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UFMA – 40 anos depois

Flavio Reis
Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia

Faz parte da memória das lutas estudantis, o protesto puxado pelo estudante Josemiro Ferreira de Oliveira, que há dez anos se acorrentou no portão do prédio destinado à residência estudantil, no qual a reitoria da UFMA pretendia fazer outra utilização, sem maiores explicações que não fosse a implicância (totalmente absurda) de que a moradia no Campus seria “inadequada”. A greve de fome puxada por Josemiro e seguida por outros estudantes, depois que ele foi internado por condições de saúde, teve muita repercussão na cidade e levou a uma reconsideração da decisão e finalmente destinar o prédio à finalidade para a qual tinha sido construído.

Dez anos e os mesmos personagens se chocam em torno de velhas questões envolvendo as condições da moradia estudantil. Com a situação agravada pela pandemia em uma gestão que apostou tudo nas atividades online e pouco se preocupou com as instalações, o retorno às aulas presenciais ocorreu por pressão da APRUMA e de estudantes, envolvendo o Ministério Público. Completamente jogadas às traças, as dependências da instituição encontravam-se em péssimas condições, quadro que não se alterou em quase nada até os dias atuais.

Parada em sua costumeira inação e condescendência com todos os atos vindos de cima, a comunidade acadêmica foi sacudida novamente por um conjunto aguerrido de integrantes das residências estudantis, com o apoio de outros estudantes que não se curvaram ao DCE controlado pela reitoria e levantaram novamente a bandeira da reivindicação por melhorias mínimas nas residências, onde a situação de calamidade chega às carências alimentares. Enquanto esse grupo valente peitava o descaso da reitoria, realizava-se mais uma das muitas festas de autocongratulação, desta feita a comemoração de “jubileu de ouro” das turmas que se formaram na UFMA.

As marcas que o período longo de comando que agora se encerra deixa na UFMA remetem a outromomento, entre 1979 e 1989, quando José Maria Cabral Marques dirigiu a universidade e ficou conhecido como “Rei tô”. O roteiro era mais ou menos parecido, momento de expansão, construção de prédios, qualificação do quadro docente e… autoritarismo. Cabral inchou o bolo ruim que era servido pela UFMA, construiu o CT e iniciou o CCH, mas não levou esta universidade a um patamar qualitativo efetivamente distinto. A mediocridade e a mesquinharia intelectual seguiram como tônica. A grande diferença é que estávamos na ditadura militar, no final, mas ainda eram os anos de autoritarismo. No caso atual, as práticas autoritárias foram levadas a efeito em plena vigência do regime democrático, com a aceitação passiva da imensa maioria de professores com assento nos Conselhos Superiores.

A representação mais clara da ineficiência administrativa e do descontrole orçamentário está no prédio inacabado da Biblioteca Central, pomposamente colocado na entrada do Campus. Projetado inicialmente para ser inaugurado em 2012, ano em que a UFMA sediou, pela segunda vez, o encontro tradicional da SBPC, a obra se arrastou e atravessou a década inconclusa, uma visão incômoda e desagradável, misto de má gestão do dinheiro público e megalomania vazia. É a mais gritante, com erros estruturais apontados em relatório do TCU e vários adendos financeiros, mas não a única, se compararmos, por exemplo, as imagens espetaculares dos projetos da Casa da Justiça ou da Concha Acústica com o tímido resultado final, ou o prédio do Núcleo de Artes, outro projeto que se arrasta abandonado, quase uma década depois da solenidade de anúncio promovida no CCH.

A Biblioteca Central da UFMA, prestes a ser “inaugurada”

Trabalhando como professor desta universidade desde 1987 e tendo aqui feito a graduação, vejo com um travo amargo que, mais de 40 anos depois, a UFMA mudou sua aparência, embeveceu-se com números, títulos e homenagens, mas perdeu em vigor cotidiano e parece ter abdicado de qualquer sonho de uma trajetória mais eficiente e participativa. Somos hoje uma instituição-zumbi, vagando meio sem vida, com corredores esvaziados, discentes desanimados e docentes preocupados com seus respectivos Lattes, imersos num personalismo estéril, que expressa, sem dúvida, muito das características destes tempos de selfies, likes e seguidores, mas também é o espelho de uma administração superior que pouco se preocupa com uma prática efetivamente voltada para a criatividade e a transformação social. Continuamos como aquele “elefante branco” imenso e apartado da sociedade, gerindo sua própria vaidade e inutilidade.

Na “inauguração” do prédio inacabado da Biblioteca Central, não faltarão autoridades, puxa-sacos e vaidosos de todos os tamanhos. E certamente não faltarão as coberturas elogiosas da TV UFMA e da Rádio Universidade, geridas como verdadeiros apêndices submetidos aos desígnios da reitoria. Por sob essa maquiagem toda, restará, no entanto, a imagem forte daquela moçada destemida enfrentando a truculência intimidadora dos agentes armados da Polícia Federal no Campus escuro, por determinação da administração, gritando e gravando “Lutar não é crime!” diante dos policiais atônitos, que recuaram.

Estudantes ocupam o prédio da reitoria da UFMA, em outubro de 2023. Foto: @ocupaufma

Esse movimento, numa ação fulminante e decidida, foi além do motivo inicial e colocou a nu os problemas graves de infraestrutura da universidade, abrangendo o funcionamento do restaurante, a segurança, a iluminação noturna, o ar condicionado das salas, os bebedouros, banheiros e mais. A pauta é extensa e mostra o descaso com que as instalações foram tratadas neste período. A reitoria tentou o tempo todo criminalizar o movimento, invertendo as coisas e mostrando os estudantes como vândalos do patrimônio público. Eles mostraram em alto e bom som quem são os verdadeiros vândalos da universidade pública, os que trabalham para o seu sucateamento. Foi uma manifestação de vida num espaço intencionalmente esvaziado e tratado pelos dirigentes com a marca inegável do velho patrimonialismo. A imagem final dessa disputa será a dos estudantes comemorando com danças e cantos no auditório centrala vitória alcançada pela Ocupação nas barras da Justiça. Cumpre, é claro, manter a mobilização e acompanhar a efetivação dos compromissos assumidos.

A UFMA vive agora seu momento mais crítico, sem vida, sem projeto, sem rumo. Não é propriamente uma surpresa, isto costuma ser o resultado do personalismo autoritário, mas também não deixa de ser uma percepção dolorosa, de uma instituição cujos membros nunca demostraram força (e mesmo a intenção) de tomar as rédeas do próprio destino e construir uma universidade efetivamente democrática, inclusiva e criativa. O quadro é sombrio e não há espaço para ilusões, mas a ação dos estudantes, recusando tutelas e chamando a comunidade universitária a discutir sobre a utilização do espaço e suas condições de funcionamento, é uma centelha teimosa a indicar que outra história ainda é possível.

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