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De “Canção em canção” a nossa perfeita tradução

Joãozinho Ribeiro(*)

Impregnado de muitas suspeitas, inauguro o presente texto, que trata do projeto “Canção em canção”, protagonizado por um dos maiores compositores contemporâneos do Maranhão e do Brasil, com todas as letras e melodias – Josias Silva Sobrinho. A expressão “impregnado” revela a ligação de muitos anos, e a admiração explícita que mantenho pela obra desta grandiosa figura humana, que trato afetivamente como meu irmãozinho Cantador.

“Sou cantador do tempo / E o tempo tenho cantado / Tempo que falta é futuro / Tempo que sobra é passado / Cantador que canta só / Canta mal acompanhado”

Os versos acima denunciam a nossa sintonia musical e, mais do que isso, os laços culturais do criador/cantador com seu tempo, história, e com a construção coletiva que a sua produção criativa possibilita, compartilhada com as nossas humanidades.

Não vou me ater nestes breves comentários aos detalhes do projeto “Canção em canção”, até porque outros competentes analistas culturais já o fizeram e continuam fazendo, abordando o conteúdo das obras, importância e significados. E terão muita matéria-prima musical para apreciar nos próximos meses, registrada para as presentes e futuras gerações.

Meu foco se dirige ao momento delicado e dolorido por que passa a música produzida no Maranhão, a música maranhense; ou, como se costuma rotular, a obra lítero, musical, lítero-musical produzida por estas plagas. Escassa nas emissoras de rádio, quase inexistente na televisão, subtraída dos palcos, das redes, das ruas, principalmente das grandes festas populares – Carnaval São João, Réveillon, aniversários das cidades, festejos religiosos, quando os espaços são ocupados por celebridades já consagradas nacionalmente, ouvidas o ano inteiro, todo dia, o dia todo. Estas, contratadas por robustos cachês, pagos antecipadamente, caracterizando uma espécie de evasão de riquezas, cultural e moralmente nefasta para a economia, para a cidadania e para a autoestima dos habitantes de cidades como São Luís, que ostenta há mais de duas décadas o portentoso título de Patrimônio Cultural da Humanidade. 

Parafraseando uma brilhante tirada que presenciei do então Ministro da Cultura, e hoje membro da Academia Brasileira de Letras, Gilberto Gil, em 2004: “A música é a linguagem dos deuses; o resto é má tradução.” 

Penso que a música permanece sendo um dos maiores ativos que uma cidade, um estado e um país podem se orgulhar de dispor. Não só do ponto de vista cultural, como também econômico, e até mesmo histórico e político. No nosso caso, a música que produzimos no Maranhão chega a ser a nossa mais perfeita tradução, de tudo aquilo que somos e do que pretendemos ser, com seus variados gêneros, sotaques e ataques.

Nosso irmãozinho Cantador, Josias Sobrinho, é um exemplo vivo, ainda bem, desse engenho e arte, cantado e recantado, gravado e traduzido por muitas vozes deste País chamado Brasil; que, se um dia se tornasse verbo, só admitiria ser conjugado no plural. O projeto “Canção em canção” é singular, porém encharcado de pluralidade, considerando todo o generoso formato e a cadeia produtiva de sujeitos da vida & da arte que se propõe a mobilizar (intérpretes, músicos, estúdios, parceiros, comunicadores, público etc.). Um exemplo de boa aplicação dos recursos da Lei Estadual de Incentivo à Cultura.

Em suma, trata-se do registro de uma centena de exemplares da obra lítero-musical inédita deste filho festejado de Cajari, transformada em legado histórico, artístico e cultural para toda a Humanidade. Uma mostra do potencial do nosso qualificado repertório musical, que precisa de valorização e reconhecimento, antes que se transforme numa espécie em extinção, ou objeto de uma cultura envergonhada. 

Da cultura envergonhada

Esta sensação de cultura envergonhada, tenho sentido quando me deparo com artistas e grupos da música maranhense, de quase todas as gerações, matizes e gêneros, entrevistados pelos meios de comunicação locais, exibindo, até às vezes deslumbrados, um repertório de músicas que os seus próprios autores e intérpretes originais sequer utilizam mais em seus respectivos shows. 

Do seu jeito simplório e solidário de fazer projetos e canções, Josias Sobrinho transforma, de forma exemplar e discreta, o projeto “Canção em Canção” em um marco importante para todos nós compositores, intérpretes, regentes, arranjadores e admiradores, compreendermos mais profundamente o papel da produção criativa para o exercício da cidadania cultural, como bem destacava a filósofa Marilena Chauí, nos anos 90 do século passado.

Que não sejamos resto, nem má tradução, como alertava o ilustre Gil no início dos anos 2000; porém cidadãos do mundo, sem tirar o chapéu pra qualquer vagabundo que apareça, como sempre nos ensinou o poeta cantador, com todo o afeto de suas maravilhosas canções!

(*) poeta e compositor

Imagem destacada / divulgação / Joãozinho Ribeiro e Josias Sobrinho

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