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Tiros de canhão contra a pandemia

Por Rogério Almeida, jornalista e editor do blog Furo

Lá pelos idos de 1850, pós Cabanagem, poucos anos depois do lançamento do Manifesto Comunista, a cidade de Belém, naquela época denominada de Pará pelos visitantes de além riomar, era acometida por surtos epidêmicos de febre amarela e de varíola.  O porto teria sido o canal de viabilidade das chagas.  

A febre amarela precipitava sobre brancos e mamelucos, enquanto a varíola acometia índios, negros e mestiços. Iniciadas em abril, em plena estação chuvosa, as pestes duraram uns seis meses.

No portfólio de ações sanitárias do governo da época no combate das pragas, uma se destacava, disparar tiros de canhão no afã de purificar o ar, nos conta Bates.

O naturalista, que a partir de Liverpool – renomado porto de tráfico negreiro- aportou em searas Amazônicas, ao lado de Wallace, igualmente cientista,  percorreram o rio Amazonas por demorados anos. As informações acima constam em Um Naturalista no Rio Amazonas.

A obra além de relatar as exuberâncias da floresta tropical, externaliza toda ordem de leitura preconceituosa contra os povos ancestrais, por ele tratadas de indolentes, bárbaros, selvagens e congêneres. Mesma tratativa recebe a insurreição Cabanagem.

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Paixões, varíola e machismo em São Luís, na novela “Maria Arcângela”, de Erasmo Dias

Ed Wilson Araújo

Organizado pelo poeta Nauro Machado, o livro “Erasmo Dias e Noites” reúne artigos, crônicas, contos, poemas e uma novela, “Maria Arcângela”, ambientada nos desdobramentos da epidemia de varíola ou “bexiga”, nos meados do século 19, quando São Luís vivenciou o isolamento social, quarentena, pânico e morte.

“Foi quando a peste chegou. A última varíola que assolou São Luís. Interditaram parte do Codozinho, pois lá estava o Isolamento, hospital para onde iam os bexigosos.” (DIAS, 2016, p. 358)

A novela se passa na fronteira entre a Belira, o Codozinho e a Madre Deus, onde transbordam variadas paixões : o gosto pela tiquira, os encantamentos por homens boêmios, morte em decorrência da peste, religiosidade, preconceito e a rivalidade entre grupos de bumba-meu-boi.

Sapateiro famoso, Mestre Quirino e sua mulher Rita criavam a filha Maria Arcângela na simplicidade do casebre construído em uma nesga de terra do novo bairro criado após uma ocupação eleitoreira na cidade. Pairava no ar o receio da varíola:

“Tudo foi indo num ramerrão do comum que entedia. O Mestre batendo sola, Rita sempre triste, com medo da invasão, dizia: Maria Arcângela crescendo, bonita, gordinha, mistura racial de homem de cor e mulher brancarana, e já mudando os dentes de leite.

Foi quando a peste chegou. A última varíola que assolou São Luís. Interditaram parte do Codozinho, pois lá estava o Isolamento, hospital para onde iam os bexigosos.

O pânico tomou conta da cidade. A pavorosa passava sem sirene, que não as havia, batendo e retinindo a campainha: era um a mais que ia para o recolhimento do Lira. As escolas todas fecharam. O governo reagiu com uma vacinação domiciliar e compulsória. Foram proibidas as reuniões. Enquanto, porém, a autoridade decretava as suas medidas de salvação pública, o povo, independente e liberto como o é, reagia ao seu modo. Pouco importava que o rabecão, derramando desinfetante, passasse dez vezes por dia, na rua do Passeio, levando os mortos, recolhidos nas residências. Quando o guarda sanitário saída, após a vacinação, a dona da casa dizia: “Vamos passar limão nessa porcaria, que isso é só pus. Credo, a doença dá em quem tem de dar”. Com medo da vizinhança, as famílias escondiam os doentes, argumentando: “O Lira, sim, só quem não sabe, é um matadouro! Da outra vez, vovó se tratou em casa e está a mesminha”. (DIAS, 2016, p. 358)

Observadas as temporalidades, o drama de Erasmo Dias ocorre no contexto da ocupação espacial da cidade, sempre pautada no discurso de que São Luís seria “moderna”, empurrando a pobreza para a periferia.

(Leia aqui artigo sobre a gripe espanhola e o advento da luz elétrica na capital do Maranhão, alusiva à obra “Os degraus do paraíso”, de Josué Montello).

Àquela época as autoridades sanitárias tomaram providências para impedir os sepultamentos no interior das igrejas, onde a convivência misturava os fiéis vivos e os mortos, objetivando ainda inibir a condução dos defuntos em caixões abertos durante os cortejos fúnebres pelas ruas.

