Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta
Dizem que é “mal” de todo brasileiro tirar uma onda de saber “tudo de tudo” ou “de tudo um pouco”.
Essa conversa serve para introduzir o nosso tema: arte e cultura. Tudo por causa do São João que se aproxima, porque é em junho quando mais se ouve falar em cultura como se a cultura se reduzisse às festas juninas. Passada a festança do santo, parece que ela se retrai e fica esperando “fevereiro chegar” com a folia de Momo.
Muita gente tenta reduzir as duas a uma só coisa, deixando sobressair a ideia de que uma coisa e a outra coisa são a mesma coisa. Para o senso comum, a linha divisória é realmente quase imperceptível. E nesse emaranhado de palavras jogadas ao ar com significados contraditórios, “cultura e arte” são algumas delas.
Arte é produto do espírito criador do artista quando esse expressa suas sensações e sentimentos. E, nessa expressão, quem dança pra valer é o senso estético nas suas mais variadas cores e tons.
Nossos ancestrais primitivos já se expressavam quando desenhavam nas paredes das cavernas para registrar seus feitos e presepadas. E é esse o calor que torna a arte representativa do talento de um povo (a música brasileira, o tango argentino). Por mais remota que seja uma sociedade, lá está a arte de alguma forma.
É nesse contexto que se encaixa a figura do artista. Sua arte reflete a vida e a sociedade sob a sensibilidade do seu olhar. Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a arte é um desses bens indispensáveis: “Para não sucumbir à verdade, temos a arte”. Concepção também compartilhada por Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”.
Imagine-se numa movimentada rua de Nova Iorque num sábado à tarde. Ao longo de seu passeio, vários palcos: rapazes dançando hip-hop, um senhor tocando saxofone, uma moça fazendo uma pintura surreal. Tudo isso é arte, “cagada e cuspida”, como diria meu pai, numa perdoável escorregada linguística.
E onde está a confusão?
Justamente na tentativa de se reduzir cultura a arte. A arte é o sal desta sopa chamada “cultura”, cujos ingredientes e temperos são os mais diferentes tipos de arte. Você pode produzir arte, caso seja um artista, mas não pode produzir cultura. Porque a cultura independe de você e de suas habilidades artísticas. Se é assim, o que fazem os produtores culturais?
Deduz-se então que arte é apenas um traço da cultura humana, sedimentada na religião, nos costumes, na moral et cetera e tal. A cultura cumpre a função primordial de nos tornar mais humanos porque nos aproxima, nos identifica. Imagine a multidão no show de Madonna, na praia de Copacabana (4-5-2024)! Gente de diferentes profissões, raças, nacionalidades e classes sociais — juntos e misturados — cantando, dançando… Um show de sons, cores e movimentos. A arte em estado de êxtase! E isso só foi possível — assim como na Rua de Nova Iorque — porque a “arte” nos universaliza.
E a cultura, o que é?
A manchete de um blog (2019 ou 2020) destacava: “Vereador diz que tambor de crioula não é cultura”. Com essa declaração, o edil acendia uma fogueira nas redes sociais. Não sei se era essa a sua intenção, mas ele estava tecnicamente certo. Para a Wikipedia, o tambor de crioula é “uma dança de origem africana praticada por descendentes de escravos, em louvor a São Benedito”. É, em suma, uma manifestação artístico-religiosa — um dos temperos da tal sopa de que falei antes. E tal qual a linguagem, a dança “não é uma coisa inata, não é um dom natural, mas um aprendizado”.
Para o Aurélio, cultura é o “conjunto das características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram por meio da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade”. E é assim, numa abordagem sociológica e/ou antropológica, que a cultura deve ser vista e tratada.
A cultura maranhense, por exemplo, é o produto de quatro séculos de interação entre gente das mais variadas origens (portugueses, índios, negros, migrantes), que moldaram a sociedade em que vivemos hoje. Nossas crenças, nossos valores e costumes são resultado desse processo de formação de uma identidade.
Uma pausa musical para relembrar a calorosa saudação de João do Vale aos nossos irmãos da terra de José de Alencar: “Alô, Coroatá, os cearenses acabam de chegar” (“De Teresina a São Luís”, 1962).
