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O olhar distraído de Benedito Junior

Quem gosta de fotografia, por curiosidade ou profissão, já deve ter visto as postagens do jornalista Benedito Lemos Junior nas redes sociais.

Sem qualquer pretensão de demarcar território no universo profissional da fotografia, ele presenteia o navegante da web com imagens simples mas dotadas de alta sensibilidade.

Nas suas idas e vindas para o trabalho, no Centro Histórico de São Luís, Benedito Junior captura as cenas da cidade e revela um talento envolvente.

A matéria-prima das fotos é a simplicidade do olhar de um homem sensível, às vezes angustiado, em outras ocasiões tocado pela leveza da vida.

Benedito Junior está para a fotografia como a música da Legião Urbana para o cotidiano:

“Tenho andado distraído
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso
Só que agora é diferente
Sou tão tranquilo e tão contente

Ele é um flaneur. O olhar distraído de Benedito Junior é o barro/matéria-prima que ele molda para construir os seus sonhos em imagens ou efêmeros castelos de areia desfeitos pelas ondas:

“Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê”

Como um estrangeiro na sua própria aldeia, o jornalista do olhar viajante descreve a cidade por meio de cliques quase sem querer, título da música da banda Legião Urbana:

Tenho andado distraído
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso
Só que agora é diferente
Sou tão tranquilo e tão contente

Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava provar nada pra ninguém

Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar explicação pro que eu sentia
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira
Mas não sou mais
‘Tão criança oh oh
A ponto de saber tudo

Já não me preocupo se eu não sei por que
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você

‘Tão correto e ‘tão bonito
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos
Sei que, às vezes, uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?

Me disseram que você
Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como lhe quero tanto

Já não me preocupo se eu não sei por que
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você

O cotidiano do Centro Histórico é a principal fonte de Benedito Júnior
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Por que tem de ser assim?

Eloy Melonio*

“Ver e não crer” está para São Tomé assim como “concordar e não fazer” está para um monte de brasileiros. Se é mesmo assim, adivinhe então o que a moça da limpeza de uma farmácia fez com um saco de lixo, depois de varrer a área externa da loja?

Essa pergunta já é uma boa pista sobre o tema desta crônica. Então, vamos lá. Lixo e luxo, atitude responsável, rachadinha, mulheres no mercado de trabalho?

Antes, algumas ponderações. A primeira é que o mundo parece estar mesmo de cabeça para baixo. Pelo menos é o que se percebe quando se vê e se ouve o que as pessoas estão falando e fazendo por aí. Nas redes sociais, muita gente opinando sobre tudo, e se mostrando por inteiro. Se o falatório é geral, o que dizer do fazetório?

E, assim, vamos direto ao que interessa. Nessa intenção, aproveito para repetir o que um amigo recentemente me confidenciou: Estou me esforçando muito mas muito mesmo! para fazer as coisas da forma mais ética possível.

Aí perguntei a mim mesmo: Tá ouvindo isso?

Sabe aquela pergunta que não quer calar? Pois é, essa máxima não envelhece e se torna, nestes dias de fake news, ainda mais jovem e atual. E a pergunta, carregada de indignação, é: Por que tem de ser assim?

Uma campanha da Rede Globo, estrelada por Mateus Solano, mostra uma situação-problema e o que é esperado de cada um de nós em relação a ela. Em seguida, o astro global, para vergonha nacional, constata: “Todo mundo concorda, mas nem todo mundo faz”. E conclui com uma afirmação que faz muita gente boa tremer na base: “Quem concorda faz”.

Certo dia, enquanto pensava na vida, William Bonner (JN, 19-8-2019), depois de dar algumas notícias sobre a “loucura humana”, soltou esta: “Às vezes a gente tem a sensação de que o mundo anda para trás”. Peguei minha caneta e anotei. Não muito longe dos estúdios Globo (Rio de Janeiro), meu amigo e escritor Jáder Cavalcante, na apresentação de seu “Decadência Humana” (EDUFMA, 2019), revela a razão da temática do livro: meu total desapontamento com a sociedade que me rodeia e nos seres que a habitam.

Neste ponto, peço ao amigo leitor que feche os olhos por um minuto e “se imagine” nas duas situações que vou apresentar, e faça a si mesmo a minha pergunta, tentando respondê-la.

Uma senhora levando o filho para a escola, em seu Renault Fluence, dirige com uma ou com as duas mãos? Segura o celular com a mão direita ou a esquerda? Seu filhinho de nove anos está na poltrona do passageiro ou no banco de trás?

