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Um caminho, dois olhares

Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.

São 6h15 de uma manhã que prenuncia um sábado claro e quente. Trajo bermuda, camisa de malha e sandálias havaianas. E me visto com um leve arrepio para percorrer o trecho até a padaria do Ferreira, que fica num conjunto residencial a vinte minutos do meu. Sim, faço caminhadas toda semana, mas devidamente equipado.E nunca aos sábados.

Desço a rua da minha casa e logo cruzo a fronteira do Parque Shalom. Passo na frente dos condomínios Barcelona e Turim e avisto a subida da Avenida Principal do Cohajap.

A primeira pessoa que vejo é um senhor numa bicicleta velha. Por causa da subida, ele desce da bike (bicicleta velha é bike?) e passa a empurrá-la. Mais adiante, ele para na frente de uma casa e encosta o veículo de duas rodas na calçada. Na garupa, uma caixa de papelão guarda duas garrafas com um líquido da cor de vinagre de maçã. Pergunto-lhe o que elas contêm. “Cachaça da terra”, responde. E me oferece uma garrafa, pois a outra já estava encomendada. Recuso a oferta porque meu foco no momento é derivado de trigo.

Ainda no Cohajap, sigo até o cruzamento com outra avenida, também Principal (esquisito, não?!). Neste ponto, à minha direita, a Associação dos Moradores. E, aqui, a exuberância da natureza: amendoeiras gigantesdemarcam a área entre a associação e a rua. Juro que nunca as tinha percebido como agora. Contorno a rua e me deparo com uma ladeirinha que abre o caminho para outra rua. Logo na esquina, a fachada da escola Portal do Saber.

Na entrada da escola, três homens falam alto. Um deles, recém-chegado, solta a voz em tom de desafio: “Quero ver alguém chegar aqui mais cedo do que eu!”. Com respiração branda, gravo a cena na minha memória.

Sigo o meu itinerário. A rua, agora reta e nivelada, está vazia. Nem uma alma para se dar bom-dia. Passo na frente da casa de Seu Elias, um “homem de Deus” que não vejo há anos e “irmão” dos meus tempos na Igreja Batista Vale do Jordão, no Parque Atenas. Foi meu primeiro revisor quando eu escrevia “A verdade que liberta” (1999), livro de cunho evangelístico. Uma de suas lições sempre ressurge quando escrevo. “Você come Mateus e quem mais?”, brincava. Não aceitava “como” antes de um nome próprio. Não porque fosse um deslize gramatical, mas por sua cacofonia. Quando leio algo assim, tenho vontade de orar pelo escritor desavisado.

A padaria está a um quarteirão daqui. Nem o pulmão nem as pernas esboçam algum tipo de desconforto. Ôpa! Estou na linha de chegada. Só mais alguns passos e… Entro e saúdo o dono do estabelecimento: “E aí, Ferreira!”Sempre gentil, ele responde: “Oi, bom dia, irmão!”

“Irmão?! Sim, por que não?” (Minha esposa não acredita, mas, às vezes, eu converso comigo mesmo).

Peço ao balconista o manjar do meu café da manhã: dois bolinhos de tapioca com erva-doce (Hummmm!), três pães de queijo e uma fatia de bolo de macaxeira. Enquanto me dirijo ao caixa, cantarolo a música do carioca Latino: “Hoje é festa lá no meu apê”.

Saio da padaria e dou de cara com o Sol, ainda tímido, mas já incomodando a Lua, que está encerrando seu expediente. Dá até pena vê-la pálida, ofuscada pelos raios do rei. Mas não posso alimentar essa discussão agora porque ambos abrigam versos da minha lavra poética, com uma leve vantagem para a Lua, mais atraente aos olhos dos poetas.

As almas vivas ainda não deram as caras na rua. Preparo-me para o caminho de volta, seguindo o mesmo roteiro. “Mas não o mesmo cenário!”, aviso-me a mim, navegante solitário neste mar de surpresas. Diante da casa do irmão Elias, certa reverência atiça palavras carinhosamente silenciosas. Um “que-Deus-o-guarde” se ensaia entre meus lábios.

Ainda nessa rua, uma moça vestida numa bata branca sai de sua casa. O motoboy que a espera lhe entrega um capacete, e ela monta na garupa da Honda 150. E seguem rua abaixo, provavelmente para algum hospital ou clínica.

Na porta da escola, reencontro o orgulhoso empregado que chega antes do horário. Faço questão de cumprimentá-lo. Puxo conversa e lhe digo que ouvi o que falavam alguns minutos antes. Ele me diz o seu nome e que é um dos vigias da escola. E acrescenta que, honestamente, nunca faltou nem chegou atrasado “ao serviço”. Deixo clara a minha admiração por seu compromisso com sua dignidade.

De um ponto elevado, aprecio o outro lado da associação dos moradores. O gramado do campo de futebol mais verdinho do que o verde da Bandeira Nacional. E as palmeiras de babaçu oferecemabrigo aos periquitos jandaias, sabiás e bem-te-vis. E, no ar, imagino o bailado dos versos da Canção do Exílio.

Chego à Avenida Principal do Cohajap, e uma descida me saúda com intimidade. O senhor da bicicleta se despede do cliente— um idoso de uns oitenta anos que segura firme o par de garrafas. Uma cena que lembra Ayrton Senna, quando erguia a taça de vencedor nas corridas de Fórmula 1.

Mais abaixo, uma tubulação de esgoto vomita sujeira que escorre de um lado ao outro da avenida, exigindo de mim mais cuidado por causa das sandálias. Esse bueiro é um velho conhecido da vizinhança e um desprezado pelas autoridades sanitárias.

Minha respiração acelera, anunciando que minha casa está quase à vista. E, aí, lembro-me dos meus filhos quando― voltando da escola ao meio-dia (1983/85)― passávamos por um lixão na Av. Mário Andreazza, na Cohama. Em coro, cantavam assim: “Tamo chegando/ Tan-tan-tan-tan”. E só paravam quando entrávamos na rua principal do Habitacional Turu.

Caminho pela calçada dos condomínios com nomes europeus. E, por aqui, nenhum brasileiro à vista. Parece que estão “todos” (todas e todes) em Brasília. Dobro à esquerda, e à direita, como se estivesse na curva do “S”, em Interlagos. E vejo a fileira de pés de ipê no canteiro que divide a rua em duas partes. Na calçada e no asfalto, flores roxas e cor-de-rosa se fingem de tapete. Finalmente, o curto trecho da Rua V-12 até a minha casa.

Aqui, confirmo a ideia de que, numa segunda leitura, as palavras de um livro podem ter outros significados, assim como, numa avenida, os sinais de trânsito da ida não são iguais aos da volta. E, num devaneio, chego a pensar em fazer o Caminho de Santiago algum dia.

6h45. Sento-me à mesa e me pergunto: Por que não faço isso mais vezes? O que vi e senti daria uma boa crônica, não daria?

E não posso me esquecer de agradecer, caro(a) leitor(a), sua tão agradável companhia.

Imagem destacada capturada aqui

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