Não raro ouvimos coisas sobre a cultura que não correspondem à sua real concepção. Alguém denuncia: “Estão acabando com a nossa cultura”. A cultura se modifica e se refaz, e só acaba se a panela da sopa explodir. E, aqui, uma curiosidade: o que fazem os “fazedores” de cultura?
A força da cultura pode ser resumida neste lamento do compositor Nelson Sargento (1924-2021): “(…) Mudaram toda a sua estrutura/ Te impuseram outra cultura/ (…)/ Samba/ Agoniza mas não morre/ Alguém sempre te socorre/ Antes do suspiro derradeiro” (“Agoniza, mas não morre”, Beth Carvalho). Quem está em perigo, nesse caso, é a arte (o samba). Mas os amantes desse gênero secular reagem e conseguem salvá-lo de uma possível extinção ou descaracterização. A arte pode acabar, mas a cultura, viva sempre estará.
A arte, de essência subjetiva, se manifesta de diferentes formas. A cultura, coletiva, é parte natural do que somos como indivíduos e coletividade. Em palavras mais poéticas, a cultura (mãe) acolhe as artes (filhas) em seu colo. Exatamente como a Grécia foi a mãe do teatro ocidental. É nessa dimensão que o “tambor de crioula” se encaixa e se exibe para encantar multidões.
Avisar é preciso: não caia na conversa mole do senso comum, pois é ele que geralmente nos confunde sobre os significados de cultura e arte. E não se deixe enganar por conceitos arbitrários como “Esse povo não tem cultura” ou “Temos a melhor a cultura do país”.
No mês de junho, a sopa cultural ferve nos quatro cantos da Ilha de São Luís. Muita gente sai de casa para aplaudir as apresentações artísticas nos arraiais. Entre tantas, o cacuriá (dança com menos de cinquenta anos de existência), e o tambor de crioula (com quase dois séculos), hoje, “patrimônio” imaterial brasileiro. Nesse folguedo, o povo se reconhece e se abraça.
E, enfim, “uma coisa” é cultura, “outra coisa” é arte.
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Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta
4 respostas em “Uma coisa, outra coisa”
Muito bom, confrade Eloy. Parabéns pelo seu olhar visionário para a arte e a cultura.
Neves Azevedo
Belo texto… onde a cultura mais abrangente, coletiva. Até o desmatamento, pode ser um fato cultural. A arte mais indidualizada, se sobressai no artista,,em momentos de inspiração. Um pequeno rio, que acaba a desaguar, no aceano, transformando-se, num caldo cultural…
Parabéns meu amigo confrade poeta e escritor cronista Eloy. Concordo plenamente com você. O meu olhar é cultura são os costumes que indentifica um povo. As artes poucos praticam, tem vários recursos para praticar a arte, da vocação ao gostar ou do amar, do fazer com virtuosismo ou não. Que faz as faz ou pratica, são os artistas. As artes estão dentro do universo cultural de um povo. Então a cultura é tudo artes e outras práticas deste povo, que necessariamente não pratica arte. Mas que tem costumes. Tipo o modo de falar, ou seja o sotaque, comer rapadura, comer juçara ou açaí. Resumindo as artes estão dentro da cultura, mas as artes é a ínfima parte da cultura de povo.
Parabéns meu amigo confrade poeta e escritor cronista Eloy. Concordo plenamente com você. O meu olhar é cultura são os costumes que indentifica um povo. As artes poucos praticam, tem vários recursos para praticar a arte, da vocação ao gostar ou do amar, do fazer com virtuosismo ou não. Que faz as faz ou pratica, são os artistas. As artes estão dentro do universo cultural de um povo. Então a cultura é tudo artes e outras práticas deste povo, que necessariamente não pratica arte. Mas que tem costumes. Tipo o modo de falar, ou seja o sotaque, comer rapadura, comer juçara ou açaí. Resumindo as artes estão dentro da cultura, mas as artes é a ínfima parte da cultura de povo. Acredito que confirmei simplesmente no meu entendimento ao que o mestre escreveu na sua crônica. Não lhe fiz uma contestação.