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Mundo de papel: conheça o Sebo do Arteiro

Ed Wilson Araújo

(2ª reportagem especial da série sobre os sebos de São Luís)

Todas as imagens foram cedidas pelo perfil @sebodoarteiro

Ele já foi seminarista, bancário, comerciário das Casas Pernambucanas, vendedor de cachorro quente na praça Deodoro, sindicalista, empresário e sebista. De todas essas profissões, o livro sempre esteve presente na vida de José Arteiro Cordeiro Muniz, um dos mais antigos sebistas de São Luís.

Não há um consenso sobre os usos da expressão sebo. Ela pode servir para designar algo surrado, usado. A pessoa desse ramo de atividade é também designada como alfarrabista ou vendedor de obras antigas. No geral, sebo é o lugar de venda, compra ou troca livros, discos, revistas e filmes usados e faz referência a algo ensebado ou velho de tanto uso e manipulação ao longo do tempo. (leia aqui a reportagem sobre o “sebo promíscuo” Chico Discos)

O Sebo do Arteiro, hoje localizado na rua do Sol, 441B, no Centro Histórico, agrega livraria e também um restaurante self service, mas tudo começou no povoado Centro do Meio, em Pio XII, município da Região Central do Maranhão.

Juventude na fachada do atual endereço, na rua do Sol, Centro Histórico

Parte do gosto pela leitura veio pela influência do seu pai, um cearense ligado às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica que gostava de livros e o pequeno Arteiro se interessava pelas histórias de cavalaria. Quando frequentou o seminário católico, em Bacabal, teve acesso à biblioteca dos padres. “Foi lá que encontrei a primeira edição do livro ‘A terra é nossa?’, onde havia uma entrevista com Manoel da Conceição, uma lenda da luta camponesa do Maranhão”, pontuou Muniz.

As leituras na biblioteca do convento e da prefeitura tonificaram a sua vida em uma cidade pequena, depois turbinada quando mudou para São Luís.

Clientela de esquerda

Morando na capital, suas experiências como livreiro “ambulante” começaram na década de 1990, quando fornecia livros e revistas para professores universitários, estudantes e militantes da esquerda e nos eventos do campo progressista. Certa vez, os sindicalistas Washington Oliveira e Cândida da Costa deram a sugestão para eu fornecer livros e fui tomando gosto”, lembrou.

Entre tantas atividades, foi vendedor de loja de roupas e se envolveu na construção do Sindicato dos Comerciários, uma entidade forte nos anos 1990 em São Luís. Já filiado ao PT, ele começou a vender botons e a badalada da revista Teoria & Debate, além de obras das editoras Perseu Abramo, Contraponto e Xamã.

Arteiro, antes do sebo, foi “banqueiro” na UFMA

Da venda ambulante passou a um ponto fixo, em uma antiga banca do cantor e compositor Josias Sobrinho, localizada no Centro de Ciências Sociais (CCSo), o Castelão, do campus do Bacanga, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), onde o seu irmão, Armando Muniz, também implantou a livraria “Prazer de Ler”, até hoje na ativa, no Centro de Ciências Humanas (CCH).

Na banca da UFMA ele ampliou o número de editoras e começou a atender pedidos sob encomenda dos clientes universitários. “A diferença entre ser funcionário de um banco e de uma loja de confecções é que nesses lugares você tem clientes e no ramo de livro faço amigos”, detalhou.

Livraria Atenas

O aprendizado como empresário ocorreu na criação da Livraria Atenas, quando passou a trabalhar com cerca de 100 editoras, em um prédio alugado, na esquina da rua do Sol com São João. O negócio expandiu até a implantação de uma filial em Imperatriz, que na época despontava como pólo universitário e tinha a motivação do escritor e proprietário da Editora Ética Adalberto Franklin.

Cliente fiel na Livraria Atenas

Mas, a crise econômica de 2008 e um imbróglio com um imóvel no Centro Histórico abalaram as finanças e a Livraria Atenas quebrou, deixando boas memórias.

De empresário ele passou a empregado. Teve uma rápida passagem como funcionário de uma grande rede de livraria em um shopping de São Luís. Depois foi para Porto Velho, onde tentou montar um sebo. Não deu certo e voltou para a Ilha do Amor, onde montou um restaurante e agregou a sobra do acervo da antiga Livraria Atenas. Nesse ponto atual ele já está fixo há 15 anos, congregando sebo, livraria e restaurante.

