Ed Wilson Araújo
Em primeiro lugar, é preciso dizer: as obras do PAC Cidades Históricas melhoraram o visual deplorável da praça Deodoro e da rua Grande, da praça João Lisboa e do largo do Carmo. Objetivamente, são mudanças essenciais, necessárias e cobradas faz tempo.
No entanto, passíveis de observação e crítica no intuito de provocar reflexão sobre as alterações no espaço urbano, assunto de interesse coletivo.
A crítica incide sobre a forma e o conteúdo das intervenções, em sua maioria feitas sem a participação das pessoas direta ou indiretamente afetadas pelas obras: moradores, frequentadores, comerciantes etc.
Há pouco diálogo entre os executores das obras e a população. Tão grave quanto a verticalidade na execução dos projetos é a falta de informações sobre a utilização do dinheiro público nas construções.
Uma cidade sem participação e transparência, dois aspectos fundamentais da gestão púbica democrática, deixa muito a desejar.
Sem mediações, as obras são tocadas de cima para baixo, atropelando o direito do cidadão de opinar sobre as alterações nos territórios de uso comum.
Certas obras violam até os conceitos e marcas simbólicas da cidade, configurando uma renovação que apaga a memória e destitui a urbe das suas pulsações humanas constituídas pelos sedimentos da matéria política, histórica, econômica e cultural.
Tomamos como primeiro exemplo a gloriosa reforma do complexo das praças Deodoro-Pantheon. Ficou bonito, é lógico, mas ali não há qualquer vestígio de um marco histórico da cidade – a Greve da Meia Passagem.
Se hoje os estudantes ainda usufruem daquela conquista de 1979, cujo palco principal foi a praça, a cidade perde uma referência histórica fundamental.
São tantas bolas de concreto e nenhuma placa sequer lembra o massacre contra os estudantes e a conquista da meia passagem com muita luta. É ou não uma forma de apagamento da memória da cidade?
Já na avenida Pedro II, a parte mais sofisticada do Centro Histórico, onde estão as sedes do Governo do Estado, da Prefeitura de São Luís, do Tribunal de Justiça e da Arquidiocese de São Luís, o animado Tambor de Crioula do Mestre Amaral foi execrado.
No local está inaugurada a praça em homenagem aos poetas, e o novo largo passa a ser um lugar primoroso para fotografar e usufruir do belo visual do rio Anil.
Mas, a retirada do tambor serve também para reflexão sobre o tipo de dispositivo cultural permitido e/ou deslocado no espaço urbano.
O abrigo da praça João Lisboa é outro equipamento sob ameaça, assim como as bancas de revista e os camelôs já empurrados da praça Deodoro para as transversais da rua Grande.
Em qualquer lugar do planeta, considerando a perspectiva das cidades históricas, o abrigo seria destruído e refeito em padrões modernos. Mesmo não sendo original da praça João Lisboa, ele merece requalificação, considerando os sentidos conotativo e denotativo do vocábulo “abrigo”, signo de acolhida, afeto, solidariedade, proteção e sociabilidade em geral.
Ocorre que em São Luís há um apego exagerado ao passado… um tal “reviver”. Aí, já que o abrigo não é “original”, passa a ser considerado um monstrengo e, por isso, deve ser demolido, quando deveria ser reconstruído em outros moldes, adaptado à realidade contemporânea sem qualquer prejuízo ao conjunto arquitetônico do entorno.
Salta aos olhos, ainda, a ferocidade dos inimigos do abrigo da João Lisboa que não se manifestam sobre a grilagem ampla, geral e irrestrita na cidade, patrocinada e organizada pelos endinheirados, que se apropriam dos terrenos à revelia das leis.
Queria ver, por exemplo, os iconoclastas do abrigo criticarem os latifundiários urbanos que se apossam de áreas valorizadas em São Luís para construir shoppings e galerias disfarçados de postos de gasolina. Esses sim, verdadeiros monstrengos, erguidos em qualquer lugar, sem respeito ao Impacto de Vizinhança, um dos dispositivos do Plano Diretor.
