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Precisamos mesmo falar do Futuro?

Por Lícia da Hora, professora do Curso de Artes Visuais do IFMA.

Fotografia: Adson Carvalho

O mês de dezembro parecia não terminar. Já contava dia 29, sexta-feira. Estava à procura do livro recém-lançado de Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro. Cheguei, no final da tarde, ao charmoso “Sebo e Bar” do Chico Discos. Fui recebida com acolhimento naquele local que resiste no Centro Histórico. Ali a Cidade não deixou de ser, ela é. O espaço tem uma elegância peculiar, cuja riqueza maior não está nos frequentadores, mas na figura singular do Chico, que recepciona com seu sorriso tímido e olhar atento os clientes e amigos que ali chegam à procura de música, leitura e boa conversa.

Fui informada por uma amiga que naquele lugar estariam dois exemplares do livro de Dyl. Comprei os dois. No dia seguinte, os dois livros estavam comigo na Praia do Olho D`Água. Sentada à mesa, comecei a ler primeiro a parte final do livro, em que o autor anuncia a sua biografia. Li com tristeza: Eldimir Faustino da Silva Junior decidiu parar com as atividades da escrita e do teatro há três anos. Nas palavras do autor, tornou-se um “desartista”.

Antes de avançar sobre os poemas e mergulhar no conteúdo sobre o Futuro que estava lançado ali, quis entender o que é ser um “desartista”, pois esta palavra me inquietou. Minha amiga que me acompanhava naquela tarde é muito generosa e atuante na área da Cultura, teve a paciência de dialogar comigo que sou professora por ofício, mas também uma pessoa curiosa e que adora aprender. Pedi a ela que me falasse mais sobre o que é o ofício de ser artista em um país que dá ibope para qualquer subcelebridade e escarra em louça portuguesa seus artistas.

Nos lançamos a falar sobre a realidade de ser artista no Maranhão. E lá fui eu escutar a voz política do admirável artista Beto Ehong, de quem sou fã, num vídeo que viralizou ao final de dezembro: uma crítica potente e necessária no apagar das luzes de Natal. Beto realizou críticas a Carlos Brandão e Eduardo Braide por atrasos no pagamento das atrações culturais, pois, o Governo do Estado do Maranhão e a Prefeitura Municipal de São Luís estão em débito com os artistas. Beto não economizou críticas a Flávio Dino e à ausência de políticas culturais mais produtivas e transparentes durante o tempo de sua gestão.

Voltei ao termo “desartista” e entendi que o anúncio de Dyl estava presente em Beto Ehong e em tantos outros artistas que adoramos acompanhar o trabalho nesta cidade e neste país. No poema Jornada, Dyl apresenta-se como se fosse ele mesmo, despido em cansaço. Ele parece ali dialogar diretamente comigo que queria entender o porquê de ele ser um “desartista”.

Na infância fui poeta

Na juventude um palhaço

Na vida adulta fui ator

Na velhice um faquir

A vida é hipnose

Vivo num país historicamente organizado pela

                                                               esperança

Notável especialista em começar do zero

(Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro)

E foi assim que adentrei a leitura de sua poesia. Não é um texto fácil de ser lido, ele te petrifica nas primeiras páginas. O ar poluído da cidade de São Luís nos asfixia junto com a poesia de Dyl. Morremos lentamente. Sua poesia nos diz sem rodeios, morremos lentamente e de uma forma esquisita numa “estranha época”. Dyl nos lembra o que muitos teimam em querer esquecer, como se tudo tivesse sido conto de ficção, rememorando a realidade e o vazio da vida na pandemia.

 “estranha época de mortes caudalosas e lives que crescem como mato alto sobre túmulo” (Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro).

É curioso que, mesmo que eu ainda não tivesse o interesse em refletir sobre a conexão das duas obras, a de Celso e a de Dyl, fui provocada a fazer, pois li as duas na mesma semana. A primeira dentro de casa tirando a poeira de livros; a segunda com os pés na areia olhando o horizonte. Que horizonte nos reserva o Futuro? É a questão inquietante que atravessa estas obras, cada uma a sua maneira e forma peculiar. Os dois poetas falam das angústias da vida em cidades abandonadas, vazias, e, ao mesmo tempo, querem encontrar algum rastro de beleza.

