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Ser intelectual: um breve diálogo com Milton Santos

Luiz Eduardo Neves dos Santos

Geógrafo e Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA

Nestes últimos dias, me deparei com um texto do saudoso geógrafo Milton Santos, intitulado O intelectual anônimo, publicado no Jornal Correio Braziliense, poucas semanas antes de seu falecimento, em junho de 2001. Um artigo em seu melhor estilo: crítico, ácido e que, mesmo depois de mais de duas décadas, ainda nos faz refletir bastante, porque, indubitavelmente, permanece atual. Tal artigo é uma espécie de complementação de um outro de sua autoria, publicado na Folha de São Paulo dois anos antes, nomeado A vontade de abrangência*. Este escrito tem o intuito de dialogar com as ideias expostas pelo professor Milton nos textos supracitados a fim de trazê-los para o contexto atual, em que a atividade intelectual é arrastada pela enxurrada da instrumentalização dos saberes e sua consequente submissão às lógicas do mercado.

Segundo Milton Santos, a(o) autêntica(o) intelectual tem a função de buscar, dizer, escrever e sustentar publicamente a verdade. Não é meu objetivo aqui reunir uma gama de significados e noções do que é a verdade, a polissemia conceitual é extensa, desde Descartes e Kant, passando por Nietzsche e Foucault, só para citar pensadores ligados ao que se convencionou chamar de modernidade. Mas, voltando a Milton, se pode inferir que ele, quando fala em verdade, se baseia naquilo que não se fala ou pouco se fala, já que há uma força maior, representada por uma ordem política, econômica e ideológica vigente, que contribui para sustentar um pensamento único, legitimado pelos discursos e pelas ações hegemônicas, as quais atropelam a produção do pensamento livre e autônomo. Por isso, a(o) intelectual precisa ser forte o bastante para o enfrentamento nas batalhas das ideais.

O professor Milton Santos já denunciava em seus textos que a vida universitária docente estava cada vez mais representada pela busca de poder sem relação obrigatória com a procura pelo saber. O trabalho dito “intelectual” fora engolido pela técnica e pelo mercado, com a produção do conhecimento bastante voltada à instrumentalização científica de relatórios e projetos a serviço dos interesses de governos e de grandes empresas. Por isso que nas universidades brasileiras as(os) intelectuais são escassas(os), ao contrário de professores(as) burocratas, que reificados em suas relações sociais, buscam o prestígio, os títulos acadêmicos, os cargos na administração, a turbinagem doscurrículos, os prêmios, as homenagens, e a apropriação de recursos financeiros.

Vejamos um exemplo mais próximo de nós, o da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), hoje comandada por um grupo bem delimitado de docentes que a transformou em verdadeiro balcão de negócios. Fazem lobby atrás de projetos e consultorias e são bem pagos para isso. São umbilicalmente ligados aos ditames dos poderes econômicos estatais e privados. E o que chama atenção é a disputa pelas bolsas, distribuídas entre a cúpula do grupo e seus fiéis apoiadores, eventualmente também utilizadas como poder de barganha para angariar novos apoios políticos a fim de se perpetuarem no poder.

A justificativa para tais projetos na UFMA é velha conhecida: promover o desenvolvimento do Maranhão e melhorar a qualidade de vida de sua população. Repetindo Milton Santos, espertamente, tais “autoridades do ensino superior estão cada vez mais comprometidas com os meios e mais descompromissadas com as finalidades” de suas funções sociais, seus discursos falseiam a realidade, por isso são vazios. Tal grupo é apologista do desenvolvimentismo, uma noção importada, que faz parte de um grande projeto da classe capitalista, uma racionalidade que organiza e estrutura ações do poder político, econômico e acadêmico, bem como a conduta dos seus explorados.

É neste contexto desenvolvimentista e lucrativo, que os professores integrantes deste grupo na UFMA defendem a exploração de petróleo e gás natural no Maranhão (leia-se royalties), a escalada predatória-econômica do agronegócio, a dinamização portuária (São Luís e Alcântara) e suas Zonas de Processamento de Exportação (ZPE’s) e, consequentemente, todos os danos socioespaciais e ambientais que provocam ou podem causar. Seus defensores têm denominado o Maranhão de “a nova rota da seda”, porque grande parte dos investimentos são chineses. Destarte, tais docentes se prestam a fornecer seu knowhow, aquele do discurso competente, técnico e científico, para dar legitimidade a um modelo de desenvolvimento alheio e estranho aos reais interesses da população maranhense, empobrecida num território onde empresas gigantes do ramo da mineração, por exemplo, não param de lucrar.