Capa do livro Erasmo Dias e Noites, organizado pelo poeta Nauro Machado

Nas áreas cotadas para fazer um cemitério estava a localidade Gavião, hoje um dos tradicionais lugares de sepultamento em São Luís (veja a foto destacada, de Gaudêncio Cunha).

Então, o cemitério passou a ser um equipamento incorporado à ideia de higiene social adequada às medidas sanitárias modernizadoras.

Os conflitos na novela se dão com a descoberta de que Maria Arcângela, até então tida como filha de Rita e Mestre Quirino, na verdade era rebenta do glamuroso cantador de bumba meu boi Edinho. Assim conta Erasmo Dias, nas palavras do cachaceiro (apreciador de tiquira) Romualdo:

“Seu doutô, a finada Rita – a quem Deus a tenha – era do chifre furado. Brancarana bonita e de xandanga, como nunca eu vi. Que o Mestre não me ouça, lá onde todos os dois já estão, mas a pequena, a Maria Arcângela, não era filha dele; era filha do Edinho, que cantava como ninguém e sabia bater um pinho de fazer chorar.

[…]

– Doutô, lhe digo, sobre aquela conversa que as vez a gente fala da falecida Rita, veja como as coisas são: quando ela pegou a lixa lá na Belira, no outro dia Edinho pegou a peste aqui neste Codozinho, que hoje é uma cidade. Todos dois morreram no mesmo dia e na mesma hora.” (DIAS, 2016, p. 359)

A novela se passa nos bairros tradicionais de São Luís: Belira, Codozinho e Madre Deus

Viúvo de Rita, Mestre Quirino criava Maria Arcângela sem saber desse fato. Até que um dia Maria Arcângela aparece grávida. Por coincidência, o pai da criança era outro cantador de boi pelo qual ela se apaixonara perdidamente: Luizinho.

Uma das cenas mais chocantes da novela é a sessão de espancamento verbal e físico protagonizada por Mestre Quirino em sua (até então) filha Maria Arcângela, ao tomar conhecimento de que ela estava grávida e seria mãe solteira, “falada” no bairro inteiro.

A surra só não levou a nocaute a menina porque a velha parteira Nhá Maria Teresa adentrou no barraco arrotando a pura tiquira e flagrou a balbúrdia. Tentando impedir a sessão de violência, durante a discussão com o irado Quirino, ela revelou aquilo que nos bastidores toda a vizinhança já sabia – Maria Arcângela era filha de outro homem, o boieiro Edinho.

Ao saber da traição, Mestre Quirino teve até uma congestão e morreu babando de ódio.

Além do machismo, a religiosidade e o misticismo compõem a trama, como o hábito de passar limão no local da vacina para evitar o pus, registrado nesse trecho:

“A peste se alastrava. Mestre Quirino se vacinou, vacinou a filha e a mulher.

Rita não acreditava, passou limão nas incisões do braço. Dias depois, o febrão, o delírio, a denúncia da vizinhança e dizem que ela morreu de bexiga-lixa, lá no Isolamento, cheia de tantas e dolorosas pústulas, que, nuazinha, rendeu a alma, posta sobre folhas verdes de bananeiras, já que plásticos em aqueles tempos não havia.” (DIAS, 2016, p. 358-359)

Se o limão não resolvesse, a fé ajudava. As procissões em honra a São Sebastião davam o tom do fanatismo religioso:

“A varíola declinou. Nas ruas do subúrbio, ainda que proibidas as reuniões, já não se encontravam os grupos de penitentes, com velas acessas e uma imagem pequenina do Santo, cantando medievalescamente, tomados de fé, as coplas que arrepiavam de um a todos:

Oh mártir de Cristo,
Meu Santo Varão,
Livrai-me da peste
Meu glorioso mártir
Meu São Sebastião”.

Toda a novela é cerzida pela representatividade da cultura popular enaltecida nas brincadeiras de bumba meu boi. Nesse folguedo, o destino de duas mulheres se encontra – a mãe Rita e a filha Maria Arcângela, tocadas pelo feitiço boêmio dos cantadores Edinho e Luizinho.

Parte da novela, nas entrelinhas, aborda as normas sanitárias impulsionadoras do progresso de São Luís. As periferias cresciam como uma espécie de “higienização” do tecido urbano já em meados do século 19, traduzida na hipótese de uma cidade supostamente mais saudável aos seus moradores.

Novamente, a promessa de São Luís “moderna” desfila no terreno da ficção.

Afinal, quando seremos Paris?

Leia mais sobre a promessa de modernidade em São Luís.

Imagem destacada / cemitério do Gavião / Gaudêncio Cunha.