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Palavras e cores

Eloy Melonio

“Há que se juntar cada palavra”
“Sou-te o mais humilde escravo na floresta do discurso”

E se as palavras tivessem cores?

Isso mesmo! Você digitaria uma palavra no seu notebook, e ela ― pum! ― surgiria em sua respectiva cor. Tal escrita ainda não é tecnicamente possível. Por enquanto, só o velho e cansado “negrito”. Mas acho que a tecnologia pode dar um jeito nessa aspiração. E aí, uma dúvida improvável: de que cor seria a palavra “amor”?

Convencionalmente, amor é vermelha. Mas nem tudo são flores nesse jardim das cores. E, assim, será inevitável a criação da Organização Mundial das Palavras (OMP) para definir essa situação. Para algumas palavras até posso imaginar a sua cor: sangue (vermelha), floresta (verde), leite (branca).

E quanto a “dor”, “saudade” e “tristeza”? “Sol” seria amarela ou branca? A olho nu, o Sol é amarelo. Para a ciência, branco. E aí, a necessidade do VCLP (Vocabulário Colorido da Língua Portuguesa, semelhante ao VOLP, da ABL). E da classe das “genéricas”, para as de difícil definição, como “tempo” e “vento”.

Se ainda não têm cores, as palavras sempre tiveram “espírito” ― aquela parte “inteligente e sensível”, “a ideia predominante”. Por essa razão, falamos em “espírito da obra” e “espírito da lei”. E esse espírito, presente em cada vocábulo, tem se revelado suficiente para as línguas.

Na versão judaico-cristã, as palavras surgiram das trevas do “nada absoluto”. E tudo começou com um comando de Deus: “Haja luz!”. E a luz brilhou por causa da ideia de existência, implícita no verbo “haver”. Depois do “bum” da criação, o Criador passou a bola para a criatura. Coube a Adão a missão de nominar tudo à sua volta. E seu primeiro ato foi chamar sua companheira de Eva, a “mãe de toda a humanidade”.

Ainda bem que Deus concedeu ao homem o privilégio de “pensar e falar”― marca registrada que nos diferencia dos outros animais. Já imaginou o homem sem o poder e encanto das palavras? Experimente pensar num fim de semana nos Lençóis Maranhenses! À sua mente virão imagens acompanhadas de palavras (lagoa, rio, passeio de barco).

Imagine a cena: depois de caminhar por dias no deserto, uma pessoa está cansada e sedenta. Adiante, uma placa com uma seta: OÁSIS. Qual será a sua reação? O que fazemos quando a frase THE END (FIM) aparece na tela do cinema? Enfim, não há como negar que a palavra é tudo, porque tem essa relação necessária com os sentidos. Vivemos ― no dizer do poeta Cassiano Ricardo (1895-1974) ― numa “ilha cercada de palavras por todos os lados”.

E se Deus nada tivesse dito, o que seria da criação? Tê-la-ia criado apenas com sua boa intenção? No bom sentido, Deus é mais que um “cara gozador” (Chico Buarque). É um falador compulsivo. O que mais se vê na Bíblia é: “Disse Deus”; “E assim falou o Senhor”. Num outro viés, o professor israelense Yuval Noah Harari destaca a habilidade de fofocar dos sapiens como determinante na criação e no desenvolvimento da linguagem falada.

Desde o início do mundo, as palavras rodam por aí. Sem fronteiras, sem barreiras culturais ou intelectuais ― vivinhas da silva, no palco da interlocução. Nas páginas da ficção, fantasiadas do “ler para crer”. Nos livros didáticos, apadrinhadas no “Penso, logo existo”. Nos rabiscos do aluno aplicado, desalinhadas; e elegantes, na redação do vestibular.

Há muito queria escrever sobre a “palavra” ― essa coisinha com “som e significado” que pode, sozinha ou em grupo, produzir enunciação. Esse desejo se concretizou nos últimos meses, quando ― estudando “REDAÇÃO, PALAVRA & ARTE”, de Marina Ferreira (Atual Editora/2010 [ensino médio]) ― encontrei a semente e o adubo para o estudo e a fruição de textos inspiradores. Neles, “o discurso forte, penetrante, bem-articulado”, no conceito de Roland Barthes, que, sobre suas próprias palavras, acrescenta: “a força sagrada, vivificante, com a qual criava mundos ao meu redor”.

No livro em questão, textos inspiradores de multiartistas, como Arnaldo Antunes (ex-Titãs) ou de “feras” do fazer literário, como Moacyr Scliar (1937-2011), elevam o prazer estético da leitura.

Esse sentimento trouxe mais cor à ideia de que a arte é brilhantee expressiva. Na produção literária ― como nas artes em geral ― dois pontos se entrelaçam: a inspiração do artista e sua habilidade em dar asas à sua imaginação, exatamente o que fiz neste ensaio.