Sebo na rua do Sol é também restaurante

Para Muniz, o comércio de livros, revistas e discos não é só um lugar onde as pessoas vão comprar ou vender artefatos analógicos e sim um espaço educativo e ponto de encontro de amigos, leitores e curiosos. Na perspectiva pedagógica, uma das iniciativas da Livraria Atenas foi a sessão de cinema que chegou a exibir o documentário “Democracia em vertigem”, sobre o golpe contra a então presidenta Dilma Roussef.

Livraria Atenas reunia amigos(as) leitoras em eventos e bate papo descontraído

Outra característica é a itinerância. O sebo, além do ponto fixo, participa de diversos eventos nos espaços da cidade, como as feiras de livros usados, exposições, eventos políticos e culturais. “Já estou me preparando para a 1ª Feira do Livro da Área Itaqui-Bacanga, de 8 a 10 de agosto, na praça do Anjo da Guarda”, anunciou.

Quanto ao público e repertório de obras, em síntese, é variado. Livros novos e usados de áreas diversas são sempre comprados e vendidos, além de discos de vinil, CDs, DVDs e revistas de quadrinhos (HQs). Em algumas ocasiões o acervo é revigorado com a aquisição de bibliotecas particulares de pessoas falecidas.

O poeta Celso Borges sempre presente nas itinerâncias dos sebos
Arteiro Muniz, o jornalista Zema Ribeiro e o professor sebista
Natanael Máximo (Natan) em uma das feiras de sebistas de São Luís

Os preços variam. “Certa vez fiz uma queima de estoque vendendo livros por R$ 1,00 (um real). Foi sucesso total. “Tinha cliente que comprava 10 livros de 1 real e lá no acervo principal adquiria mais 100,00”, detalhou. Além das promoções, o empreendimento também faz doações para pessoas físicas e bibliotecas.

Valorização dos sebistas

Questionado sobre a viabilidade financeira do sebo, Arteiro Muniz afirmou que a sua gangorra empresarial, cheia de altos e baixos, é fruto de uma paixão por livros onde não cabe o planejamento empresarial rigoroso.

Ele reclama também do apoio do poder público. Experimentado no ramo livreiro, o sebista tem uma relação de amor e ódio com a Feira do Livro de São Luís (FeliS), o maior evento do ramo livreiro na capital.

O economista ludovicense Antonio Vieira mora na Espanha, mas
sempre que vem ao Maranhão mata a saudade do Sebo do Arteiro
Sebo do Arteiro: o eterno retorno anunciado nas redes sociais

O ideal para a FeliS, pondera, seria uma relação mais participativa entre a organização, os livreiros e os sebistas e também uma dotação orçamentária exclusiva para o evento. A concepção da feira já vem pronta da administração municipal, sem diálogo prévio com as pessoas que vivem da atividade comercial do livro, aí somos obrigados a aceitar”, advertiu. 

Ele avalia que a perseverança deu mais visibilidade aos sebistas nas duas últimas feiras, mas nada extraordinário, considerando quase duas décadas da FeliS.

Com a experiência de quem já esteve dos dois lados do balcão – empresário livreiro e sebista – Arteiro Muniz faz as contas e opta pelo sebo. O comércio do livro, controlado pelas grandes redes dos shoppings e as gigantes tipo Amazon, tornou inviável a sobrevivência das livrarias tradicionais e as outras de médio e pequeno porte, por isso os sebos são mais viáveis. “No sebo, o preço e a multiplicidade das opções de livros novos e usados, além das outras mercadorias, ajudam a manejar e dinamizar as vendas”, explicou.

Miguel no tapete de papel do vovô Arteiro

A justificativa de Muniz é certeira. Releia aqui texto do Blog do Ed Wilson “Livrarias fecham e Habib’s chega”

Em São Luís, restam poucas livrarias e os sebos se multiplicam, tanto quanto as amizades e as novas gerações de leitores e leitoras, conectando pessoas, conhecimento e esperança.

Nesse mundo transtornado pelo negacionismo, o neto de Arteiro, Miguel Veras, cresce no encantado mundo de papel idealizado pelo avô.

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Por que tem de ser assim?