O dono do Honda Civic, estacionando na vaga preferencial de “gestante” na frente de uma loja de brinquedos, é uma mulher com uma “barrigona” ou um homem jovem, barbudo e sarado?

Pode parecer exagero, mas presenciei cada uma dessas cenas. Considerando tudo o que disse antes, você deve ter acertado todas as perguntas. E poderia também enumerar outras mais. Se afiar a memória, vai se lembrar de um sem-número de situações semelhantes. Ou ver, se sair por aí observando as pessoas e seus comportamentos.

Dizem que esse é o nosso “jeitinho” de fazer e/ou resolver as coisas. Que é cultural, que tá na nossa veia. Excetuando o amigo de que falei antes, acho que somos todos um pouquinho assim. E eu já vou avisando, antes de ser julgado, que também não sou tão “certinho” como pode parecer. Mas, repito, estou tentando seguir o exemplo do meu amigo.

Falando da minha “seara”, muita gente acha que nós, poetas, somos pessoas da mais nobre estirpe. Mas que nada! Somos pessoas comuns, parecidos com o João e a Maria. E, com relação a essa questão, algumas vezes eu ouço o conselho da saudosa Cássia Eller, e também “peço a Deus um pouco de malandragem”. No bom sentido, se é que isso existe.

Se sairmos dos espaços públicos e adentrarmos os escritórios e gabinetes do mundo político-corporativo, aí mesmo é que a pobrezinha da pergunta vai ter de trabalhar.

E, assim, meu amigo, infelizmente a moça da farmácia pode até concordar com o que Mateus Solano disse sobre “atitude irresponsável”, mas fez exatamente o contrário. Jogou o saco de lixo no meio da rua, a dois passos da lixeira que estava à margem de uma movimentada avenida de nossa cidade.

Verdade seja dita, “bons exemplos são raros”. Quando vi a cena, repeti silenciosamente a perguntinha do título: Por que tem de ser assim?

Tanto que, se você achar uma cueca cheia de dinheiro no banheiro do shopping, não tente devolvê-la ao dono. Ele não vai aparecer para recebê-la.

*Eloy Melonio é professor, escritor, poeta e compositor.

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Pódio e oásis

Eloy Melonio é professor, escritor, compositor e poeta

Seria exagero comparar uma fila de banco a uma caravana de camelos no deserto ou a uma corrida de Fórmula 1? Talvez, mas não custa nada tentar.

Uma das diferenças é a velocidade. E aí a fila está mais para a caravana. Mas a chegada, sem dúvida, equivale a uma vitória na Fórmula 1.

O sol desafiador, a areia e o camelo lento fazem dos beduínos viajantes pacientes e resistentes. A pista regular e os carros supervelozes fazem os pilotos se sentirem dentro de um jato. Quanto às condições da fila…

Onde entro nessa discussão?

Mais ou menos assim: saí de casa numa quarta-feira (1º de julho/2020) para resolver um problema, sabendo que teria de entrar numa “fila”, coisa que não fazia havia muito tempo. E decidi narrar essa “corrida-travessia” como se fosse um diário, só que em doses cronológicas.

Entro na fila às 9h10.

9h13

À minha frente, muita gente; e eu ainda sou o último, uma posição nada confortável. Na calçada, encosto-me ao muro do 24º Batalhão de Caçadores, na Av. João Pessoa, no João Paulo. Saúdo o Sol, e espero, pacientemente, o sinal verde da largada.

9h15

Chega o meu segundo vizinho, um senhor de uns setenta anos. Dou-lhe bom dia. Ele só me olha, desconfiado. Não parece feliz, nem sociável. Dois outros acabam de chegar, e a fila dá uma esticada para trás. Mais dois, e agora já são cinco. E eu, no mesmo lugar.

9h25

Finalmente, a fila avança uns cinco passos. Mais aliviado, pego uma pontinha da sombra da amendoeira que fica no terreno do quartel. Nesse ponto, a fila assume o formato de um lombo de camelo para aproveitar o recuo do portão de entrada de carros. Organismo vivo, a fila ― para usar um termo em voga nestes dias de pandemia ― se “reinventa” a todo instante.

9h40

Faço minhas anotações na última página de um livro que carrego. O livro é sempre um companheiro quando vou a lugares onde posso sentar e ler enquanto espero a minha vez. Infelizmente, as condições hoje não me permitem tal privilégio. Esgotado o espaço da folha, passo para o celular.