Foi essa percepção que me revelou as cores cintilantes nos dois versos da epígrafe deste ensaio. Neles, João Batista do Lago esboça, de forma magistral, a ideia de utilidade da palavra e servidão do artista, tecida nos poemas “Dialética da Sarjeta” e “Palavra”― ambos de seu livro “50 TONS DE PALAVRAS” (Ed. ANFITEATRO, Curitiba, 2019).

Infelizmente, não é o que se percebe em muitos textos que circulam nas redes sociais e em alguns livros recém-lançados em nossa cidade. Textos mal-arranjados passeiam como se fossem Literatura. Em linhas turvas, prosa recortada para forjar um poema, contos que não contam uma história ficcional, crônicas que mais se parecem com uma redação escolar.

Sinto inveja ao ver gente produzindo literatura com a facilidade e a frequência de quem faz uma lista de compras para o supermercado. Talvez porque sua motivação seja essa ânsia de ganhar “likes e palminhas” nas redes sociais. Felizmente, essa genialidade não me vê com bons olhos. Demoro-me em concluir um conto, crônica ou poema ― sempre desconfiando de que falta alguma coisa, ou que sobra alguma coisa. E haja coisas e mais coisas. Entre elas, revisões.

“De todas as artes, a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil, é sem dúvida a arte da palavra”. Nessa citação, o filólogo e ensaísta português Latino Coelho(1825-1891) sabiamente inseriu “difícil” após as afetuosas “bela” e “expressiva” para dignificar a palavra. E, mais especificamente, a habilidade em lidar com ela, lapidá-la, tecê-la como quem tece um tapete persa.

Apesar disso, muita gente brinca com elas, tentando inventar o que já está inventado. Um caminho torto em busca de notoriedade, que ― ao fim e ao cabo ― entedia o leitor. Acho que nem Olavo Bilac (1865-1918) nem Ruy Barbosa (1849-1923) ousaram tanto em termos de “joguinho com a linguagem escrita”. Na observação do prof. Jáder Cavalcante, “para criar ou maquiar uma palavra, é preciso conhecer sua morfologia, sua semântica, e a sintaxe da frase onde está agasalhada. Não é algo tão simples como chupar um pirulito”.

Produzir literatura é trabalho sério, seríssimo. Um escritor de verdade se entrega de corpo e alma à sua arte. Porque sabe que, depois de pronta ― assim como a joia do ourives ―, ela descansará em outras mãos. E, aqui, faz-se necessário ouvir a voz de Clarice Lispector (1920-1977), porque tinha autoridade para tal: “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas” (A Hora da Estrela, Rio de Janeiro, Rocco).

Nunca me esqueço de três lições essenciais. A primeira, de Mark Twain: “Busque sempre a palavra certa, evitando a quase certa”. Em seguida, Ezra Pound: “carregar a linguagem de significado até o grau máximo possível”; e por último, Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras”. Essa peça textual em três atos é a garantia do encanto de que nos fala Ferreira Gullar.

Dito isso, recorro mais uma vez a Clarice Lispector: “A palavra tem que se parecer com a palavra. […] E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela”. Esse “não pode” é certeiro, pois os alvos estão armados por aí.

Entre tantos mestres, Frei Beto é o que fala a língua do escritor, mesmo daquele que se julga preparado. Seu “Ofício de Escrever” (Ed. Rocco, 207) ― profundo e inspirador ― é uma faculdade da produção textual: “Não sou a obra que faço. Ela é melhor e maior do que eu”. Ainda assim, alguns se demoram e se recusam a apreender essa impecável lição do jornalista e frade dominicano.

Certamente não se constrói um prédio textual apenas com palavras. Para seu fundamento, o cimento da sintaxe. Para a fachada, as cores da semântica. Na concepção do projeto, um arquiteto que saiba adornar os aspectos plásticos das emoções e dos sentimentos.

Confesso que sou apaixonado pelas palavras. Não me refiro ao verbete puro e simples, mas à sublime expressão do pensamento que realça as linhas das minhas ideias e as páginas das minhas emoções. E porque são testemunhas das minhas incertezas: “(Tenho medo)” […] De minhas palavras/ se deixarem intimidar,/ e, timidamente,/ refrearem a queda livre/ do meu livre pensar”.

Nos palanques do embate eleitoral, as pobrezinhas são impiedosamente aviltadas. Verdade e mentira parecem irmãs; promessas vazias se enchem de poder. Todo o cuidado é pouco com as “flechas perdidas” que voam sobre nossas cabeças. Podem não matar, mas ferem sensivelmente a inteligência das pessoas de bom senso. Contadas as raras exceções, são tão “descoloridas” quanto as intenções de seus emissores. Porque não têm a tonalidade cor-de-rosa da linguagem consistente nem a coerência sintático-semântica da boa intenção.

Coloridas brilham na imaginação do escritor como o Sol que desliza por trás do arrebol da tardinha; e no coração do leitor, como a Lua que se enche de fulgor no início da noite.

Em cores luminosas, essas entidades realçam o brilho no haicai de Carlos Seabra: Sonho colorido / o Sol dança com a Lua / você comigo.

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Eloy Melonio é professor, contista, cronista, ensaísta, letrista e poeta.

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