lida com as palavras, elas são uma epifania, capazes de preencher espaços no coração e na alma. Celebrando os 80 anos de Elis Regina (17-3-1945), a locutora de um programa de rádio suspira: “Ela fazia a gente rir, chorar e sentir cada palavra”. Com a mesma sensibilidade, a poetisa maranhense Sharlene Serra descreve o dia de seu nascimento: “E o universo em silêncio/ entregou-me à luz/ Não como quem chega/ Mas como quem renasce/ em cada palavra”.
Em reconhecimento a esse poder de dar vida às ideias e aos sentimentos, imaginei uma forma de homenageá-la na figura de sua principal representante, ou seja, “ela” mesma. Qualquer louvação já seria um prêmio para quem passa a vida trancada em livros, dicionários, enciclopédias. Ou voando daqui pra lá e de lá pra cá, carregando os mais diferentes sentimentos, como fez, neste verso, Gonçalves Dias (“Ainda uma vez, adeus”): “Nenhuma voz me diriges!…/ Julgas-te acaso ofendida?” (itálico nosso)
Acreditando em sua potência linguística, pensei em 7 de setembro para o Dia Nacional da Palavra, numa alusão ao grito do Ipiranga. E, aí, certamente, outros gritos de exaltação podem aportar em suas inflexões não tão plácidas. Nesse mesmo espírito, viajo ao passado para ouvir as desculpas dos grandes escritores por sua indesculpável negligência. Dos contemporâneos, espero apoio, caso atentem para esta enunciação poética tirada da minha cartola: “Na alma da palavra, a arte da vida”.
Deixando claro o que já está evidente, uma breve definição da homenageada: “Unidade mínima com som e significado”. Tanta simplicidade ganha mais cor na irreverente definição de Walfrido Canavieira, personagem de Chico Anysio: “Palavras são palavras, nada mais que palavras”. Indo um pouco além, não se pode esquecer que a palavra tem história, nacionalidade e organização estrutural.
Princípio de tudo, ela “vem inaugurando o mundo. Plena de vida”, contextualiza Frei Beto, em seu “Ofício de Escrever” (Anfiteatro). Com ela, Deus criou tudo o que existe. Logo na abertura do Gênesis, a revelação: “E disse Deus: ‘Haja luz’”. Em harmonia, verbo e substantivo são as primeiras a sentir o ato da criação. Outras, igualmente, entram em ação sob o comando do maestro-criador, que vai criando e nomeando as coisas.
Não há como não se encantar com essa “faculdade de expressar ideias”. Um encanto que, principalmente, é capaz de flagrar a sensibilidade dos olhos, dos ouvidos e da boca. Estou convencido, caríssimos leitores, de que, sem elas, o nada continuaria “sem forma e vazio”.
Finalmente, imagine-se ouvindo de Deus uma confidência que é “a sua mais completa tradução”: “Eu sou quem sou” (Ex 3:14).