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A gente somos nós

Por Eloy Melonio, contista, cronista, poeta e letrista, e membro da APB (Academia Poética Brasileira)

Parece que hoje somos mais “a gente” do que “nós”.

Em outras palavras: o trono pronominal de “nós” está ameaçado pela força expressiva de “a gente”, que — há um bom tempo — domina a cena da linguagem informal. Essa situação pode passar a falsa ideia do “tanto faz, tanto fez”, não é mesmo? Por isso, vale lembrar: nós somos nós, e a gente é a gente. 

A ideia de tratar desse assunto nasceu de um triálogo num programa de TV. O âncora anuncia: “A gente agora vai chamar…”. Na sequência, o repórter: “O delegado falou com a gente sobre…”. E o entrevistado: “A intenção da gente era convocar…”. 

Em questão de minutos, “a gente” encarnou três personagens sintáticas numa interlocução jornalística. Tal constatação me motivou a observar mais atentamente a fala das pessoas em contextos diferenciados. E aí pensei: se a gente tem uma missão, então somos nós que devemos encará-la.

E que missão é essa?!

Calma aí! Missão aqui é só uma isca semântica para prender sua atenção. No fundo, a ideia é entender, aceitar ou rejeitar alguns exageros da velha mania de criar algo de que não se precisa. E, acredite: tem muita gente querendo inventar uma roda que seja mais redonda do que a roda que roda por aí há muitos e muitos séculos.

Que tal, então, navegarmos as águas maneiras do coloquialismo? Fique sabendo que, nessa travessia, a música e a poesia são ondas cobertas pela espuma da informalidade. No crachá dessas navegantes, a explicação: LICENÇA POÉTICA. E aí vem o samba e canta o amor: “A gente se encontra no olhar/ A gente tem tanto querer” (Beth Carvalho). E o rock surfa um protesto: “A gente não quer só comida, diversão e arte/ A gente quer saída para qualquer parte” (Titãs). E nessa vibe — subindo e descendo — a gente vai se virando na vida e na arte.

Vê-se facilmente que “a gente” está dominando o script dessa peça comunicativa até mesmo quando não é exigida ou esperada. É certo que, em situações formais, ainda existe uma catraca barrando a sua entrada. Mesmo assim, ela não perde seu espírito plural de autoafirmacão: “A gente somos o que quisermos ser”.

Com toda essa força, acho que nem a redação do ENEM escapa à sua impetuosidade, dependendo do tema proposto.

Uma certeza me diz que nada mais surpreende no reino das palavras. Com elas, criamos narrativas para todo tipo de situação. E, por falar em “narrativa”, essa danadinha é um bom exemplo de desprestígio, pois, ocupantes da tribuna política fazem dela “gato e sapato”. E, na boca de um “louco”, pode causar danos irreparáveis.

Nada contra a comunicação informal, desde que ela suba ao palco apenas na cena que lhe é reservada. Especialmente porque suas palavras também são tijolinhos dessa construção chamada convívio social. Por isso mesmo, — repito — elas são a praia da poesia e da música, onde passeiam descontraidamente, segundo os versos da saudosa Cássia Eller: “Palavras, apenas/ Palavras, pequenas/ Palavras, momentos”.

Não se pode esquecer a belíssima asserção da profa. Adriana Falcão: “Os poetas classificam as palavras pela alma porque gostam de brincar com elas, e, para brincar com elas, é preciso ter intimidade primeiro” (Pequeno dicionário de palavras ao vento).

Pois é,  sem intimidade, nossas amigas não passam de letra e som — soltas ao vento ou submissas ao espírito do momento. O problema surge quando são manipuladas para provocar confusão, fazer guerras. E aí lembro a lição dos hippies dos anos 60: “Make love, not war”.

Voltando aos nossos dias, quero mostrar a praia das vaciladas gramaticais, onde a linguagem informal faz topless sob nuvens carrancudas. A intenção aqui é apenas mostrar as pegadas quase invisíveis da norma culta vilipendiada.

Queiramos ou não, temos de reconhecer a força da linguagem informal, que admite o uso de gírias, frases estranhas, erros (intencionais ou não). E que tudo isso reside em criar o inusitado. Não se fala falando, fala? Não se pensa pensando, pensa? Mas, de repente, a gente começou a “chegar chegando”. 

Uma paradinha rápida para emoldurar a intimidade de que nos fala a profa. Adriana Falcão. E, para isso, ninguém melhor que um poeta da estirpe de Salgado Maranhão, que diz dizendo: “Nenhum pássaro canta para si próprio” (Pedra de Encantaria, ed. 7 LETRAS, p. 18).

Essa estrutura verbal tem uma força semântica impressionante. Antes do desfile da Camisa Verde e Branco (SP), um repórter perguntou à presidente qual era a sua mensagem para os componentes de sua escola de samba. Sem titubear, ela explode em motivação: “Passar, passando”.

Jamais imaginei que “sexta” (sexta-feira) pudesse virar um verbo. Mas, eufóricas com fim de semana, as pessoas anunciam: “Sextou!” 

Estranho mesmo é que muita gente não está mais indo nem chegando aos lugares. Vão no cinema, chegam no shopping. Até “um avião da FAB, trazendo brasileiros resgatados da guerra Israel-Hamas, chegou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo” (jan/2024), segundo um repórter de TV.

Atenção agora, porque estas são de lascar: “este” e “esse” já não sabem quem vêm antes ou depois. E, confusos, podem terminar numa festa pop para a qual não foram convidados. E como estão perdidos alguns advérbios de lugar, que, igualmente, não sabem mais “aonde” estão nem “onde” querem chegar!

Estranho mesmo é o que está acontecendo com “todos” — o todo-poderoso do ministério da inclusão. Parece que nosso amigo já não se sente suficientemente forte para segurar “toda a galera”. À sua sombra, seus sósias assumem papéis supostamente equivalentes à sua natureza associativa.

Finalmente, a verdade é que “a gente” se sente parte de um todo quando nos acolhem e nos respeitam.

E aí soltamos todos o grito da vitória: “É nós!”

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