Discreto morador de um prédio localizado no cobiçado reduto imobiliário de São Luís segredou ao blog uma situação inusitada.
Apesar de todas as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das diretrizes do Governo do Maranhão para o uso de máscaras, um dos funcionários do referido condomínio trabalha durante os seus turnos sem o equipamento de proteção.
Evangélico sectário, o porteiro está sempre acompanhado de uma bíblia enorme e ouve com frequência os programas de rádio da Igreja Universal do Reino de Deus.
O síndico do prédio, bolsonarista dos mais radicais, até agora não tomou providências para adequar o funcionário às orientações da OMS. Vez por outra, o gerente do condomínio, no alto do seu apartamento, solta da sacada o berro “mito” quando o presidente Jair Bolsonaro faz pronunciamentos em rede nacional de rádio e TV.
As fontes serão mantidas em sigilo, principalmente para proteger o emprego do funcionário da portaria, que pode sofrer represálias.
A Península, que na Geografia é rigorosamente a Ponta d’Areia, reúne os condomínios de apartamentos mais caros do Maranhão, com preços exorbitantes até mesmo se comparados à realidade do mercado imobiliário nacional.
Para lá houve a transferência dos chamados “novos ricos”. Embora seja o lugar mais caro e luxuoso de São Luís, a Península vive as contradições da cidade: esgotos transbordantes, ruas esburacadas e os carros-pipa socorrendo a falta d’água.
Nesse lugar exótico o deputado federal Edilázio Junior (PSD) proclamou com bastante antecedência o isolamento social da elite ludovicense, ao se contrapor de forma sórdida ao projeto de um porto que ligaria a Ponta d’Areia à Baixada Maranhense (reveja aqui).
O que interessa?
Indo além dos aspectos pitorescos do fato, o que mais importa é analisar como os tons do fascismo reúnem pessoas de classes sociais distintas e vidas economicamente opostas.
O síndico com espírito burguês está sintonizado nos mesmos ideais do evangélico da Universal do Reino de Deus que nos seus dias de turno pega ônibus, sem máscara, para se deslocar entre o condomínio de luxo onde trabalha e a sua casa na periferia de São Luís.
Do topo ao teto, as ideias fascistas encontram abrigo em diferentes classes sociais mediante discursos e práticas antigas sempre renovadas, fazendo eco nas novas gerações: (1) a volta ao passado de respeito aos valores e às tradições da família ocidental cristã; (2) a ideia fixa de construir um inimigo que precisa ser destruído – o comunismo; e (3) a perspectiva de futuro – o Brasil voltará a ser grande novamente.
Tudo isso sistematizado em dois bordões encaixados na promessa de que a vida será melhor no reino do bolsonarismo. Na campanha eleitoral bradavam “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”; na gestão, “Pátria amada Brasil”.
Apesar do tom nacionalista, os contornos do fascismo à brasileira incorporam um severo grau de submissão geopolítica, principalmente em relação aos Estados Unidos e Israel, no processo de alinhamento à onda conservadora que varre o mundo.
Para Trump é preciso destruir os mexicanos invasores e o terrorismo islâmico. Bolsonaro mira suas armas nos comunistas e na esquerda em geral; ou seja, o inimigo revisitado que já estava presente na Doutrina de Segurança Nacional, um dos pilares do golpe militar de 1964.
A ideia de criar um inimigo (e eliminá-lo!) serve para manter o clima de guerra necessário à alimentação ao fascismo. Vem daí o interesse pela flexibilização do uso de armas para abastecer a indústria bélica na esteira da aproximação da família do presidente com as milícias.
É, pois, esse caldo cultural que fascina tanto o síndico quanto o porteiro. Eles se encontram no ódio às mulheres libertárias, aos artistas, pobres, negros, índios, ambientalistas, gays em geral, a China etc. Todo esse conjunto de personagens é julgado e condenado à eliminação.
Correlato ao governo autoritário, o bolsonarismo referenda no seu protótipo de família a base da tirania: o pai opressor, a mulher submissa e os filhos obedientes.
Nas madrugadas, quanto todos nós estamos dormindo, o porteiro ouve no rádio repetidas vezes o pastor da Universal pregar o ódio maquiado de amor. Essa mensagem chega depois em outros formatos de mídia pelo WhatApp e vai sendo compartilhado infinitamente.
