Eloy Melonio é contista, cronista e poeta.
Uma cena inusitada rasgou minha memória para resgatar um traço que sempre apreciei em algumas pessoas —e em mim também, por que não?
Eis a cena: passando pela rua da Feira da Praia Grande, no centro histórico de São Luís (MA), uma amiga chamou minha atenção para a quantidade de manequins do lado de fora das lojas. Vestidos ou seminus, estavam ali como se observando a movimentação. Aproveitei o estado de enlevo da minha amiga e disparei: Hoje estão assim, quietinhos. Mas, na quinta-feira passada, houve uma briga aqui, com muitos tiros. Era gente correndo para todos os cantos. Acredite se quiser: Não ficou um manequim para servir de testemunha. Correram todos para dentro das lojas.
E, assim, viajei ao mais profundo de minha alma para entender e traduzir o que é ser “espirituoso”.
Espiri-o-quê?! Calma aí! Espirituoso não tem nada a ver com religião, crença ou coisa do outro mundo.
Parece estranho, mas essa palavra me apareceu primeiro em inglês, como muitas outras. Não raro o estudante de língua estrangeira aprende uma palavra, checa sua tradução, e descobre que não sabe o que ela significa em sua língua. E aí bate aquela pitada de frustração: Oh, my God!
Foi assim que eu — ainda estudante — descobri “witty”. Depois de conferir sua tradução (espirituoso), confesso que fiquei perplexo. Recentemente, deparei-me novamente com esse vocábulo (historinha acima). Mas, dessa vez, a reação foi diferente. Decidi vasculhar minhas lembranças à procura de pessoas que se enquadravam em sua definição.
Tá certo! Mas o que é mesmo “espirituoso”?
Valei-me, meu santo Aurélio! Bem, espirituoso é uma característica de quem tem ou denota “graça, vivacidade, sutileza”. Que dispara observações divertidas, rápidas e inteligentes. Ou seja, que se aproveita de um contexto para extrair dele algo inesperado e engraçado. Infelizmente, no entanto, o lado obscuro dessa cena também existe. Ou seja, a parte não tão interessante: o cômico, o ridículo, o ofensivo.
Entre os famosos, Jô Soares sempre me pareceu inspiradíssimo nessa arte. Alguns artistas são espirituosos quando dizem— em entrevistas ou conversas— coisas que nos fazem refletir e rir (mesmo que seja um riso contido). E o Jô sempre foi um dos melhores porque exercia sua espirituosidade com sutileza de espírito e eloquência.
Pois é, o espirituoso nem sempre é entendido, e suas “tiradas” podem não ser facilmente digeridas. Porque o que ele diz é geralmente inesperado, chocante. E aí, o problema: uma amizade pode não ser esse “amor que nunca morre”.
Não sei se você tem amigos espirituosos? Dependendo do caráter deles, talvez seja melhor não os ter. Digo isso porque — depois de três meses de uma cirurgia bariátrica — uma senhora encontrou uma amiga no salão de beleza. Depois de examiná-la da cabeça aos pés, a amiga soltou esta farpa: “Ué, você não ia se operar?!” Ao que ela respondeu: “Pois é, amiga, o médico se esqueceu da cirurgia”.
A cena espirituosa não escolhe lugar, hora ou pessoa. Saindo de uma casa lotérica, um rapaz encontrou o padre que celebrara seu casamento dois anos atrás. “E aí, filho, como estão as coisas?” “Mais ou menos.” O pároco insistiu na pauta confessional: “E o seu casamento?” Exibindo as opostas da Mega-Sena, o rapaz respondeu: “Felizes, até que a sorte nos separe”.
Do meu repertório dos tempos da faculdade, esta se deu na primeira aula de Literatura, enquanto a professora fazia a chamada: “Jaçaíra!”. Solidário, antecipei-me: “Ainda não chegara”. A turma caiu na risada. Sem perder a graça, a mestra continuou verificando quem estava ou não na sala. Trinta minutos depois, nossa colega apareceu e justificou o atraso. Depois disso — pasmem! — ela resolveu mudar seu prenome.
De espírito lúcido, a espirituosidade anda solta por aí. Dia desses encontrei um amigo numa mesa de bar e, hesitante, quis confirmar uma suspeita: “Você não disse que não bebia mais?” Depois de um gole de cerveja, ele respondeu: “Verdade! Mas também não bebo menos.”
Por fim, numa feirinha cultural em que artistas vendiam suas produções (discos, livros, quadros, relíquias), um jovem cantor pôs uma caixa de papelão sobre a mesinha onde eu examinava alguns itens. E falou com o dono da banca: “Cara, trouxe uns CDs que já estão até mofando. O que faço com eles?” Atento à cena, não me contive: “Cê dá, ué!”
Cenas não faltam para exercermos nossa espirituosidade, seja de que lado for. O que nos falta, muitas vezes, é um rasgo de desprendimento e um espírito aberto, singelo e festivo.
Imagem destacada / Foto: Graziela Rezende/G1 MS. Fonte: G1
6 respostas em “Rasgos de espirituosidade”
Muito bom amigo poeta confrade prof. Elói. Parabéns e continue fazendo suas belas crônicas.
Show, meu querido e eterno professor de Inglês, Elói!! Belíssimo texto!!
Obrigado, Francisco. Suas palavras são puro incentivo.
Grande Garcia, tê-lo como leitor é uma grande satisfação.
Mt bom, professor, a gente cria na memória essas cenas q vc relata e sorri mesmo, muito espirituoso. A cena dos CDs, foi ótima kkkkk
Que bom que vc teve essa sensibilidade! Já é um sinal de espirituosidade.