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Padre Antônio Vieira: “No Maranhão até o sol e os céus mentem”

Amanhece o sol muito claro,
prometendo um formoso dia,
e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens,
e começa a chover como
no mais entranhado inverno.”
Sermão da Quinta Dominga da Quaresma

Vivendo no Maranhão, no período de 1652 a 1661, o padre Antônio Vieira interpretou uma parte do metabolismo de São Luís no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma .

No sermão consta a seguinte fábula: ao cair do céu, o diabo espatifou-se em vários pedaços e estes espalharam por diversos países da Europa, atribuindo a cada povo as características relacionadas às partes do corpo.

A cabeça do demo tombou na Espanha, daí serem os espanhóis “furiosos, altivos, e com arrogância graves”. O peito desabou na Itália, tornando os italianos “fabricadores de máquinas”. O ventre desmoronou na Alemanha, justificando a inclinação dos germanos à gula “e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça”.

Os pés, conta ainda a fábula, precipitaram na França, fazendo os franceses “pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de bailes”. Os dois braços com mãos e unhas grandes foram parar na Holanda e em Argel, justificando o espírito corsário daqueles povos.

Vizinho à Espanha, Portugal foi contemplado com o fragmento da cabeça mais precioso ao sermão – a língua, com seus vícios e o abecedário formulado por Drexélio. A língua dividiu-se em vários domínios lusos. Ao Maranhão, couberam as interpretações sobre a letra “M”, conforme explica Vieira:

Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M – Maranhão, M – murmurar, M – motejar, M – maldizer, M – malsinar, M – mexericar, e, sobretudo, M – mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente.

A leitura imediata da fábula, ao pé da letra, pode considerar uma pesada dose de preconceito e discriminação do autor sobre o Maranhão, mas o desenvolvimento do sermão é uma instigante construção dialética sobre os conceitos de verdade e mentira.

 “Vede se é certa a minha verdade: que não há verdade no Maranhão.” A frase mais popularizada no texto de Vieira – “no Maranhão até o sol e os céus mentem” – não se refere às posturas das pessoas, mas sim às intempéries do tempo: “Amanhece o sol muito claro, prometendo um formoso dia, e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover como no mais entranhado inverno.”

Quanto às outras palavras iniciadas pela letra “M”, elas denotam rir, gracejar, brincar, escarnecer, divertir-se, zombar, fofocar, intrigar e outros verbos que expressam em parte os conteúdos da conversação e dos qualificativos presentes na comunhão da vida pública e privada no cotidiano do maranhense.

Imagem destacada / colagem horizontal de duas fotos do céu de São Luís: a primeira foto azulada e a segunda cinza, indicando tempo fechado com ameaça de chuva / Fotos e montagem: Ed Wilson Araújo

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