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A terra redonda na Macondo de Gabriel García Márquez

Relendo “Cem anos de solidão”, eis que numa passagem da obra fui remetido ao cenário contemporâneo do terraplanismo e de outras derivações do obscurantismo.

O trecho abaixo é o desdobramento de várias visitas do cigano Melquíades a Macondo, a cidade imaginária de Gabriel García Marquéz.

Melquíades já havia impressionado a vila com a apresentação do gelo e do imã. As constantes visitas do cigano eram sempre apreciadas por José Arcádio Buendía, até que um dia…

Finalmente, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de um golpe só toda a carga de seu tormento. As crianças haveriam de recordar pelo resto de sua vida a augusta solenidade com que seu pai sentou-se à cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela ferida aberta de sua imaginação, e revelou a elas sua descoberta:

– A terra é redonda feito uma laranja.

Úrsula perdeu a paciência. “Se é para ficar louco, pois que fique você sozinho”, gritou. “Não trate de pregar nas crianças suas ideias de cigano.” José Arcádio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher, que numa explosão de cólera estraçalhou o astrolábio no chão. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens da aldeia e demonstrou a eles , com teorias que para todos eram incompreensíveis, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre rumo ao Oriente. A aldeia inteira estava convencida de que José Arcádio Buendía havia perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr as coisas em ordem. Ele exaltou em público a inteligência daquele homem que através de pura especulação astronômica havia construído uma teoria já comprovada na prática, embora até então desconhecida em Macondo, e como prova de sua admiração deu a ele um presente que haveria de exercer uma influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.

Fonte: Cem anos de solidão (p. 10 – 11). Editora Record, 2015