Eloy Melonio
Seria exagero comparar a fila do banco a uma caravana de camelos no deserto? Ou ao pódio da Fórmula 1? Talvez, mas não custa tentar. Numa comparação simples, a fila está para a caravana assim como o interior do banco está para o pódio.
O sol abrasador, a areia quente e a lentidão dos camelos classificam os beduínos como viajantes resistentes e pacientes. A pista regular e os carros supervelozes fazem os pilotos de F-1 se sentirem dentro de um jato.
Sem nada disso na cabeça, saí de casa num dia qualquer para ir ao banco. Não imaginava que teria de enfrentar uma boa fila, coisa que não fazia havia muito tempo. E, lá, afetado pelo espírito de cronista, decidi registrar cada momento dessa experiência em passos cronometrados, como se fosse um diário.
Entro na fila às 9h10.
9h13. O cenário é a rua, a calçada, as pessoas. E um calor de matar! À minha frente, muita gente; e eu ainda sou o último, uma posição nada confortável. Encosto-me no muro do prédio vizinho ao banco. Saúdo o Sol e fico aguardando o sinal verde.
9h15. Chega o meu segundo vizinho, um senhor de uns oitenta anos. Dou-lhe bom dia, e ele só me olha. Outros dois acabam de chegar. E agora já são três.
9h25. Pego uma pontinha da sombra da amendoeira que fica no terreno do prédio vizinho. Nesse ponto, a fila assume o formato de um lombo de camelo por causa do recuo do portão de entrada de veículos. E a fila se “reinventa” a cada movimento.
9h40. Faço estas anotações na última página de um livro — velho companheiro quando vou a lugares onde posso sentar e ler. Hoje, infelizmente, não desfruto tal privilégio. Esgotado o espaço da folha, passo para o celular.
10h5. A fila ganha fôlego à minha frente. As pessoas se reorganizam, e eu avanço uns cinco passos. Mas a porta de entrada ainda é um oásis que escapa à minha visão
10h10. A esta altura, a fila já é uma confraria. Desconhecidos se tornam amigos íntimos. Gente falando alto, gente rindo, gente reclamando. Falam de tudo: da pandemia, de um vizinho antipático, e até dos filhos do presidente. Antenado, um senhor metido a engraçado explode: No meu tempo, rachadinha era outra coisa.
10h20. A fila avança, e a amendoeira agora é sombra do passado. O Sol esquece que já me deu bom dia e me encara como se eu fosse um quadrúpede ruminante do deserto. Um ambulante me oferece água mineral. Penso na higiene e na covid-19. “Não, obrigado”. Inspiro-me nos beduínos e tento esquecer a sede por mais algumas dezenas de minutos.
10h27. Um trecho da fila vira uma arena política. Falam dos políticos e dos ministros do STF. Uma aposentada do INSS faz a conta: gás, comida, remédios. Diz que já fez dois consignados e que não lhe sobra quase nada de seu benefício. Seu Jaime, o senhor da “rachadinha”, vira o rosto e canta baixinho: Na vida a coisa mais feia/ É gente que vive chorando de barriga cheia.
10h38. Um grupo de indignados decide entrar com uma representação no Ministério Público contra o banco. Desenham um plano, anotam nomes e telefones. “Onde já se viu?”, questiona uma senhora com jeito de professora. “Largar a gente ao léu, sem nenhuma assistência. Logo esses, que mais têm lucro neste país”.
10h45. A área em frente ao banco vira uma feira. Transeuntes, ambulantes e fileiros se agitam como fotógrafos em busca do melhor ângulo de Lewis Hamilton. Alguns vigiam a porta de entrada da instituição bancária. Um descarado tenta furar a fila. “Na minha frente não entra”, grita um senhor forte com cara de policial.
10h50. O calor fica mais intenso, e o cansaço dá seu primeiro sinal. Penso em tirar a máscara. Uma pergunta me incomoda: Será que sobreviverei até à linha de chegada? E, para aumentar meu desespero, alguém grita lá atrás: “Essa fila não anda, não?”
11h10. Enquanto faço minhas contas (duas horas em pé), a fila se mexe subitamente. Meu vizinho quase beija minha nuca. Olho para trás com cara de zangado. Ele se faz de desentendido.
11h17. O Sol tinindo no meu rosto, a camisa úmida de suor. Fileiro de primeira viagem, esqueci-me de trazer um boné ou um guarda-chuva. E senti na pele a utilidade dos lenços. Meu oásis agora é só uma sala com cadeira e ar-condicionado.
11h30. Nuvens mal-encaradas ameaçam a estabilidade da fila. Olho para os lados, e não vejo onde me abrigar. Os dois orelhões de um velho telefone público conjugado já estão ocupados. Um poste já me salvou do sol, mas não me salvaria na chuva.
11h35. Sem hesitar, ela dá o ar de sua desgraça. Fina, mas fazendo todo mundo correr à procura de um abrigo que não existe. Acho uma brecha sob o guarda-sol do vendedor de água mineral, de quem, alguns minutos antes, recusara uma garrafinha. A fila se desfaz, e a rua vira literalmente um deserto.
11h50. O Sol reaparece, e o cenário ganha cor novamente. Avisto a porta de entrada do banco e acredito na ilusão do oásis.
11h53. Avanço três metros. Olho pra trás e conto as milhas que percorri, mesmo achando que não saía do lugar. Recupero a energia e a coragem. Na fila preferencial, convenço-me de que sou um “terceirão” de primeira viagem e de que vou completar o percurso.
12h05. Na reta de chegada, imagino a bandeira quadriculada tremulando. E a torcida gritando: Vai, vai! Sinto vontade de levantar os dois braços como fazem os pilotos da F-1 e gritar: Yeah!
12h10. Subo ao pódio. Agora é só esperar o troféu. Minha língua lambe os lábios como se saboreasse o champanha. Num breve devaneio, os gritos da arquibancada me convencem de que sou um vencedor.
12h11. A funcionária que cuida da entrada faz o sinal que esperei por cerca de três horas. Mede minha temperatura e me deixa entrar.
12h12. Sem nenhuma pressa, passo pela porta giratória como se ela fosse só minha.
12h13. Estou dentro da agência. Exatamente como imaginava: um oásis.
Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.
(*) Publicado no blog do ED WILSON em 17 de julho de 2020