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Filme “Estômago” é uma aula de Brasil

Ed Wilson Araújo

Três obras clássicas – “Casa Grande & Senzala” (Gilberto Freyre), “Formação do Brasil Contemporâneo” (Caio Prado Jr.) e “Raízes do Brasil” (Sérgio Buarque de Holanda) – estão representados em carne viva no filme “Estômago” (2007), dirigido por Marcos Jorge.

A película revela as raízes profundas de um país marcado pela violência de cabo a rabo, espelhadas em três conceitos fundamentais para explicar o Brasil: patriarcado, coronelismo e corrupção na estrutura do Estado.

O migrante nordestino Raimundo Nonato (João Miguel Serrano Leoneli) chega à cidade grande e vai trabalhar precarizado em um restaurante popular, sem salário, apenas com um quartinho para dormir e alimentação.

Depois, recebe o convite para ser funcionário de um restaurante fino, onde aprende os segredos da culinária.

Seus dois patrões, apesar das diferenças econômicas e sociais, são brasileiros médios com todos os vícios da nossa formação cultural. O primeiro orienta apalpar a massa de pastel como se fosse a bunda de uma mulher. O outro, supostamente refinado, também desfere expressões grotescas típicas do patriarcado.

Enquanto aprende os segredos da cozinha, Raimundo Nonato desperta uma paixão pela prostituta Iria (Fabíula Nascimento), desembocando no pedido de casamento.

Uma das sacadas do filme é a narrativa paralela protagonizada pelo cozinheiro dentro e fora da cadeia, onde ele vai cumprir pena depois de cometer dois crimes pesados.

No presídio, Raimundo Nonato experimenta outro tipo de opressão. Como se já não bastasse a vida sofrida no interior da Paraíba, onde o coronelismo machuca e expulsa os mais fracos para a cidade grande, o cozinheiro passa por mais violência dentro da cela.

O espaço da cadeia tem uma série de coronéis hierarquizados pelo critério da força e da corrupção, inclusive dentro da estrutura do Estado.

Bujiú (Babu Santana) é o líder da cela que corrompe a administração penitenciária e recebe ordens superiores do chefe maior do crime, o exótico Etcetera, interpretado pelo cantor Paulo Miklos, ex-Titãs.

Raimundo Nonato só não é mais hostilizado no cárcere porque consegue “escapar” como cozinheiro de luxo da cela, caindo no agrado de Bujiú, seduzido pelos quitutes do cheff agora apenado.

Os dois mundos, dentro e fora da cadeia, encontram-se nas marcas de uma sociedade patriarcal, coronelista e corrupta.

Com um final surpreendente, “Estômago” é o Brasil em carne e osso; ou melhor, em vísceras. Os assassinatos e a ascensão de Raimundo Nonato na hierarquia da cela fazem lembrar a preciosa frase atribuída ao romano Terêncio:

“Nada de humano me é estranho”

Imagem destacada capturada aqui / Iria e Raimundo Nonato em cena da cozinha /