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Mulheres e colheres

Texto alusivo ao 25 de novembro – Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres: “Alaranjar o mundo: acabar com a violência contra as mulheres, agora!”

Eloy Melonio

Imagine duas mulheres vivendo uma situação de “violência doméstica”: uma, em 1962, e a outra, em 2022. Em que se diferenciam as duas realidades?

É óbvio que o cenário atual está mais iluminado, embora ainda faltem elementos indispensáveis em sua cenografia. O antigo, ao contrário, era sombrio, pintado com as cores do medo, da submissão.

As duas— uma mais que a outra — são parte do enredo desse drama vivido por muitas mulheres no Brasil. Hoje, felizmente, a conscientização e o rigor da lei já nos deixam entrever um desfecho auspicioso.

A primeira situação é do tempo das “colheres”, guardadas na gaveta do armário. A segunda é de hoje, das palavras empoderadas que voam em todas as direções.

Entre uma e outra, lembro-me dos meus dias de criança, quando via aquele senhor bem-vestido, passos compassados, saudando as pessoas na rua. Sua esposa, uma mulher triste, introvertida, com quatro filhos. E eu, moleque que brincava na rua, não entendia direito quando o povo falava que “ele batia nela”.

Mas eu já sabia que “A voz do povo é a voz de Deus”. E se era assim…

Algo me incomodava naquela situação: por que as pessoas ficavam caladas, como se nada estivesse acontecendo? Não aparecia ninguém com uma colher (ou faca) para botar na garganta do patife e gritar: Pare de fazer isso, seu covarde!

É que nessa época não havia leis de proteção à mulher, e todos se calavam diante dos abusos cometidos pelos maridos malcriados. Até a polícia, composta integralmente de homens, passava “panos quentes” para esfriar os casos que chegavam às delegacias. E o criminoso continuava fazendo o papel de gente boa, com sua reputação integralmente preservada. E nada de colheres!

Até porque a ordem presumida era não meter as pobrezinhas em encrencas. E briga de marido e mulher era uma dessas presunções. E, para criar um adágio rimado, terminaram adotando as inofensivas “colheres”. Quem sabe já com a consolidada ideia de “violência gera violência”.

Recentemente li uma matéria sobre “violência doméstica” na revista CLAUDIA. Era, na verdade, a coluna da promotora Gabriela Manssur, na qual ela sugeria duas atitudes: “Esteja ao lado delas” e “Combater o mal em suas raízes”.

A grande lição da colunista é apoiar “os movimentos e as leis” em defesa e proteção das mulheres. Parece tarefa fácil, desde que “ela” não seja a mulher do seu melhor amigo ou do seu chefe. Outro ponto de destaque é a informação e o conhecimento. E, por último, tirar a venda para ver o que está acontecendo na nossa cara: o medo de se meter no problema do outro, aquela velha atitude do “eu não tô nem aí”.

Realmente, não é tão simples, mas algo precisa ser feito. E a receita é basicamente esta: palavra amiga e solidariedade. Em suma, não apenas cortar o mal pela raiz, mas aniquilar todo o mal, incluindo suas ramificações. Ou seja, não ver apenas a especificidade de um caso, mas abrir a cortina que esconde as artimanhas desse cenário desprezível.

Nessa receita, podemos incluir: conhecer o problema, suas motivações, e buscar a solução. Casos de violência se repetem porque não chegam ao conhecimento das pessoas — parentes ou amigos próximos. Tampouco das autoridades. E, livre, “a bruxa” ronda os relacionamentos, pintando casos e casos com as cores cinzentas da submissão, do medo, ou bordando vidas e vidas com os fios do aprisionamento, da ameaça, da pressão psicológica.

A realidade de hoje deve-se, em grande parte, a uma personagem expressiva na defesa dos direitos da mulher. Maria da Penha Maia Fernandes (hoje com 77 anos), uma mulher com coragem e palavras a tiracolo. Essa luta resultou na lei que leva o seu nome, a terceira mais bem-avaliada do mundo.

Sua história é marcada por duas tentativas de homicídio, além de agressões físicas e psicológicas. Cansada de sofrer nas mãos do marido, foi além da denúncia comum. Recorreu à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos em busca da própria proteção e de uma salvaguarda definitiva para proteger, de forma integral, a mulher.

Este novo cenário, montado ao longo dos últimos anos, é também fruto do trabalho de um exército de “guerreiras” em várias frentes. No Congresso Nacional, nos órgãos da Justiça, nas associações de mulheres. Nos projetos de peso nacional, como o “Justiceiras”, da OAB, e — ressalte-se — da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, a CE do TJMA.

Em decorrência dessa lei e toda essa movimentação, hoje chovem notícias de “feminicídios” e outros tipos de violência doméstica e familiar na imprensa nacional. E muito casos são solucionados, e os agressores punidos. Em nossa cidade, um dos casos de maior repercussão foi o de Mariana, filha de Sarney Neto e Flor de Lys. Mariana foi estuprada e assassinada, em 2016, pelo ex-marido de sua irmã, Carol Costa. Desde então, Carol lidera o projeto “Somos Todos Mariana” e já ministrou mais de 70 palestras em escolas, universidades, igrejas e associações comunitárias. O assassino, Lucas Porto, está preso na Penitenciária de Pedrinhas.

A realidade é que nem todos os casais vivem na praia ensolarada das canções românticas. “Também há dias em que a chuva cai” (The Fevers). E aí o bom senso dita que é hora de parar para conversar. Ou reclamar, como fez Adão: “A mulher que tu me deste por companheira…” (Gn3:11). Mas jamais ofender, maltratar, machucar, matar.

Se o casamento não vai bem, existem os procedimentos terapêuticos e os trâmites legais. O que não se pode admitir é que “um lado” use de sua força física ou poder econômico para subjugar o outro. Ou, ainda pior: ficar impune. Quanto à sociedade, calar-se é o mesmo que “deixar a vítima no banco dos réus”.

Se eu tivesse os poderes mágicos de Harry Potter, correria ao passado para gritar para os meus vizinhos: Guardem suas colheres, seus imbecis! E soltem suas atitudes!

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Eloy Melonio é contista, cronista, ensaísta, letrista e poeta.

2 respostas em “Mulheres e colheres”

Guardem suas colheres, seus imbecis! E soltem suas atitudes.
Que brava Maria da Penha, ainda viva! Parabéns pelo texto Eloy. Viva,o respeito pelas mulheres.

Interessante o escrito, que nos coloca de frente ao grande problema social… O feminicidio precisa ser combatido de frente, por todas as forças da sociedade e por todos os poderes da República…. Todo cidadão tem que ser um agente da lei, ajudando nas denúncias, fortalecendo um grande problema, que é dever de todos, não somente, dos poderes constituídos…

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