Dyl escreve de São Paulo. É nítido o barulho daquela cidade na sua escrita, não somente o barulho, mas também o vazio que ela produz nas pessoas que ali vivem e nas que não vivem. Mas não necessariamente é somente o vazio de São Paulo que nos toca o poeta, sua escrita também alcança São Luís. É o vazio dentro da gente em qualquer experiência nas cidades. É do que enche, transborda, esvazia e corre na cidade da alma. Deixo a seguir um trechinho do poema Distância.

toda vez que retorno

 a cidade está mais vazia

 [   ]

quem nela vive só não percebe

toda essa dimensão

porque também está

na ordem do esvaziamento

assim como quem

a enxerga de longe

(Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro)

A obra de Dyl nos provoca a refletir profundamente a existência neste mundo empobrecido e distópico. Na aceleração dos corpos frágeis pela cidade que se tocam e se repelem, que rastros ficam? O que perece nos fragmentos do corpo que vaga no tempo produtivo da cidade? Estamos correndo desorientados e desamparados no tempo de um mundo com relógios por toda parte, mas “pobre de experiências” como nos lembra mais uma vez Walter Benjamin.

Caminhamos apressadamente pela cidade e fingimos não ver a miséria humanitária e a opulência do agronegócio. Talvez fingir não seja a palavra adequada, mas como nos joga na cara o Poeta:

O ridículo de todos os dias é que dá olhos de ver (Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro)

Não queremos ver, não queremos sentir, não temos tempo na pobreza destes tempos de aguçar os sentidos para enxergar a catástrofe do rio que corre em direção ao Futuro que nos mata de sede. E o poeta está lá com os dedos sobre nossas pálpebras nos abrindo os olhos:

O fim está

Entrando na gente

No momento que olho para o horizonte

e vejo doze navios ancorados (Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro)

O que sobra, afinal? A resposta tem ironia, sarcasmo e a miséria de uma época que se anuncia ridícula.

“E agora, em nossa Era, foi-se o riso e ficaram as piadas” (Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro)

Celso gritou: A cidade já era!

Dyl falou: O poema já era!

O que querem estes dois poetas nos alardeando sobre o Futuro? São dois apocalípticos? Profetizam o fim dos tempos? Eles pretendem nos acelerar ao Futuro ou nos desapressar no presente? Nos pedem para ver o horizonte do futuro no passado? Querem de nós as lições do passado? De que tempo afinal eles nos falam?

Que lucidez poética é esta que rasga a carne da gente que só quer seguir festejando e fingindo que vivemos um Tempo Novo a cada ano que se segue? Por que estes dois poetas não me deixaram dormir na aparência da beleza da virada do tempo? Eu só queria serpentinas para dançar e uva passas na comida. Mas me serviram a lembrança daquela taça que Danilo Serejo nos disse: O brinde de vocês tem nosso sangue.

O que a gente faz para deixar de ser bebido?

O que separa o Futuro na Poesia de Celso de 2013 do Futuro na Poesia de Dyl de 2023? O que significa para nós uma década?

Não tenho pretensões de respostas. Mas os Artistas maranhenses estão nas ruas desde o dia 3 de janeiro de 2024 cobrando o que lhes é de direito. Demarcam seus corpos políticos nos espaços dos podres poderes que querem lhes beber inteiros.

Eu respirei. Conclui a leitura, mas não as reflexões. Olhei para o horizonte em direção ao mar da Praia do Olho D`Água. Avistei doze navios ancorados aguardando serem atracados no Porto da Vale, empresa multinacional que nos tirou o ar, o mar, o rio, o riso, a vida, nos tirou Dona Maria Máxima.

Eu queria só falar da poesia neste texto, mas nem mesmo estes dois poetas conseguiram tal façanha. Eles nos mostram o quanto a poesia é também literatura, sociedade, arte, história, política, formas da atividade humana. Poesia é residual.

Encerro meus escritos por aqui com um trecho do poema O pequeno diálogo no meio da tarde. Ele me tocou de um jeito bonito, como de alguém que procura vestígios de Beleza na Feiúra dos tempos:

– Se você quer apalpar a Beleza, se ponha entre. (Dyl Pires, Ninguém Quer o Futuro)

Referências:

Borges, Celso. O Futuro Tem Coração Antigo. São Luís, Editora Pitomba, 2013.

Pires, Dyl. Ninguém quer o futuro. São Paulo, Editora Urutau, 2023.

Adson Carvalho é fotógrafo, graduado em Artes Visuais (IFMA) e Ciências Sociais (UFMA). Atualmente é estudante do Mestrado em Ciências Sociais (PPGCSoc-UFMA). Tem se destacado com pesquisas e exposições na área da fotografia. Realiza parceria com Lícia da Hora entre as poéticas de Escritos e Imagens.

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