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Pega na mentira!

Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.

Bem que a “arte de mentir” podia se transformar em ciência, tal qual a filosofia e a sociologia. A princípio, parece uma coisa absurda, mas…¹

Essa ideia me afetou sobremaneira quando percebi que a palavra “mentira” assumia cada vez mais o protagonismo na campanha eleitoral para presidente da República deste ano. E ela só não entrará para a lista das mais consultadas em 2022 por tratar-se de um termo comum da nossa língua.

A verdade é que todos nós mentimos um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Levante uma das mãos quem nunca mentiu! As duas, quem mente apenas de vez em quando! Calma, gente! Não vou pedir pra ninguém ficar de pé e se reconhecer um mentiroso nato.

Essa constatação me fez lembrar um livro de inglês que definia “white lie” (mentira branca) como aquela “mentirinha” que não ofende, não machuca e não causa danos.

Desde muito cedo, aprendemos com nossos pais o verdadeiro significado da mentira: Você não está mentindo, está? E sobre ela — aqui, uma personagem — há muito a falar. Artista ou cientista? Para os mentirosos contumazes, é artista, pois mentem com arte e naturalidade.

Na arena das campanhas eleitorais, verdade e mentira tradicionalmente se defrontam. E, na troca de acusações, o lado podre da política se camufla, e “todos” se apresentam como os verdadeiros defensores dos famigerados pobres e oprimidos.

Engana-se quem ainda pensa que a Mentira tem pernas curtas. Há muito já trocou suas perninhas por dedinhos ágeis no clicar das teclas do notebook e do celular. Hoje — além das palavras — leva consigo fotos e vídeos de seus desafetos. E, assim como “a fé move montanhas”, a mentira atinge em cheio a reputação de seus alvos. Nem sempre no endereço certo, porque isso não está acima dos interesses em jogo.

Em “Pega na Mentira” (1981) Erasmo Carlos faz uma gozação com a nossa personagem, invertendo verdades incontestáveis (“Vi Papai Noel numa favela/ O Brasil não gosta de novela”). Por sua vez, Tim Maia, em sua “Vale Tudo” (1990), poderia facilmente trocar “homem e mulher” por verdade e mentira, porque essas duas também não dançam o mesmo funk num mesmo salão.

E se, em ano de eleição, trocássemos a data de “primeiro de abril” para o primeiro domingo de outubro? “Não, não, e não! Uma ideia condenável”, diria o presidente do Superior Tribunal da Política.

Impossível é não perceber que a Mentira nunca foi tão cobiçada como nestas eleições. E que essa disputa é para ver quem consegue usá-la da maneira mais criativa, com o maior poder de destruição. E olha que a pobrezinha ralou muito para chegar a essa posição de destaque. Seu “pai” deve estar orgulhoso da filha que já foi muito condenada. E, que — de forma irreversível — atingiu um alto grau de empoderamento.

Não se pode menosprezar a força inspiradora da Mentira — hoje uma das mais solicitadas influenciadoras digitais, com milhões de seguidores.

Um dos candidatos ao pleito de 30 de outubro dá uma explicação que lhe foi passada por sua mãe: “A verdade engatinha, a mentira voa”. Só que “voar”, naquela época, não chegava perto do que acontece nesta era digital. Sem limites de velocidade ou alcance, a Mentira voa alto em todas as direções na companhia dos mais desprezíveis princípios morais e éticos.

Nunca em sua história, a Mentira esbanjou tanto “ódio” como nesta campanha eleitoral. Sim, porque ninguém fala de suas próprias mentiras. O mentiroso é (e sempre será) o outro. No marketing eleitoral, a acusação, muitas vezes, não tem sustentação. Mas — uma vez lançada — dificilmente dá meia volta. Recentemente, vi um vídeo em que um “especialista” falava sobre a necessidade de o político praticar e aprimorar sua habilidade para mentir. Ao final, a clássica conclusão: “Se você não aprender, você está na seara errada”.

O resultado de um curso de tão baixo nível moral são candidatos prometendo transformar pedras em pães e suor em vinho. E tudo deve parecer previsível e viável, acessível e fácil.

Foi justamente nesse embalo do “mente aqui, mente ali” que eu pensei na criação da “mentirologia”. O termo seria formado da união de duas palavras de origem diferente: “mentiri”, do satanêsinventar, e “logia”, do grego estudo.

Como numa valsa improvável (mentira pra cá, verdade pra lá), a dança política segue seu ritmo falacioso. Nem candidatos nem eleitores sabem aonde isso vai dar. E, livre de amarras, a Mentira cruza os espaços digitais das nossas tevês e smartphones a todo instante. Dia e noite, noite e dia — descaradamente! Se duvidar, já suplantou as malfaladas “ladrão” e “corrupto”  — donas do pedaço desde que criaram essa classe de representantes do povo.

No teatro da arte política, a Mentira assume um papel de invejável força assertiva. “Você é um mentiroso”, diz um acusador. Desse jeito, na bucha. Seja a vítima um senhor ou uma senhora com mais de setenta anos. E, aí, outra constatação simplista: a Mentira não tem idade, e nem carteira de identidade.

Quando assisto ao horário gratuito na TV, imagino-me dirigindo numa velha estrada  esburacada — uma espécie de “déjà vu”. Mesmo assim, assusto-me com a sinalização: curva mentirosa à esquerda, abismo enganoso à direita, lombada corrupta a 200m. Só me sinto calmo e seguro quando vejo uma placa branca com letras verdes: parada obrigatória para reflexão (com chá ou café).

Voltando à “mentirologia”, o estudo da mentira como fenômeno social poderia evoluir e desvendar os mistérios da coletividade mentirosa (atores e plateia). Modernamente, em nosso dialeto político, nossa anti-heroína já tem alguns primos e primas igualmente populares: ilação, narrativa, factoide — e a já consolidada anglo-brasileira “fake news”.

Nesse cipoal de “palavras” tresloucadas, impressiono-me com a capacidade de a Mentira ora se vestir com o branco da verdade, ora sujar a verdade com as cores rubras de sua alma.

Peço-lhe agora compreensão sobre o que vem a seguir. Nada mais que uma paráfrase digna de um mentiroso de alto nível: “Quem mente e ofende, e se perde nessa disputa, é otário ou um verdadeiro filho da puta”.

Arte, sim; marketing, não. Não se pode mais aceitar o vale-tudo desse monstro. Muito menos aplaudi-la ou idolatrá-la. Porque “barato não é o marido da barata”. E, assim, Erasmo e Tim estão perdoados sob a mediação de Fernando Pessoa (“O poeta é um fingidor”). Os marqueteiros — diabinhos por trás das cortinas — condenados a “cem anos de solidão”.

3 respostas em “Pega na mentira!”

Belo texto… Rico, criativo, inteligente. Parabéns….. Que o povo Brasileiro, não minta, não erre , ao dar seu disputado voto… Que fale s verdade, escolhendo o melhor canditado, pra dirigir o País… Vamos rezar…

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