Assim, o fascismo opera dentro das subjetividades, nos ambientes mais profundos do animal humano.
O porteiro e o síndico também surfam na onda obscurantista de negação da Ciência e do Jornalismo. Ambos detestam o noticiário, repudiam a verdade, têm ojeriza aos critérios objetivos e desprezam a pesquisa. De quebra, querem o SUS e a Universidade pública privatizada.
Eles preferem meias verdades e mentiras inteiras a uma reportagem com base em fatos reais. Vale a crença no lugar da notícia ou da descoberta científica.
Nessa temporalidade conservadora, a luta de classes, que teoricamente oporia o síndico de espírito burguês e o trabalhador da portaria, perde a batalha para a unidade entre ricos e pobres em nome da antipolítica materializada em vários componentes: ódio, revanchismo, descrédito nas instituições (Judiciário, Ciência, Jornalismo etc), fundamentalismo religioso, ressentimento…
Os tons fascistas necessitam ainda de uma permanente fogueira acesa com ofensas e caricaturas proferidas pelos protagonistas do próprio governo. Essa é uma das formas de manter a resistência paralisada, presa à bolha conservadora, em especial nas redes sociais.
Aquilo que era latente em um terço da população brasileira e no espírito do síndico da Península aflora na representatividade do presidente eleito pelo voto direto. Burgueses e proletários regozijam-se no “mito” depravado que usa o nome de Deus em vão, agride, ameaça, xinga e despreza até mesmo seus aliados.
Imagem destacada / reprodução / capturada neste site /
11 respostas em “Condomínio da Península tem síndico bolsonarista e porteiro sem máscara”
Isso que podemos chamar de bálsamo para hidratar nossa mente, com texto tão rico em conteúdo e que dispensa qualquer tipo de retoque.
Informação sob forma de literatura!
Excelente, amado mestre Ed Wilson!
Walkir Marinho – jornalista
Muito obrigado pela leitura atenta meu caro Walkir Marinho.
Uma análise objetiva onde desmistifica o “canto da sereia” – e, paralelamente, denuncia a ingenuidade do proletário e a fidelidade escrachada do pequeno-burguês à figura do mitomaníaco – que encanta pela mentira e embrutece a verdade; sendo que, a verdade, constitui-se em símbolo necessário à existência social de um povo que sonha ter condições mínimas para superar seu histórico antagonismo classista e saborear o mínimo de dignidade. A lógica desse governo é sim, tentar demolir o Estado Democrático de Direito e moldá-lo sob os auspícios do ideário do fascista. Parabéns, Ed Wilsom, por sua sagaz e inequívoca opinião sobre a estratégia desse desgoverno fascista e as terríveis consequências produzidas ao povo diante de seu discurso carregado de ódio!
Valeu pelo complemento do texto e incentivos. Vamos em frente. Resistência!
Parabéns, seu texto ficou excelente
Muito obrigado pelo incentivo.
Excelente artigo! Uma boa leitura para que possamos olhar o que está acontecendo ao nosso redor. Parabéns, professor!
Grato pela leitura atenta, minha cara Fernanda.
Gostei da sua análise. O texto é impecável. As constatações são tristes e preocupantes.
Obrigado, Franci. Tenho estudado um pouco o fascismo para tentar entender a nossa realidade atual.
Parabéns pelo texto, mestre Ed Wilson. Uma crônica ácida construída de formas leves, as quais, somente os grandes escritores têm o domínio. Domínio que você demonstra ter igualmente sobre o conteúdo da complexa conjuntura. Da imbecilidade, do cinismo, da desfaçatez e de vários outros adjetivos que são insuficientes para qualificar esse polo que atingiu o poder pelo voto popular, mas que, desgraçadamente, nada tem de popular. Eles são a mais fina expressão do capitalismo em uma profunda crise – quiçá tão catastrófica que nos leve finalmente a alcançar o fim desses modo de produzir a vida tão anti humano, tão praticante da morte, na original expressão do genocida Bolsonaro. E por isso, por causa da natureza desse sistema anti humano e de sua profunda crise, o irracionalismo toma conta das pessoas e permite ocorrer essa contradição que tão brilhantemente descrevestes na tua crônica.