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Literalmente esquecidos

Eloy Melonio *

Ele entra na livraria como se fosse uma celebridade. Cordialmente, um vendedor o saúda logo na entrada. “Vou só olhar”, vai logo avisando. Prefere ficar só, demorar-se até achar o que está procurando. Em outras circunstâncias, até aceita ajuda. Mas, sempre resoluto, só vai embora com o produto do seu desejo.

Em casa, mergulha numa solidão de lascar. É que sua companhia não ri, não conta uma piada, não toma um drink. Parece preferir o silêncio do cinema mudo.

É triste constatar, mas nossa personagem é um pobre “esquecido”. Vive largado por aí à caça de bons “títulos” que possam lhe entreter e, se possível, fazê-lo “viver uma aventura”.

Infelizmente, não é um “imortal”. Não tem biografia nem ocupa assento numa academia. Não ganha prêmios, não participa de concursos. Não escreve prefácios, resenhas.

Num dia de sorte, conheceu seu alter ego na tevê: Giulia Prescinato, 13 anos, na Bienal Internacional do Livro de São Paulo (julho-2022). No imenso espaço do Expo Center Norte, “ela” (com o pai e a irmã mais nova) puxava sua mochila de rodinhas, ― a mesma que leva todo dia para a escola ― olhando atentamente para todos os lados.

“Haja devoção!”, suspirou irônico o nosso amigo.

Percebe-se que ele e Giulia são dotados da mesma índole. A diferença é que ― por um instante ― ela viveu seu minuto de celebridade. E explodiu de alegria: “(…) eu quero passar o dia inteiro aqui, encher minha malinha de livros e voltar pra casa e ler bastante”. Como prêmio, a leitora-mirim ganhou os aplausos de seus pares ligados no Jornal Hoje daquele memorável sábado, 2 de julho.

“Uma cena surreal!”,identificou-se ainda mais com a menina.

Mas uma dúvida lhe esfriou o ânimo: “Será que ― para homenageá-la ― sua escola vai realizar um grande e festivo sarau? A Academia de Letras de seu estado vai pôr seu retrato no salão nobre de suas dependências? A data se deu nascimento será emprestada para a criação do “Dia do Leitor”?

Para sua decepção, essa data ― 7 de janeiro ― já existe desde 1928. E foi instituída nãopara homenagear o “leitor”, mas um órgão da imprensa: o jornal cearense “O Povo”, cujo fundador, além de jornalista, era poeta.

Enquanto isso, Giulia exibia o recém-comprado exemplar de sua devoção. E esbanjou emoção, dizendo que não iria embora sem o autógrafo de sua autora predileta. Referia-se a Paula Pimenta, mineira de 47 anos, cujo sucesso chegou para valer em 2008. Tudo por causa da divulgação boca a boca feita por uma legião de fãs,que transformou em best-seller o romance adolescente “Fazendo meu Filme”. Encarando uma fila quilométrica, Giulia ansiava por seu momento de glória.

Do outro lado da rua, “literatos”sonolentos parecem indiferentes a essa massa de gente. E ―seguindo a visão de outra visitante ― também se apegam a um cansado clichê: “Só a leitura pode nos fazer mais iguais, mais inclusivos, mais democráticos”. Arrisco-me a imaginar que alguns desses “figurões” participam desse tipo de evento porque por lá sempre aparece um bando de “esquecidos”. Contumazes ou ocasionais, eles jamais se esquecem de consumir arte.

Em nossa “feira de cada dia”, não vejo nenhuma iniciativa para atrair esses “coitados” para a nossa banca. Em geral, estamos olhando para nossos próprios umbigos ou em busca de títulos honoríficos. Somos feras nos elogios, e nossos “likes”, incansáveis nas redes sociais. E haja “coraçõezinhos” para revelar tanta admiração!

De certa maneira, tal atitude justifica a alfinetada da atriz americana Viola Davis (um Oscar, um Emmy e dois Tonys) quando diz, em seu recém-lançado “Em Busca de Mim” (Best Seller), que “a maioria dos atores não quer ser artista, quer ser famosa”.

Mas… e o leitor?

Desconfio que certa idolatria paire sobre as diversas formas de leitura. Algo mágico, como “o folhear de um livro de poemas”, sentimento único que o vento não consegue levar, como ensina Quintana. É óbvio que uma obra tem sua importância e seu encanto se nela estão guardadas palavras que falam ao coração.

Só nessa Bienal, 3,5 milhões de livros estavam à disposição dos 600 mil visitantes esperados. Alinhado ao marketing dos editores e organizadores, o “tema”exalava otom nada aromáticode uma cega paixão: “Todo mundo sai melhor do que entrou”.

Opiniões sobre o valor da leitura como um exercício mental são inquestionáveis.  Quanto ao conteúdo do que se lê, há muitos caminhos. Nesse caminhar, leitor e autor aproveitam para se conhecerem e se distraírem. Se um livro vale ou não a pena, só o leitor sabe justificar a sua decisão. E aqui―assumindo a aura de leitor ― aproveito para parafrasear Lya Luft (1938-2021): “A leitura é o território de minha liberdade”.

Neste jardim, nem todos os livros são flores. Aqui também florescem ervas daninhas. Se levássemos em conta os “de alma pequena”, produzidos em uma década, o Expo Center Norte seria uma caixa de sapatos.

Nunca é tarde para se ganhar e se manter leitores. E isso se faz com textos“bem imaginados e bem construídos, fortes e significativos”que encantem e surpreendam. E que convertam leitores em promotores, como os de Paula Pimenta. E assim possam imitar Monteiro Lobato: “Lê o livro, Rangel, e morre. Lê o Lírio, e suicida-te, Rangel. Se não tens aí, posso mandar-te o meu ― e junto o revólver”. Se pudesse sugerir, trocaria o revólver por uma garrafa de vinho, igualmente fatal nessas situações.

Nesta nova ordem digital, nossos olhos facilmente se distraem com cenários mais coloridos. Por isso precisamos seduzir esses esquecidos com uma artetão viva como uma onda que “reflete na areia a nova lua cheia” (Alice Ruiz). Só assim poderemos trazer as filas das feiras para dentro das livrarias. Não sem antes aprendermos a lição de Machado de Assis: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa”.

E, enfim, que jamais deixemos esses caros e raros leitores se perderem no “vale da sombra da morte”.

Eloy Melonio é professor, contista, ensaísta, cronista, compositor e poeta.

Imagem destacada / Chuva de livros / Fonte: dreamstime

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