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Precisamos falar do Futuro?

Por Lícia da Hora, professora do Curso de Artes Visuais do IFMA.

Imagem: Adson Carvalho

Ele está logo ali…Ou ele está aqui nos devorando a carne, a alegria, a esperança, a lucidez, nos bebendo inteiro, preso nas amarras do passado?!

As reflexões poéticas e políticas que compartilho neste texto derivam do livro O Futuro tem o Coração Antigo, do poeta Celso Borges. No final do ano de 2023, entre arrumações de estantes e da vida no dia 28 de dezembro, deparei-me com esta obra e com a memória deste homem querido que fazia parcerias de um extremo a outro desta Ilha. O livro é do ano de 2013, e relê-lo dez anos depois trouxe uma saudade enorme de ver Celso caminhando pela cidade.

O livro é o reencontro de Celso recém-chegado de São Paulo, com Celso da infância, da adolescência, da juventude, da rua da Paz, retornando anos depois para a capital maranhense. A cidade de Celso Borges está sempre abandonada, ainda que alguns teimem em pintá-la de cidade com tradições francesas. Mas a cidade na memória do poeta resistiu nos limites do tempo. Penso que ele conseguiu, no melhor estilo benjaminiano, entender como passado e futuro coexistem.

Celso caminha, nesta obra, como um flâneur, rompendo o tempo e adentrando as ruas. Buscando as mudanças ocorridas na cidade histórica, ele caminha descendo a praça Deodoro, avançando para a rua da Paz onde nasceu, disputando agora na fase adulta o espaço das estreitas calçadas com uma enorme quantidade de carros que antes não existiam nos tempos do Celso menino.

O poeta desce a rua buscando as pessoas pela cidade e a cidade que está nas pessoas, servindo-se dela e criando sua estética a partir da experiência. A caminhada lhe desperta a memória de menino, mas também as lembranças que deixou para trás, antes de ir para São Paulo. Assim, ele vai construindo sua poesia. Ao poeta interessa alcançar a próxima esquina, chegar à praça João Lisboa, acompanhar a revoada dos pombos e o despertar do relógio do Largo do Carmo que resistiu ao tempo. Ele para neste lugar, sente a cidade, o coração da cidade. Inquieta-se até a próxima esquina e, enfim, chega à rua Afonso Pena, para encontrar as pessoas e a cidade que ele desejava enxergar naquele dia.

O poeta chega ao Instituto Federal do Maranhão, ao IFMA Campus Centro Histórico, no ano de 2013, onde funciona até hoje o Curso Técnico em Artes Visuais integrado ao Ensino Médio. Lá encontra no Laboratório de Fotografia, Carlos Eduardo Cordeiro, mais conhecido como Edu, um cara apaixonado por fotografias e pela história das fotografias que ao poeta aguardava. Edu forneceu ao poeta um acervo de imagens fotográficas produzidas pelos jovens estudantes através da técnica Pinhole. O próprio Celso fez sua seleção cuidadosamente, quis as imagens mais borradas. 

Pinhole é uma antiga técnica fotográfica artesanal, na qual se utilizam câmeras fotográficas produzidas com latas de alumínio, agulha, tinta preta fosca, papel alumínio, papel fotográfico e fita isolante. O poeta foi certeiro, queria a imagem pelo orifício da Pinhole para observar o coração da capital maranhense: o Centro Antigo. Porém, ele quis os olhares que cresciam sobre o futuro. Foi sob a visão dos jovens que produziram as inúmeras fotografias que Celso Borges selecionou as imagens para seu livro de poesias.

Na primeira parte do livro, Celso parece buscar a beleza que resiste no Centro da cidade histórica, apesar de também evidenciar os podres poderes que insistem em permanecer nas cadeiras do palácio. O que resiste de beleza está nas pessoas, nos animais, nos sabiás, nos curiós, bentivis, andorinhas, nos poemas, na natureza, nos enigmas, nas tradições e memórias, nas esquinas das arquiteturas, no patrimônio esquecido pelos homens que formulam as políticas públicas. Só o olhar de um poeta encantado pelo Centro é capaz de ver na mal conservada Fonte do Ribeirão um divisor de classes e de cultura, entre a riqueza da cidade antiga e a pobreza da elite da cidade nova que se ergueu no Renascença.

“O futuro tem coração antigo

porque a fonte do ribeirão nunca vai secar

e os condomínios do renascença morrem de medo”  (Celso Borges, O Futuro tem o Coração Antigo)

Na segunda parte do livro, Celso mostra a decadência, a morte, o desencanto, o esgoto que corre em direção ao mar, o vazio da cidade na pobreza do futuro e o alarde apressado do tempo. “- Como se sabe que o tempo passou?”, pergunta o poeta. “- A cidade já era!”, grita Celso nas entrelinhas. Que triste constatação. Parece que os barões sentados nos palácios nos jogam na cara. A cidade já era mesmo, vocês não estão vendo?! Será que a morte de Dona Maria Máxima Pires (liderança da Zona Rural, da Comunidade de Rio dos Cachorros), ocorrida no dia 13/12/2023, por câncer de pulmão, reflexo da poluição do ar por emissão de poluentes industriais e da calamidade ambiental que vivemos na capital não grita sob nossos olhos? A cidade já era, e nós também, morremos sufocados pelo ar ou engasgados pela água suja e fétida.