Nas Ciências Humanas, tanto no Brasil como no mundo, o saber técnico e prático se torna regra, programas de pós-graduação e seus docentes estimulam os alunos a não darem importância a teoria em nome de uma espécie de performance empírica, amiúde, em linguagem matematizada de números, gráficos, tabelas e dados espaciais, tantas vezes carente de reflexão e despreocupada com o saber filosófico. Milton Santos falava que a universidade começava a se tornar ausente dos grandes debates nacionais porque assumia uma postura conformista diante dos rumos atuais da vida pública, algo aliás, que se agravou nos últimos anos porque muitos professores (que deveriam ser intelectuais) têm assumido posturas medíocres, antiéticas, arrogantes, burocráticas e submissas ao poder governamental partidarizado e às corporações que juram se preocupar com o social e o ambiental.

Compreendo que o debate sobre o papel da(o) intelectual levantado pelo professor Milton Santos ainda repercute na realidade atual, a ideia de “vontade de abrangência” se baseia em uma filosofia banal, solidamente fincada na reflexão, na crítica e nos fatos, que devem ser acessíveis a um público maior em linguagem inteligível e simples, porém fundamentados.

Vou mais longe, a(o) intelectual – não necessariamente a(o)da academia – deve, além de estudar muito, ocupar a esfera pública para além dos muros institucionais, nos referimos a presença nos debates e na troca de ideias com pessoas invisibilizadas e oprimidas, onde o chão de terra é mais importante que as salas e auditórios refrigerados. Uma troca em que a escuta deva ser bastante exercitada, pois a(o) intelectual pública(o) tem de estar aberta(o) ao aprendizado de novos saberes, como os decoloniais e os contracoloniais, como diz Nego Bispo, ou mesmo a partir da ideia do pensar nagô como propõe Muniz Sodré, pois a dimensão concreta e histórica do Lugar nos aponta resistências, novas descobertas e significados. Mas sem deixar de lado a compreensão das contradições do capitalismo e sua consequente luta de classes, de forma a exercer a função de denunciar injustiças, racismos e desigualdades.

Destarte, a(o) intelectual deve ser sujeito crítico, visceralmente inconformado com a ordem estabelecida, precisa de coragem suficiente para não se submeter às vontades dos poderes econômicos, necessita ser o(a) pensador(a) engajado(a), que assume posição política publicamente ao auxiliar na construção de novos modelos de ação e novas sociabilidades, isto é, uma epistemologia das vivências, realizada no cotidiano, nas interrelações, na cooperação e na solidariedade.

Em tempos de coaches e “intelectuais” do espetáculo, que gostam de holofotes e dos ambientes corporativos, tempos em que a imagem do marketing e as frases de efeito valem mais que acrítica sobre a consciência mistificada da realidade. Tempos em que os títulos acadêmicos e a produção quantitativa do Lattes são mais importantes que o ensino autêntico e a extensão como dimensão social. Em tempos de consenso de ideias e de produção acrítica do conhecimento, intelectuais combativos como Milton Santos, entre outros, fazem muita falta no debate público.

E,como ele nos ensinou, as armadilhas são muitas para aquelas(es) que querem se manter intelectuais íntegros e públicos, por isso devem permanecer em estado de alerta para obedecer, “ao mesmo tempo, ao imperativo da crítica da História e o da sua própria autocrítica, como seu intérprete”. Desta forma, almejar ser intelectual é emancipar-se das amarras subjetivas e concretas de um sistema voltado para a acumulação, que como uma avalanche, a todo momento, insiste em nos transformar em coisas, nos alienar e desumanizar, para nos tornar indiferentes diante das perversidades do mundo. Lutemos, intelectuais ou não, junto com os periféricos e despossuídos, não importa quantas derrotas teremos, o que vale mesmo é a tentativa persistente de produzir uma nova consciência em direção ao futuro, fazendo História no presente.

*Publicado também na obra O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania, editado pela Publifolha em 2002.

Foto: Colheitadeiras em plantação de soja / Outras Palavras

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