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A agonia de Upaon-Açu

Luiz Eduardo Neves dos Santos, Geógrafo, Professor Adjunto I da Universidade Federal do Maranhão (UFMA/CCHNST-Pinheiro)

Passadas duas décadas do século XXI, São Luís insiste em possuir uma sina incômoda: a da inoperância da gestão administrativa com sua consequente incapacidade no fomento de políticas públicas urbanas includentes. O resultado assombroso em não desempenhar esta tarefa é o de se viver em uma cidade fragmentada espacialmente, em que diferentes classes sociais se distribuem em territórios muito bem definidos e delimitados. 

Destarte, esta fragmentação congrega, num extremo, territórios com condomínios verticais e horizontais, enclaves em lugares onde a rua é apenas lugar de passagem – predominantemente de veículos automotivos – que margeia os muros altos e eletrificados, e dá acesso aos portões automáticos das propriedades. De outro lado, abrange os territórios periféricos, onde a rua é como uma extensão das casas, os bairros possuem intensa sociabilidade, as relações de vizinhança são ricas, conflitivas e por vezes também solidárias, há todo um tecido socioespacial com características específicas, próprias da cidade informal, com suas regras e normas, já que a presença do poder público é residual.

Embora se observe nítidas diferenças em territórios do espaço intraurbano ludovicense, delimitadas por distinções infraestruturais e de serviços aparentes, resultado de relações de poder, nota-se problemáticas onipresentes na quase totalidade do município e causa espanto a omissão dos poderes políticos instituídos, que parecem alheios às adversidades. 

Uma das mais impertinentes problemáticas ludovicenses é o deficitário abastecimento d’água. Composto por 3 sistemas de abastecimento interligados (Italuís/Sacavém-Batatã/Paciência I e II), com 285 poços profundos, São Luís padece com falta de água em milhares de lares cotidianamente, não é raro, por exemplo, que tubulações do Sistema Italuís – que abastece 60% da capital maranhense – sofra rupturas, afetando a vida de milhares de pessoas. 

Por isso, é bastante comum ainda que territórios na ilha, dotados de populações de todas as classes sociais, sejam abastecidos com carros-pipa, um negócio que se tornou lucrativo na cidade em virtude das graves falhas no abastecimento, fato que nos remete à Ana Jansen, figura poderosa da aristocracia maranhense no Oitocentos, detentora do monopólio da água em São Luís na época, período em que seus escravos vendiam água em carroças, oriunda das fontes de suas propriedades no Apicum e no Vinhais.

Não bastasse as deficiências no abastecimento de água, São Luís sofre por não tratar grande parte de seu esgoto. De acordo com os dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), São Luís possuía 47,7% da cidade ligada à rede coletora em 2018, ou seja, menos da metade da cidade estaria coberta pelos serviços de esgotamento sanitário, e apenas 11,04 % do esgoto era tratado. Não à toa, a balneabilidade das praias na cidade se encontra em estado quase sempre crítico, imprópria, a maior parte do ano, para o banho.

Independente do bairro, se proliferam na cidade bueiros estourados, as vezes sem tampas, ruas e avenidas esburacadas, esgotos à céu aberto sem manutenção, galerias insuficientes para o escoamento das águas pluviais, além de fundos de vale aterrados e rios poluídos. Os eventos climáticos extremos recentes, como variações bruscas entre calor, umidade e chuvas torrenciais, além de ventanias e ciclones localizados, só contribuem para piorar a situação de uma cidade que agoniza. 

Nas últimas décadas a cidade se expandiu muito – agravando os problemas – tanto em direção ao norte (Calhau, Renascença I e II, Ponta D’areia, Ponta do Farol, etc.) e leste (Cohab, Cohatrac, Turu, Forquilha, etc.) do município, bem como para os territórios do Itaqui-Bacanga (Anjo da Guarda, Fumacê, Jambeiro, Gapara, Mauro Fecury I e II, etc.) e também em direção aos manguezais e para outras áreas de proteção ambiental. 

A cidade se esfacela em meio ao aumento das desigualdades, o solo urbano – principalmente nos bairros de antigos conjuntos habitacionais, incluindo outros territórios que estão situados ao norte do município – se tornou uma mercadoria caríssima, o que possibilita a presença de um estoque de vazios urbanos murados que não param de valorizar pela especulação, além empreendimentos habitacionais prontos que não conseguem ser vendidos facilmente. Isto provocou um direcionamento de loteamentos e construções de novos condomínios e habitações para o município vizinho de São José de Ribamar através de avenidas como a General Arthur Carvalho e também a Holandeses/MA-203, onde os estoques de terra são maiores e mais baratos. Por outro lado, esse processo determinou o afastamento ainda maior de populações empobrecidas que residem em lugares cada vez mais distantes e deficitários de transportes, saneamento e outros equipamentos urbanos.

Em meio ao aumento da pobreza urbana, refletida no aumento expressivo de aglomerados subnormais, no qual a capital maranhense possui uma vergonhosa posição de destaque em escala nacional, se encontra na Câmara dos Vereadores a proposta de revisão do Plano Diretor Participativo do município. Lembrando que, enquanto instrumento jurídico, o Plano Diretor é norteador da política de desenvolvimento e de expansão urbana nos limites municipais.

Passadas dezenas de reuniões no Conselho da Cidade (CONCID) para a construção da proposta, um campo de forças e disputas se formou, de um lado o poder público e o empresariado do ramo imobiliário agiram com interesses comuns em detrimento das necessidades concretas da maior parte da população da cidade, representada por outros setores da sociedade civil no CONCID. Houve audiências públicas que geraram também acirrados debates, por fim foi apresentado um projeto de lei que pode ser visto como excludente, já que possui como objetivo primacial oferecer garantias jurídicas a implantação de um terminal portuário privado na baía de São Marcos, capitaneado por uma parceria entre a China Communications Construction Company (CCCC), maior empresa de infraestrutura da China e a Construtora nacional WTorre.