Eloy Melonio*

“Ver e não crer” está para São Tomé assim como “concordar e não fazer” está para um monte de brasileiros. Se é mesmo assim, adivinhe então o que a moça da limpeza de uma farmácia fez com um saco de lixo, depois de varrer a área externa da loja?

Essa pergunta já é uma boa pista sobre o tema desta crônica. Então, vamos lá. Lixo e luxo, atitude responsável, rachadinha, mulheres no mercado de trabalho?

Antes, algumas ponderações. A primeira é que o mundo parece estar mesmo de cabeça para baixo. Pelo menos é o que se percebe quando se vê e se ouve o que as pessoas estão falando e fazendo por aí. Nas redes sociais, muita gente opinando sobre tudo, e se mostrando por inteiro. Se o falatório é geral, o que dizer do fazetório?

E, assim, vamos direto ao que interessa. Nessa intenção, aproveito para repetir o que um amigo recentemente me confidenciou: Estou me esforçando muito mas muito mesmo! para fazer as coisas da forma mais ética possível.

Aí perguntei a mim mesmo: Tá ouvindo isso?

Sabe aquela pergunta que não quer calar? Pois é, essa máxima não envelhece e se torna, nestes dias de fake news, ainda mais jovem e atual. E a pergunta, carregada de indignação, é: Por que tem de ser assim?

Uma campanha da Rede Globo, estrelada por Mateus Solano, mostra uma situação-problema e o que é esperado de cada um de nós em relação a ela. Em seguida, o astro global, para vergonha nacional, constata: “Todo mundo concorda, mas nem todo mundo faz”. E conclui com uma afirmação que faz muita gente boa tremer na base: “Quem concorda faz”.

Certo dia, enquanto pensava na vida, William Bonner (JN, 19-8-2019), depois de dar algumas notícias sobre a “loucura humana”, soltou esta: “Às vezes a gente tem a sensação de que o mundo anda para trás”. Peguei minha caneta e anotei. Não muito longe dos estúdios Globo (Rio de Janeiro), meu amigo e escritor Jáder Cavalcante, na apresentação de seu “Decadência Humana” (EDUFMA, 2019), revela a razão da temática do livro: meu total desapontamento com a sociedade que me rodeia e nos seres que a habitam.

Neste ponto, peço ao amigo leitor que feche os olhos por um minuto e “se imagine” nas duas situações que vou apresentar, e faça a si mesmo a minha pergunta, tentando respondê-la.

Uma senhora levando o filho para a escola, em seu Renault Fluence, dirige com uma ou com as duas mãos? Segura o celular com a mão direita ou a esquerda? Seu filhinho de nove anos está na poltrona do passageiro ou no banco de trás?

O dono do Honda Civic, estacionando na vaga preferencial de “gestante” na frente de uma loja de brinquedos, é uma mulher com uma “barrigona” ou um homem jovem, barbudo e sarado?

Pode parecer exagero, mas presenciei cada uma dessas cenas. Considerando tudo o que disse antes, você deve ter acertado todas as perguntas. E poderia também enumerar outras mais. Se afiar a memória, vai se lembrar de um sem-número de situações semelhantes. Ou ver, se sair por aí observando as pessoas e seus comportamentos.

Dizem que esse é o nosso “jeitinho” de fazer e/ou resolver as coisas. Que é cultural, que tá na nossa veia. Excetuando o amigo de que falei antes, acho que somos todos um pouquinho assim. E eu já vou avisando, antes de ser julgado, que também não sou tão “certinho” como pode parecer. Mas, repito, estou tentando seguir o exemplo do meu amigo.

Falando da minha “seara”, muita gente acha que nós, poetas, somos pessoas da mais nobre estirpe. Mas que nada! Somos pessoas comuns, parecidos com o João e a Maria. E, com relação a essa questão, algumas vezes eu ouço o conselho da saudosa Cássia Eller, e também “peço a Deus um pouco de malandragem”. No bom sentido, se é que isso existe.

Se sairmos dos espaços públicos e adentrarmos os escritórios e gabinetes do mundo político-corporativo, aí mesmo é que a pobrezinha da pergunta vai ter de trabalhar.

E, assim, meu amigo, infelizmente a moça da farmácia pode até concordar com o que Mateus Solano disse sobre “atitude irresponsável”, mas fez exatamente o contrário. Jogou o saco de lixo no meio da rua, a dois passos da lixeira que estava à margem de uma movimentada avenida de nossa cidade.

