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O uso do azulejo como objeto de higienização no Brasil colonial

Lavar as mãos e a limpeza do corpo em geral são duas anotações relevantes na obra “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, texto fundamental sobre a escravidão e o patriarcado no processo de colonização do Brasil.

Para entender a introdução do azulejo associado a higienização é necessário observar o contexto histórico e as diferenças culturais entre os dominadores e os dominados.

Nos idos do século XV as primeiras levas dos colonizadores conheceram nos povos indígenas o hábito de tomar banho várias vezes por dia na fartura dos rios.

Já entre os europeus, os baixos padrões de higiene ainda eram notados entre as elites vários séculos depois do início da descoberta da América.

“Em princípios do século XIX – informa um cronista alemão citado por Lowie – ainda se encontravam pessoas na Alemanha que em toda a sua vida não lembravam de ter tomado banho uma única vez. Os franceses não se achavam, a esse respeito, em condições superiores às dos seus vizinhos. Ao contrário.” (FREYRE, 2003, p. 181-182)

Em substituição à lavagem das mãos a borrifação do álcool perfumado era uma das formas de atenuar a sujeira.

“O autor de Primitive society recorda que a elegante rainha Margarida de Navarra passava uma semana inteira sem lavar as mãos; que o rei Luis XIV quando lavava as suas era com um pouco de álcool perfumado, uns borrifos apenas; que um manual francês de etiqueta do século XVII aconselhava o leitor a lavar as mãos uma vez por dia e o rosto quase com a mesma frequência […] (FREYRE, 2003, p. 181-182)

Se os índios, acostumados ao banho várias vezes ao dia, tinham muito a ensinar sobre higiene aos colonizadores, em outros patamares as normas de higiene foram introduzidas pelos africanos, especialmente na Península Ibérica, quando da presença dos mouros.

Os mouros ou sarracenos são originários do norte da África (hoje Marrocos e Argélia). Convertidos ao islamismo, eles deixaram um legado em diversas áreas do conhecimento para a Espanha e Portugal: agricultura, matemática, astronomia, navegação, culinária, técnicas de construção, no vestuário e nos hábitos de higiene.

Gilberto Freyre registra, entre as contribuições dos mouros na engenharia, a introdução do azulejo.

“Os artífices coloniais, a quem deve o Brasil o traçado das suas primeiras habitações, igrejas, fontes e padrões de interesse artístico, foram homens criados dentro da tradição mourisca. De suas mãos, recolhemos a herança preciosa do azulejo, traço de cultura em que insistimos devido a sua íntima ligação com a higiene e a vida da família em Portugal e no Brasil. Mais que simples decoração […], o azulejo mourisco representava na vida doméstica do português e na do seu descendente brasileiro dos tempos coloniais a sobrevivência daquele gosto pelo asseio, pela limpeza, pela água, daquele quase instinto ou senso de higiene tropical, tão vivo no mouro.” (FREYRE, 2003, p. 300)

O ritual sanitário dos mouros incluía também os propalados “banhos de gamela” ou de canoa, ratificando o gosto pela limpeza do corpo, bem como a valorização da água corrente nas partes externas das casas-grandes.

Assim, o recorte da cultura moura sobre higiene introduziu o azulejo não só como peça decorativa, mas sobretudo como um revestimento capaz de dar mais frescor aos ambientes internos e por ser de fácil lustro e limpeza.

Do ponto de vista cultural, cabe mencionar, com base em Gilberto Freyre, o extremo contraste de hábitos profiláticos entre os mouros e os cristãos habitantes da Península Ibérica.

“Conde, em sua história do domínio árabe na Espanha, tantas vezes citada por Buckle, retrata os cristão peninsulares, isto é, os intransigentes, dos séculos VIII e IX, como indivíduos que nunca tomavam banho, nem lavavam a roupa, nem a tiravam do corpo senão podre, largando aos pedaços. O horror à água, o desleixo pela higiene do corpo e do vestuário permaneceram entre os portugueses.” (Freyre, 2003, p. 301)

Como se pode observar, determinados padrões culturais relacionados a higiene são diferenciados entre povos de variadas regiões mundo afora.

Os estereótipos, por sua vez, acabam reforçando certos preconceitos. No Brasil atual, as ofensas contra negros e índios, além de violentas e racistas, demonstram um profundo desconhecimento das práticas de higiene desses povos originários da América e da África que têm muito a ensinar para os brancos europeus.

Imagem destacada / azulejo português / capturada na dissertação de mestrado de “Azulejo na arquitetura brasileira: os painéis de Athos Bulcão”, de Ingrid Moura Wanderley (USP, 2006) disponível aqui