Eloy Melonio
Ainda rapaz, ouvia maravilhas sobre a dupla de atacantes do Santos F.C. — a famosa tabelinha Pelé e Coutinho da década de 60. E cheguei a ver, no “Canal 100”, suas jogadas espetaculares na telona do Cine Éden. E a plateia masculina, como se fosse a torcida do time paulista, esbaldava-se em gritos.
Bons tempos, aqueles! Tempos que nunca saíram da minha memória e que derrotam o senso comum, pois “o que é bom dura eternamente”.
Essa imagem é para ilustrar outra tabela igualmente espetacular, que se desenrola no campo das “letras”, onde jogam o autor e o leitor. No futebol, os jogadores de um time vestem a mesma camisa. Nas letras, os artistas vestem cores diferentes.
Pretendo aqui ater-me à “arte da escrita”. E começo com uma falta técnica: alguns artistas ainda não entenderam em que consiste essa arte e como exercê-la. Daí uma falta grave: um monte de escrevedores se apresentando como “literatos”. Isso me lembra de um adágio dos tempos de rapaz: É tanto artista que já não dá mais para se fazer um filme de cowboy. Explico: nesse gênero cinematográfico (western), geralmente havia “um” artista (o “mocinho”, o cara do bem) e os bandidos. Acho que uma das poucas exceções foi “Sete Homens e um Destino”, filmaço de 1960, com Charles Bronson, Steve McQueen, YulBrinner, entre outros.
A dupla do futebol virou sinônimo de “tabelinha perfeita”. Não eram os únicos a executar essa jogada, mas eram “os caras”. A tabela já era comum nos campos de futebol, mas a dupla santista tornou-se um fenômeno. Porque o que faziam ia além das linhas do normal. E esse futebol de alto nível não demorou a fazer outro golaço: conquistou o título de futebol-arte.
Com essa comparação, espero deixar clara a minha intenção. O artista não é apenas alguém que se veste de artista, mas aquele que — na grande área da arte — distingue-se por sua genialidade.
Onde está o problema, então?
Segundo os especialistas, nas quatro linhas da produção literária. E, nessa questão, destaco uma definição categórica: “literatura é a arte da palavra escrita esteticamente”. Escrever, todo mundo escreve, mas encantar o leitor, aí já é outra jogada.
Com autoridade, o prof. Afrânio Coutinho arremata: “A literatura é uma arte (…) produto da imaginação criadora (…) e cuja finalidade é despertar no leitor o prazer estético”. É nessa fruição que se estabelece o diferencial entre o que é e o que não é literatura, como exemplifica Jean-Paul Sartre: “Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo”.
Para não perder a jogada, repito uma citação de que gosto muito: “De todas as artes, a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil, é sem dúvida a arte da palavra” (Latino Coelho). Ou seja, palavras que jogam um bolão no “coração do pensamento”, como canta Chico Buarque numa canção.
Não tenho dúvida de que as palavras dão asas à imaginação. Pois é nesse voo que estão os efeitos da criação artística. E é sob esses ventos brandos que Marina Ferreira (autora de Redação, Palavra e ARTE, Atual Editora) traduz o tema desta crônica: “Os textos não se movimentam no vazio. Existe toda uma realidade circundante, um sistema de valores, uma história e uma memória que fazem dos textos discursos”.
A tabelinha autor-leitor é a cena na qual rolam as ideias como se fossem uma bola de futebol. O autor imagina a jogada e passa a bola. Se o passe é dado com precisão e beleza, certamente terá implicações na percepção do leitor. E assim como o Richarlison (Seleção Brasileira, 2022), o leitor aplaudiria e agradeceria com elegância. E o resultado: um gol de placa.
Nesse momento do jogo, trago o Pelé ao Coutinho, ou levo o Coutinho ao Pelé. Ou seja, o leitor competente— sonho dourado de todo escritor. Aí, sim, uma tabelinha de qualidade. Por conhecer as regras do jogo e as principais jogadas, essa afinidade tem tudo para converter a jogadaem gol. O que, eventualmente, não impede o leitor de discordar ou perder uma ou outra jogada. Mas isso é esteticamente saudável e faz parte do jogo.
Nunca me esqueci do entusiasmo com que um amigo — no meio de uma festa com o som nas alturas — tentava me convencer a ler um livro. Seus argumentos não davam a mínima para o papo fora de hora. Depois de quase seis anos, lembrei-me dessa jogada. E, pesquisando sobre o livro, entendi a razão de seu apreço pela obra. Seu passe foi tão certeiro que já estou lendo “O Jogo da Amarelinha” (1963), do argentino Júlio Cortázar. Logo no segundo parágrafo, a recompensa: “Andávamos sem nos procurar, mas sabendo que andávamos só para nos encontrar”.
Dia desses, outro amigo me passa a bola, tentando me vender “Ovo”, uma das crônicas maravilhosas de Luís Fernando Veríssimo. E aí, encanto e identificação imediatos: “(…) o rendado marrom das bordas tostadas da clara, o amarelo provençal da gema…”.
Recentemente fui surpreendido por dois autores de minha cidade, ambos me pedindo para “revisar” (Nada profissional, por favor!) romances que acabaram de escrever e que entrarão em diferentes concursos. Nessa inigualável experiência, constatei, nas duas obras, o rigor do fazer literário: ideias inovadoras e textos impecáveis. Infelizmente, para tristeza da arte, a bola redonda nem sempre é a bola do jogo.
Nesse campeonato das letras, nem sempre se encontra textos com o uniforme literário. Diria mesmo que há certa confusão: prosa fantasiada de poesia, autoajuda disfarçada de crônica, redação escolar passando-se por conto. Parece-me que já passa da hora de termos um VAT (Verificação de Autencidade do Texto)— um equivalente do VAR nos jogos de futebol.
Enquanto isso — depois de Bob Dylan (Nobel de Literatura/2016) — a tendência das academias de letras é chamar alguém da arquibancada para entrar no jogo, ignorando os titulares e reservas, numa indigesta desvalorização do escritor de reconhecido valor literário.
Nossa reflexão está agora a um chute da jogada final. Se “o texto só cumpre sua missão quando é lido” (José de Nicola), atrevo-me a dizer que o texto literário só cumpre a sua intenção se o leitor é seduzido.
Da arquibancada, alguém grita: E a inspiração? Aí ouço a voz de Pelé: Inspiração é correr atrás do espetacular, do esteticamente redondo para se fazer um gol de placa.
Antes do apito final, reafirmo: ganhar ou perder é só uma questão de se fazer a jogada certa.
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Eloy Melonio é cronista, contista, letrista e poeta.
Imagem capturada no site Metrópoles