Verdade seja dita, “bons exemplos são raros”. Quando vi a cena, repeti silenciosamente a perguntinha do título: Por que tem de ser assim?

Tanto que, se você achar uma cueca cheia de dinheiro no banheiro do shopping, não tente devolvê-la ao dono. Ele não vai aparecer para recebê-la.

*Eloy Melonio é professor, escritor, poeta e compositor.

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Uma (pequena) grande ação

Eloy Melonio

Professor, escritor, poeta e compositor

O que Zé Raimundo e Neil Armstrong têm em comum?

Quase todo mundo conhece a história de Neil Armstrong, famoso astronauta americano da Apollo 11 e o primeiro homem a pisar na Lua, em 20 de julho de 1969.

Mas a história de Zé Raimundo, um comerciante de bairro, com sua quitandinha de uma janela, protegida por grade, talvez apenas duas ou três pessoas a conheçam.

Para início de conversa, não foi fácil entender direito o que ele fazia. Cheguei a pensar em várias possibilidades. Como geralmente cruzamos um com o outro durante nossas caminhadas matinais, via-o ― geralmente acompanhado de sua esposa ― carregando sacos plásticos com alguma coisa pesada dentro. Até aí, nada de errado. Mas o fato inusitado é que, algumas vezes, parecia vê-lo agachado, como se estivesse pegando coisas do chão. Cheguei a imaginar que talvez fosse aquela débil mania de algumas pessoas idosas.

Quando me lembro disso, sinto um pouco de vergonha. A verdade é que nós geralmente não lemos direito o texto, ou lemos sem atentar ao contexto. E aí, o resultado da leitura é um desastre.

Certo dia, saí mais tarde para caminhar. E tive a sorte de não cruzar, mas andar paralelamente na mesma direção que ele; eu, de um lado da rua, e ele, na calçada da avenida. E por alguns minutos pude observá-lo mais atentamente. Aí sim, texto e contexto agora davam sentido à minha leitura.

Neil Armstrong tem uma biografia de dar inveja. Zé Raimundo, apenas um anônimo cidadão de bem. O primeiro já não está mais aqui; o segundo é apenas um entre nós.

Seja Neil ou Zé, o que importa é o que cada um pôde ou pode legar à humanidade, à sua cidade.

Palavras e atitudes nos inspiram a mudar o enredo de nossas vidas. Vindas de gente importante, ou de gente comum. Lições que temos a dar, lições que temos a aprender. Recentemente alguém me disse: “Tenho me esforçado para fazer as coisas da forma mais correta possível”. Ou seja: estacionar na vaga certa, não jogar lixo na rua, dar bom dia ao vizinho… Pensei comigo: Que lição! Preciso aprendê-la depressa!

Nosso velho mundo carece de boas lições. De gente que faz a diferença, que deixa exemplos. Gente como Chico Mendes, Zélia Arns, Marielle Franco. E tantos outros anônimos que andam por aí, como o cidadão que devolveu ao dono a carteira com dois mil reais que este deixara no banco da praça.

E quanto ao nosso personagem, o que faz de tão especial?

Nas manhãs ensolaradas de nossa estação seca, ele simplesmente enche garrafas pet (2l) com água e sai molhando plantinhas à margem da avenida. Algumas das quais ele mesmo plantou. Plantinhas que não são vistas pelos gestores públicos, pelos comerciantes da região, nem pelos transeuntes. E que um dia darão sombra e abrigo a quem passar por ali.

Não sei quantos passos Neil Armstrong deu na superfície da Lua. Só sei que, quase diariamente, Zé Raimundo dá mais de duzentos para cumprir a missão a que se propôs. E tudo isso sem “posts” nas redes sociais para impressionar os amigos. Um trabalho de formiguinha: constante, silencioso, resoluto.

Seu Zé Raimundo talvez nem saiba quem foi Neil Armstrong, mas imita direitinho seus passos aqui na Terra. E, orgulhoso, poderia dizer ao final de cada caminhada: “Uma pequena ação para mim, uma grande lição para meus concidadãos”.

Imagem: Eloy Melonio / Cajueiro plantado por Zé Raimundo, e do qual já comeu o fruto.