Por que os demolidores do abrigo não se manifestam sobre o posto de gasolina construído na margem da avenida Jerônimo de Albuquerque, em frente ao hospital São Domingos, colocando em risco centenas de pacientes e trabalhadores?!
Poderiam ainda aproveitar o ensejo para pedir a retirada do “prédio do BEM”, na rua do Egito, cujas obras estão marcadas por corrupção (leia aqui).
Está clara, portanto, uma certa discriminação ao escolher os adversários, na lógica de varrer do mapa alguns equipamentos não incorporados ao modo de ver aristocrático da elite escravocrata que dominou a cidade e ainda está presente hoje, em algumas cabeças.
Tal forma de pensar carrega o apego ao complexo de geriatria cultural que serve para justificar a dinamite no abrigo dos pobres, mas não vale para demolir a grilagem dos ricos em centenas de espaços privilegiados da cidade, feitos ilegalmente, com a leniência das autoridades.
A seletividade na ocupação do espaço urbano chegou ao antigo e famoso “Xirizal do Oscar Frota”, onde a dispersão das prostitutas no tradicional reduto das profissionais do sexo foi algo tão violento como derramar veneno para matar baratas.
O massacre dos pobres, putas e negros, não necessariamente nessa ordem, está nas raízes mais profundas do processo de discriminação e violência marcantes na formação de São Luís. Afinal, toda a beleza e a imponência dos casarões do Centro Histórico foram erguidas pela mão de obra escrava, gerando uma população de pedreiros e ajudantes mutilados, fruto das mais desumanas condições de trabalho.
Mas, estamos em outros tempos, das velhas práticas. “Agora vai”, ou melhor, é “São Luís em obras”. Na véspera da eleição, outra intervenção há muito tempo cobrada alcança a antiga parada de ônibus do Anel Viário, as barracas e os botecos do entorno. Trata-se de uma intervenção necessária, visando organizar aquela bagunça generalizada.
Como não temos informação amplamente divulgada sobre o projeto, a obra e o investimento do dinheiro público, esperamos que os comerciantes informais sejam reassentados no seu local de origem ou em outro ambiente, de forma a garantir as suas condições e meios de sobrevivência.
Quanto à nova obra do Anel Viário, cabe uma anotação sobre um dos equipamentos mais importantes do Centro Histórico – o Aterro do Bacanga. Aos poucos aquele espaço vai sendo ocupado por vários puxadinhos e arranjos, sem observar um consistente projeto arquitetônico já tantas vezes comentado em nossos escritos (leia aqui e mais aqui)
Cabe reiterar a crítica sobre a forma e o conteúdo das obras. Em cima da eleição colocam os tratores no Anel Viário desprezando o ganho estético, social e ambiental de um projeto arquitetônico bem mais utilitário para a cidade.
De volta ao tema central, observando bem os exemplos de remoção ou tentativas de eliminar as bancas de revista, os camelôs, as barracas do Anel Viário, o tambor do Mestre Amaral, o abrigo da João Lisboa e as putas do Xirizal do Oscar Frota, podemos refletir juntos sobre um relativo processo de higienização social no coração da cidade.
Parece haver um conceito de isolamento e guetização dos equipamentos e das pessoas não representativas do sentimento saudosista da elite escravocrata que mandava na cidade e ainda hoje tem seu pensamento vivo e entranhado em vários poderes oficiais.
Quanto às bancas de revista e similares, vamos pensar juntos….
São Luís, ainda agarrada ao equivocado epíteto de Atenas Brasileira, teve várias livrarias fechadas e está em curso uma verdadeira perseguição às bancas. Tais equipamentos não combinam mesmo com o visual “hipermoderno” da cidade “retrô” das avenidas e ruas remendadas por um asfalto do século 19 por onde trotam caminhonetes de luxo (leia aqui sobre livrarias fechadas).
Ademais, em meio a tanta celebração pela idoneidade literária da cidade, o Memorial Bandeira Tribuzzi foi desativado e não há notícia de onde foi parar o acervo do poeta autor do hino oficial de São Luís.
Assim, a cidade se movimenta com deslocamentos ou dispersões e reacomodações compulsórias. Os camelôs, por exemplo, vão se reagrupando de acordo com as novas regras de espacialização do comércio.