A cidade já era toda vez que tentam expurgar os negros de suas culturas e de seus territórios da capital, que aparentemente propagandeia inclusão da diversidade. A cidade já era toda vez que quebram Iemanjá na Praia do Olho D’água, expressando o mais vil racismo religioso, que se apazigua sob um verniz de resistência com recursos da Vale, inaugurando no Centro Histórico o Monumento à Diáspora Africana no Maranhão no mês de novembro. O que resiste no Centro consegue viver na periferia e na zona rural da capital? O que sobra depois da festa?

“A fratura está exposta o osso é duro de roer” (Celso Borges, O Futuro tem o Coração Antigo)

Em todo o Maranhão enfileirou-se um luto de lideranças camponesas. Somos o primeiro estado do Brasil em violência e mortes no campo, este dado queima sob nossos olhos.

Para ampliar e aprofundar o quadro de desigualdade social, em 19 de dezembro de 2023 foi sancionada, pelo governador Carlos Brandão (PSB), a Lei 12.169/2023 (Lei da Grilagem), que, entre outras medidas, proíbe a regularização fundiária de comunidades tradicionais, quilombolas e quebradeiras de coco. Em pleno mês de dezembro, sob nossos olhos? Muitos dos advogados que atuam na área de direitos humanos não descansaram em realizar denúncias sobre a festa que se fazia na casa grande, com espumante de nosso sangue.

Estava lendo o livro de Celso quando me veio a frase disparada pelo advogado Danilo Serejo, que atua em territórios quilombolas do município de Alcântara, em um texto denúncia: “O coronelismo retomou o poder pelas mãos do socialismo. O futuro é o passado”. Fiquei intrigada com a flecha que a frase de Serejo me lançara para um diálogo entre os textos. Serejo referia-se mais especificamente à atual conjuntura política no Maranhão: o coronelismo, que sempre esteve no poder, manteve-se pelas mãos do socialismo. A experiência do Partido Socialista Brasileiro (PSB) no Maranhão tem demonstrado que ficou apenas no campo do discurso a tal ruptura com estruturas de uma velha e corrupta política, que não apenas conserva, mas aumenta as condições de miséria para muitas pessoas, ampliando as condições de acúmulo da riqueza para poucos. Quanto do passado precisa morrer para que o futuro possa surgir? O quanto do passado precisa viver para resistirmos ao futuro? De qual ideia de futuro estamos falando?

Minha intenção não é comentar a obra de Celso dez anos depois de sua publicação, apesar de fazê-lo em alguma medida. Minha principal intenção é a de socializar como ela me tocou no mês de dezembro, mês que nos deixa mais reflexivos sobre o porvir, sobre os planos para o futuro, sobre as mudanças do que podemos fazer. Peguei o livro pelo chamado do título Futuro e pela sensibilidade do Coração, encontrei-o arrumando a casa, as estantes, tecendo rituais de chegada do novo ano.

Em Walter Benjamin, passado e futuro convivem na força motriz do agora. Para ele, o futuro não trata das gerações que não nasceram, mas refere-se às gerações que refletem tanto sobre aquilo que ‘herdaram’ quanto ao que estão por deixar como legado, no combate das forças do passado e do “tempo-de-agora”. Para Benjamin, tanto o passado quanto o futuro são iluminados pelas disputas que emergem no presente. O que nos é possível nesses combates? Continuei com as reflexões poéticas e não menos históricas e políticas sobre a virada do tempo, do ano, dos dias, das noites ou a permanência de suas lembranças.

Não finalizo aqui minhas reflexões sobre o Futuro de 2013, que reverbera em 2023. Precisei buscar a leitura de outro poeta, Dyl Pires, Ninguém quer o Futuro. Levei-o para a Praia do Olho D´água, a Praia que tanto Celso gostava e que eu vivi parte da minha adolescência. Foi naquela praia que continuei a pensar sobre o Futuro. Mas mais sobre isso no próximo texto.

Referências:

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas; v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Borges, Celso. O Futuro Tem o Coração Antigo. São Luís, Editora Pitomba, 2013.

Pires, Dyl. Ninguém quer o futuro. São Paulo, Editora Urutau, 2023.

2 respostas em “Precisamos falar do Futuro?”

Texto perfeito, professora Lícia! A visão poética é sempre reveladora e você foi cirúrgica na sua leitura! Já estou aguardando o próximo capítulo.

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