10h15

A esta altura, a fila já é uma confraria. Desconhecidos se tornam amigos. E, com isso, conversas e mais conversas. Gente falando alto, rindo, reclamando. Falam de tudo: do Coronavírus, de um vizinho antipático, da Grizelda (personagem de Lília Cabral na novela Fina Estampa, da Rede Globo) ― e até dos filhos do presidente. Aí, um senhor metido a engraçado cai na risada: No meu tempo, rachadinha era outra coisa.

10h20

A fila avança. A sombra da amendoeira escapa de mim. O Sol esquece que já me deu bom dia e me encara como se eu fosse um camelo. Um ambulante me oferece água mineral. Penso na higiene e na Covid-19. Imagino-me num deserto, e tento esquecer a sede por mais algumas dezenas de minutos.

10h27

Um trecho da fila agora vira uma arena política. Meus vizinhos falam do governo e dos ministros do STF. Uma aposentada do INSS faz a conta: gás, aluguel, remédio. Diz que já fez dois “consignados”, e o que lhe sobra é quase nada. Seu Jaime, o senhor metido a engraçado, retruca: “Pior sem isso, não é mesmo?” E canta baixinho: Na vida a coisa mais feia é gente que vive chorando de barriga cheia.

10h38

Um grupo de indignados com o total descaso da instituição onde seremos atendidos decide entrar com uma representação no Ministério Público. Combinam um plano. Anotam nomes e telefones. “Onde já se viu?”, justifica D. Justina. “Largar a gente assim ao léu, sem nenhuma assistência. Sem ao menos um ‘bom dia’. Logo esses, que mais têm lucro neste país”.

10h45

A calçada se enche de gente. Transeuntes, ambulantes e “fileiros” se agitam como fotógrafos em busca do melhor ângulo de Lewis Hamilton. Um “descarado” tenta furar a fila. “Na minha frente, não entra”, avisa meu vizinho da frente, um senhor com cara de policial reformado.

10h50

O sol esquente, e o cansaço aperta. Dá vontade de tirar a máscara. Uma incerteza me tira o sossego: Será que chego à última volta? E, para aumentar meu desespero, alguém grita lá atrás: Essa fila não anda, não?

11h

Faço as contas: quase duas horas em pé. Neste instante, a fila se mexe abruptamente. Meu vizinho quase beija o meu cangote. Olho para trás com cara de zangado. Ele se faz de desentendido.

11h17

O sol tinindo no meu rosto, a camisa úmida de suor. Fileiro de primeira viagem, esqueci-me de trazer um boné ou uma sombrinha. Senti na pele a utilidade dos lenços. Meu “oásis” agora é só uma sala com ar-condicionado.

11h30

Nuvens vadias se unem para ameaçar a estabilidade da fila. Olho para os lados em busca de um possível abrigo. Os dois orelhões de um velho telefone público já estão ocupados. Um poste serviu para a irradiação solar, mas não serviria na chuva.

11h35

E ela chega. Fina, mas chega. E faz todo mundo correr à procura de um abrigo que não existe. Na desordem, lembro uma velha piada do leão que se solta num circo. E dá vontade de gritar: Calma, pessoal, é só uma chuvinha! Alguns prevenidos abrem suas sombrinhas. Meus vizinhos mais próximos não têm guarda-chuvas. E eu…

11h40

Acho uma brecha sob o guarda-sol do vendedor de água mineral, o mesmo de quem, há alguns minutos, recusei comprar uma garrafinha. A fila se desfaz, e a calçada vira literalmente um deserto. O medo de perder posições duramente conquistadas me deixa inseguro.

11h45

O sol reaparece. De cinzento, o cenário fica colorido novamente. Avisto a porta do prédio onde serei atendido. E dessa vez, a imagem do oásis parece real.

11h53

A fila avança uns três metros. Olho pra trás e vejo as dezenas de milhas que percorri, mesmo achando que não saía do lugar. Recupero a energia e a coragem. Na fila “preferencial”, convenço-me de que sou um “terceirão” de primeira. Não vou abandonar a corrida.

12h05

Entro na reta de chegada e imagino a bandeira quadriculada tremulando. E a torcida gritando: Vai, vai! Dá vontade de levantar os dois braços como fazem os pilotos da Fórmula 1 e gritar: Yeah!

12h10

Subo ao “pódio”. Agora é só esperar o troféu e o champanhe.

12h11

A moça do atendimento faz o sinal para eu dar dois passos à frente, mede a minha temperatura e me libera.

12h12

Sem nenhuma restrição, passo devagarinho pela porta giratória como se ela fosse só minha.

12h13

Estou dentro da agência do ITAÚ. Exatamente como imaginei: um oásis.

*Eloy Melonio é professor, escritor, compositor e poeta

Imagem destacada capturada aqui