As condições geográficas da baía de São Marcos se mostram bastante favoráveis à acumulação de capital, já que existem objetos técnicos no território brasileiro que permitem o escoamento de um produção agrícola e mineira (interligação das Ferrovia Norte-Sul e Carajás-São Luís) em larga escala para os mais variados mercados do mundo via golfão maranhense. O discurso desenvolvimentista oriundo das empresas é sedutor, prevê a geração de 4 mil empregos diretos e investimentos na ordem de até R$ 2 bilhões na cidade. 

Estado e Município agem para que o empreendimento vingue, por isso urge a aprovação do Plano Diretor que propõe transformar o que hoje é parte da Zona Rural e suas diversas comunidades em Zona Urbana. O poder público com apoio jurídico já usou forças policiais para retirar à força moradores que se recusaram a sair de territórios, como o emblemático caso do Cajueiro, pois estes estariam ocupando lugares de propriedade privada. Este fenômeno, chamado por David Harvey de “Ajuste Espacial”, permite a criação de condições para uma hiperacumulação de capital em lugares específicos, criando desordem e caos, como a expulsão de habitantes locais de seus territórios, degradação ambiental e consequentemente a produção de uma diferenciação geográfica que concentra e tensiona forças produtivas x força de trabalho.

Além do poder público, os rentistas urbanos locais também se mostram a favor da construção do Porto São Luís. Mas, quais os interesses dos empreendedores do ramo imobiliário local na sua construção? Durante as audiências públicas e nas atas das reuniões do CONCID eles defenderam e votaram no sentido de ampliar a Zona Urbana. Os construtores miram uma nova frente territorial para auferirem lucros e rendas, representado por um território passível de valorização, isto é, uma área retroportuária que ocupará 1,5 milhões de m² na porção sul e sudoeste de São Luís, um novo negócio que servirá de sustentáculo aos objetivos do grande capital. Tais agentes, em seus discursos nas audiências, chegaram a afirmar que, caso haja a instalação do terminal portuário, São Luís poderá se tornar uma espécie de “Singapura brasileira”, por terem em comum o fato de serem espaços insulares de extensões parecidas, de vocação portuária e posição geográfica estratégica, o que configura um verdadeiro estelionato discursivo, haja vista as profundas diferenças na estrutura político-econômica, social e cultural entre os dois territórios.

Desta forma, há um grande e permanente embate nas cidades brasileiras, o conflito entre o capital imobiliário e os trabalhadores, que por conta da intensa expansão da fronteira urbana, transformam as maneiras de subsistência e habitação dos pobres, empurrados cada vez mais para lugares insalubres, inseguros e distantes. A legislação urbana de São Luís tem cumprido este nocivo papel, seja com os empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida em espaços isolados e sem infraestrutura no município, seja oferecendo as condições para a ocorrência da reprodução ampliada do capital, como no caso do Porto São Luís.

Portanto, é necessário expor o que vem acontecendo com a gestão e o planejamento urbano na grande ilha do Maranhão, que agoniza pelas desapropriações e despejos, pela violência e morte de habitantes pobres e pretos, que é incapaz de fomentar uma política pública estrutural de regularização fundiária, de criação novas habitações de interesse social e de captar e destinar recursos para a implantação de espaços de lazer, saúde e educação na periferia. É preciso agir de forma integrada ao pensar a cidade, unindo os diversos entes da federação em busca da alocação de recursos para mirar o essencial à cidade: os direitos usurpados historicamente das populações carentes, geralmente pessoas negras, qual seja o direito à moradia digna, à água potável, ao saneamento básico, ao ensino público em escolas de qualidade com merenda escolar diária e serviços de saúde pública acessíveis.

O poder público, sobretudo a Prefeitura de São Luís, é omissa em relação aos pobres e marginalizados da cidade, a consolidação da legislação urbana nas últimas quatro décadas ainda não serviram para mudar as estruturas da sociedade ludovicense. Embora se reconheça tentativas importantes, como a da instauração de Zonas de Interesse Social (desde o Plano Diretor e o Zoneamento de 1992) ou uma ampliação da participação de diferentes e diversificados setores e agentes da sociedade civil na formulação das leis (por conta do advento do Estatuto da Cidade a partir de 2001), na prática, a legislação tem sido inoperante em questões essenciais, como a não efetivação de instrumentos urbanísticos para dirimir desigualdades no espaço urbano. Da mesma forma, as leis se mostram eficientes em atender interesses da esfera privada, principalmente às ligadas ao setor imobiliário, como na ampliação no número de pavimentos destinados exclusivamente a estacionamentos em edifícios no ano de 2011, uma modificação ilegal na lei de Zoneamento.

Não se pode deixar de mencionar os movimentos de resistência na cidade, entidades sociais organizadas, intelectuais, rádios comunitárias, jornalistas, ativistas, sindicatos, ONG’s, populações atingidas por injustiças, e alguns setores da justiça e do Ministério Público tem assumido papeis centrais nas discussões sobre as leis e por isso, atuando de forma a fazer denúncias e contestações sobre quaisquer arbitrariedades e ilegalidades.

Somente assim, com intensa participação, sabendo atuar nas múltiplas arenas do debate público, se apropriando dos conhecimentos políticos e técnicos e compreendendo as contradições do lugar e sua articulação com o mundo, poderemos retirar São Luís do seu estado de agonia. E como o mestre Milton Santos nos ensinou, “o que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas (…) a que chamamos de tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações, relações e de novas ideias”. 

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