Luiz Eduardo Neves dos Santos
Doutor em Geografia e professor da UFMA
O filósofo italiano Franco Berardi tem se dedicado a entender o fenômeno do semiocapitalismo, uma transformação radical na esfera da linguagem e da comunicação, oriunda da inteligência artificial de autômatos que influem nas relações sociais, escravizando indivíduos no mundo virtual, tornando-os submissos ao poder da financeirização econômica.
A simulação da realidade via infosfera torna potente o mundo da abstração, uma dependência das máquinas, que segundo Berardi em sua obra Asfixia, provoca um efeito colateral, isto é, a reação à abstração, um retorno à vitalidade do corpo e a reafirmação agressiva de identidades, sejam elas nacionais, raciais ou religiosas, o que provoca o alastramento do ódio, do rancor e da perversidade fascista. Afirma Berardi: “perdida toda fé na universalidade da razão, negado o acesso à esfera da tomada de decisões, as pessoas se agarram a identidades imaginárias baseadas na nação, na raça e na religião”. O que Bifo quer dizer é que o excesso de automação e controle da vida social se metamorfoseia em uma forma de neurototalitarismo como ordem, provocando caos político e mental no cotidiano.
Impossível não lembrar de Berardi ao olhar para o 1º turno das eleições do Brasil ocorrido no último domingo. Pouco mais de 50 milhões de pessoas, acorrentadas aos seus smartphones e engolidas pelo poder do semiocapitalismo, votaram no presidente Jair Bolsonaro, alguém que nos últimos 45 meses tem feito uma administração desastrosa, mas que se notabilizou por utilizar o método da linguagem neurototalitária, produzindo uma consistente guerra cultural no mundo virtual, se comunicando com grupos reacionários, conservadores, fundamentalistas e racistas, um verdadeiro barril de pólvora fascista.
Tais grupos sociais não se importam com a história de vida pública de Bolsonaro, alguém que nunca gostou muito de trabalhar, que em quase 3 décadas como parlamentar foi medíocre, que enriqueceu – e ensinou seus filhos – roubando dinheiro dos próprios assessores, nomeando funcionários fantasmas em seu gabinete, além de fraudar notas fiscais na Câmara dos Deputados. Tampouco ligam para o fato de seu presidente ser ligado a grupos de extermínio da polícia carioca, hoje conhecidos como milícias ou ainda assumir posturas misóginas, racistas, lgbtfóbicas e aporofóbicas contra milhões de brasileiros.
No mundo simulado e paralelo em que essas pessoas vivem, o “mito” não possui responsabilidade alguma sobre os escândalos de corrupção de seu governo, nem no alastramento da fome, não tem nada a ver com a absoluta ausência de programas nas áreas da Educação, Saúde, Habitação e Segurança Pública, nos juros altíssimos, na elevada inflação que o país vive e nos recordes de desmatamento na floresta amazônica e cerrado. Frequentemente terceirizam as culpas e as responsabilidades pelo fracasso do governo, inclusive na pandemia, em que morreram quase 700 mil pessoas, intervalo de tempo em que o chefe do Executivo insistiu em tratamentos ineficazes, duvidou da Ciência, das vacinas, demorou a comprá-las, debochou dos enfermos que morriam por asfixia e nunca se consternou e/ou se solidarizou com as famílias diante do morticínio de brasileiros pela doença.
Pelo exposto, se instaurou no Brasil a partir de 2018 uma ditadura da ignorância, para usar outra expressão de Berardi, em que se naturalizou e se banalizou todo tipo de perversidade, reforçando a vocação brasileira de país violento, racista e desigual. Aceitam e disseminam absurdos e infâmias concretas e discursivas: afirmam que o governo é honesto e ético, que 33 milhões de pessoas em situação de grave insegurança alimentar é mentira, que a Esquerda e o PT vão instalar uma ditadura comunista, além de fechar templos e igrejas, dizem ainda que eles representam o bem e que o processo eleitoral e as urnas eletrônicas não são confiáveis. Falam ainda em globalismo e em marxismo cultural a fim de chamar atenção para um plano global comunista e cruel.
O fato é que os apoiadores de Bolsonaro são incapazes de fazer uma defesa honesta do governo, só sabem vociferar a ladainha moralista, eivada de preconceito, de que Lula é ladrão e ex-presidiário, mas se esquecem que seu “mito” não possui prerrogativa de foro eterna e que brevemente as suas chances de ser processado e preso são altas. Muitos deturpam o Evangelho de Cristo, a exemplo de um pastor-coach que vi recentemente nas redes. Ao expor 5 motivos para não votar na Esquerda, fez uma defesa contumaz da propriedade privada, citando Locke, colocando-a como sagrada à luz da Palavra de Deus, mas omitindo que Jesus é partilha e não segregação.
A bolsonarização do Brasil se assemelha muito ao que Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento, chamaram de nova barbárie, em que os indivíduos se encontram completamente anulados pelos poderes econômicos e cada vez mais distantes de valores verdadeiramente humanos, só que agora aparecem controlados e adestrados pela inteligência artificial, que comandam suas subjetividades, emoções e comportamentos. Por isso são inimigos da reflexão e da crítica, não costumam pensar, não dialogam, pois são condicionados para o desejo do consumo, da desinformação, do supérfluo, para a fé cega no lucro, para a crença num “deus bolsonarista” e suas pautas morais/de costumes e para a disseminação potente do ódio racial e de classe.
Nossa tarefa é lutar permanentemente contra todas as coisas horríveis e repugnantes que esses grupos defendem e representam, e nem precisa ser do campo progressista não, basta ter bom senso e tolerância, combater injustiças sociais, saber dialogar, ser antirracista, ter humanidade e amar o próximo.
Imagem destacada / Jair Bolsonaro na barbearia / Foto capturada aqui