Categorias
notícia

Do romance “A peste” ao coronavírus: a literatura em tempos em epidemia

Por Marco Rodrigues, escritor e filósofo

A literatura não ficciona com o objetivo de transpor a realidade. A ficção não é uma simples alegoria do real, nem mesmo o real é matéria absoluta da ficção. Na verdade, torne-se inútil tentar dissolver essa possível dicotomia. Se compreendermos o real como aquilo que não podemos nos dissuadir, então o que dizer da ilusão enquanto aquilo que se acredita ser real quando, na verdade, não passa de simulação? A questão não é ser capaz de compreender em que instante esse liame tão tênue de fato impõe uma verdadeira divisão, alguma distinção suficiente, mas sim o que verdadeiramente importa no fim das contas, nessa tensão quiçá indelével. Esse paradoxo retroalimenta o fazer literário, o qual nos lança oscilantes de lá para cá, permitindo desobscurecer não o que está por ventura oculto, mas o que indiferente se faz na maior parte das vezes, mesmo encontrando-se pulsante diante de todos.

Em “A peste” (1947), o escritor e filósofo Albert Camus parece nos apresentar essa interessante dimensão que a literatura impulsiona. A obra começa descrevendo o quão tacanha e tranquila, embora frenética em sua rotina de trabalho, é a pequena cidade argelina de Oran, cujos concidadãos levam uma vida cotidiana e aparentemente sem grandes aspirações, a não ser enriquecer. Para Camus, trata-se apenas de uma cidade moderna, como qualquer outra, a qual se caracteriza por ser “aparentemente sem suspeitas”, como se nada fosse capaz de levantar a desconfiança mínima de que possa haver alguma coisa a mais para se ambicionar viver. Uma existência inteira não questionada não permite ampliar-se. Inteiramente tomados pelo hábito que se alicerça na rotina, automatizam-se na redução às suas atividades e raras distrações.  Na seguinte passagem, essa imagem se mostra do seguinte modo:

Dirão sem dúvida que nada disso é característico de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.

O que nos faz convite ao pensar é exatamente o que se diz na conclusão desse raciocínio: “por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber”. Então, o questionamento que precisa ser empreendido é o seguinte: o que é necessário saber para que apenas não nos devoremos ou possamos cair no insípido do hábito, para que com isso, por fim, seja possível sem obrigação amar?

Antes dessa passagem, o narrador declara que “uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre”. O “como” revela a natureza do sentido da existência, ou ainda, de tudo o que de certo modo máscara sua ausência de significado. Porém, é necessário deter-nos no último termo. A morte muito raramente parece ser uma grande preocupação quando nada parece ameaçar a vida, o que não significa dizer, por outro lado, que desse modo a vida esteja em evidência. Para isso, é preciso a eclosão de um grande acontecimento, cuja intensidade possa de modo voraz colocar em questão a vida diante do abismo de seu maior antagonismo, a morte. Com efeito, é exatamente o que ocorre com a chegada da peste.

Tal como na cidade chinesa de Wuhan, principal foco do coronavírus, Oran também é isolada completamente, por conta da peste. Ninguém pode sair ou adentrar a cidade. A doença é descrita como altamente violenta e letal. Tudo começa quando milhares de ratos aparecem e, em seguida, começam a morrer. Sem demora, também diversas pessoas vão sendo ceifadas pela doença, gradativamente. Sitiados, veem o desespero despertar sentimentos e preocupações jamais antes conscientes numa rotina banal, ou inexpressáveis por falta de contexto favorável a tais elucubrações. Uma epidemia nos obriga, sem dúvida, a refletir sobre o que estamos fazendo de nós mesmos, sobre o que temos nos tornado.

A experiência diante da morte de entes queridos, principalmente de crianças no esplendor da inocência, permite fazer emergir a possível ideia de uma total ausência de sentido para a existência. Essa consciência, apresentada no ensaio “O Mito de Sísifo” (1941), é o absurdo, uma importante chave de leitura da obra de Camus. Uma das consequências do absurdo é o suicídio. A outra é a compreensão que demonstra que o sentido da existência não é previamente dado, nem descoberto, mas livremente construído e estabelecido pelo próprio apelo humano. Com essa ambivalência, o romance nos faz vislumbrar o que há de mais elevado no pânico e no terror da desesperança diante da peste, mas, também, não deixa de apontar para uma ínfima e ainda possível esperança em continuar a lutar pela vida, numa resiliência quase incontornável.

Semelhante ao coronavírus, a peste se propaga na ficção de forma assustadoramente veloz, contudo de modo diferente, pois o grau de contaminação é proporcional à ocorrência de mortalidade. Chega-se ao ponto de não haver mais lugar para enterrar os cadáveres, tornando assim impraticável conduzir a vida em sua normalidade. De modo análogo, o coronavírus vem desencadeando terrível onda de paralisação em diversos setores da sociedade, inviabilizando diversas atividades e serviços, retirando do fluxo comum, outrossim, as nossas cidades modernas dependentes da rotina de produção permanente. Tal fenômeno reabriu recentemente, inclusive, nos E.U.A o debate sobre o papel do Estado e traz de volta a necessidade de uma saúde pública diante de políticas neoliberais de privatização, pondo em xeque a lógica do Estado mínimo, principalmente naquilo que se considera essencial à garantia da existência coletiva.

Em contrapartida, é preciso ressaltar que “A peste” é, além disso, uma metáfora para a ocupação nazista na França durante a II Guerra. Em tempos obscuros, despontam-se “pestes” também ideológicas, seguida de seus “ratos”, não apenas aquelas biologicamente nocivas.  Isso torna a obra de Camus um clássico exatamente pela perenidade de sua narrativa. É dessa maneira que a literatura nos eleva para além dos limites da mera ficção, expondo-nos a vida em suas mais diversas matizes e sutilezas.

Tão repentina quanto a sua aparição, no fim do romance a peste desaparece. Sendo anunciada a sua erradicação ao público, festeja-se nas ruas a reabertura da cidade, bem como o reencontro com os entes queridos separados pelo estado de sítio, e o retorno à rotina normal. Porém, Camus deixa-nos a necessidade da suspeita, aquela que na maior parte das vezes nos falta, uma vez que os mais perigosos “ratos” e as mais terríveis “pestes” parecem sempre permanecer a espreita e a espera, nutrindo-se da distração e, mais uma vez, da falta de “tempo e de reflexão”. Assim, dá-se o desfecho da obra, e sua incrível e importante mensagem filosófica:

Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

Imagem destacada / Capa do livro A Peste, escrito por Albert Camus (Foto: Reprodução/BestBolso) capturada neste site

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.