Geralmente, as obras fazem uma bela maquiagem na paisagem para ela ficar atrativa aos turistas e excluem as pessoas e equipamentos que vivem, sobrevivem, circulam e usufruem do espaço urbano.
A higienização social segue o rito de apagamento das marcas simbólicas e da memória da cidade, que precisa ser limpa, aspirada e lubrificada socialmente, seguindo padrões de uma certa forma de pensar cheia de contradições.
Então, o saneamento é seletivo. Limpa-se o Centro Histórico para embelezar a vista dos turistas e moradores que não podem tomar banho nas praias impróprias contaminadas pelos esgotos.
No curso da higienização social não é apenas a “Península” (leia aqui) que pretende se isolar. As obras do Centro Histórico estão “limpando” a cidade, onde erguem-se várias ilhas.
E se no Centro Histórico, onde estão as cabeças mais iluminadas e puras, a cidade é discriminatória, imagine na zona rural, onde a proposta de revisão do Plano Diretor pode ter repercussões gravíssimas na sustentabilidade da ilha toda no curto prazo!
Lá na “roça”, onde o capital da especulação imobiliária é voraz na concentração do mercado de terras, os conflitos são resolvidos com mais violência, a ferro e fogo.
Por fim, como o título do artigo é uma pergunta, tenho questionamentos no lugar de teses prontas. E para fazer jus ao primeiro parágrafo, reitero: todas as edificações feitas recentemente são fundamentais para qualificar o Centro Histórico e honrar o título de São Luís Patrimônio Cultural da Humanidade.
Minha única certeza, em se tratando de higienização e saneamento, é que estamos na cidade toda brilhosa com novas obras, mas cercados pelo mar de coliformes fecais.
A cidade limpa, higienizada, contém o germe da sua própria sujeira.
Imagem destacada / antigo abrigo da praça João Lisboa / capturada no site do jornal O Estado do Maranhão
9 respostas em “Estariam “higienizando” o Centro Histórico de São Luís?”
Uma verdadeira aula extraclasse de Geopolítica Social Ludovicense, cujas questões do pós teste, têm como resposta a letra D. “Todas as Alternativas Acima Estão Corretas”.
Interessante suas considerações, em minhas andanças pelo mundo, essas transformações acontecem. De morte a Sul, as higienizações acontecem, limpa-se tudo para dar um ar estético e coloca-se nos arredores longe dos olhos do cotidiano.
É a lógica da maioria das cidades, infelizmente.
Muito obrigado pela consideração, meu nobre Walkir Marinho.
Queria que todo ludovicense lesse esse artigo. Quem sabe os fizessem, ao menos, refletirem.
Obrigado pelo incentivo, caro João Lindoso.
na sociedade capitalista
as intervenções urbanas
são higienismos racistas
pois se fossem humanas
não seriam capitalistas
que ilhéu esta ilha ama?
e exceção não humaniza!
O ”Portal da Amazônia” também passa por essa ”limpeza” e com uma violência a mais, o ensinar ao povo, a se alto apagar das linhas histórias culturais. Em Imperatriz que se via barcos e peixes monumentos, retratando nosso rio Tocantins e fazendo o embelezar dos espaços comuns, hoje se vê trenzinhos feitos de toras de eucalipto, jardinagem em toras de eucalipto, cerquinhas de toras de eucalipto… nada disso impede o odor da extração de celulose, quando os ventos de lá batem para cá. Nada disso impede a morte e sofrimento dos peixes quando é devolvida a água ”tratada” de volta ao gigante ofegante. Nada disso impede as tragédias causadas pelas horrorosas e desembestadas tritrens.
No momento em que, quem sabe, esquecer-se de mim, ninguém mais me contará.
Olhemos, olhemos todxs e atentos, o que o capitalismo faz, até com a história.
Parabéns pelo artigo. Gostei muito
Obrigado, Rosalva Gomes, por informar do cenário aí em Imperatriz. A Suzano faz umas compensações ambientais só para gerar peças publicitárias e mascarar a degradação ambiental que ela provoca.