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E por falar em tradição

Eloy Melonio é contista, cronista e poeta.

Felizmente alguns acontecimentos de nossa vida se sedimentam de tal forma que, em algum momento, se apresentam e nos iluminam. E trazem em seu bojo memórias que não se devem apagar.

E, assim, despertei de uma tranquila noite de sono. Abri os olhos e não acreditei que já eram quase 9h. Fui à janela do quarto e, do nono andar, vi uma grande movimentação de pessoas numa área elevada a uns quatro quarteirões do dormitório da Duquesne University, em Pittsburgh, Estados Unidos, onde eu estava hospedado.

Ônibus amarelos se destacavam na cena. Estudantes fardados, com bandeiras, faixas, e instrumentos da banda marcial, circulavam orgulhosos, exibindo um entusiasmo contagiante. Até chegar à rua que ficava perto da escola eu não tinha a menor ideia do que se tratava.

Era o outono de 1992, e o clima estava um tanto frio. As calçadas dos dois lados da rua já estavam ocupadas por uma boa leva de gente: adultos, jovens e crianças. Aproximei-me de um senhor que segurava um copo de plástico com chocolate quente e indaguei: What’s going on?

Só então percebi o que ia acontecer. Era 12 de outubro, Columbus Day —descobrimento da América. Além do desfile estudantil, outras atrações iam percorrer algumas ruas da cidade: o prefeito, em carro aberto, o xerife e seus auxiliares mais próximos, um pelotão de veteranos (ex-combatentes). Uma ala de carros antigos, outra do clube dos motoqueiros com suas Harley-Davidson, e outras relevantes representações da cultura americana.

Em marcha, os garbosos estudantes alinhavam seus passos. Logo à frente dos pelotões de alunos, uma baliza executava evoluções acrobáticas com seu bastão. Parecia a cena de abertura do filme “Nascido em 4 de Julho”, de 1989, estrelado por Tom Cruise.

Numa rápida pesquisa sobre o que acontece no 4 de julho (Independência dos Estados Unidos), encontreio seguinte no DICTIONARY.COM: “(…) fogos de artifício, desfiles, feiras, piqueniques, concertos, jogos de baseball, reuniões familiares, discursos políticos e cerimônias”. Tudo isso “para celebrar a história, a administração pública e as tradições dos Estados Unidos”.

As memórias de que falei no início deste ensaio afloraram agora — trinta anos depois — por dois motivos. Primeiro: a gloriosa comemoração dos setenta anos de reinado da rainha Elizabeth II. Como manda a tradição, uma rica e pomposa programação parou o Reino Unido e repercutiu em todo o mundo por sua representatividade. Razões não faltaram para tanta festividade: aos 96 anos, seu reinado é o mais longevo da história da monarquia britânica, e o segundo na história da humanidade.

O segundo motivo se resume a um trecho de uma matéria na revista Veja (20-4-2022) sobre a recém-lançada série “The First Lady” (Paramount+), que rememora as mais destacadas primeiras-damas dos Estados Unidos. Comparando ficção e realidade, o texto destacaque a passagem do cargo de presidente, em janeiro de 2021, desconsiderou o protocolo oficial. Pela primeira vez na história do país, a família do mandatário (Donald Trump) “se recusou”a receber a do futuro chefe de Estado (Joe Biden) “para um tour pela Casa Branca”. Uma atitude que, de certa forma, maculou uma tradição da residência oficial do presidente americano. Mesmo assim — tosavetheday (salvar a pátria) — estavam lá os três ex-presidentes Barack Obama, George W. Bush e Bill Clinton, acompanhados de suas esposas.

Essa imersão na cultura do Reino Unido e dos Estados Unidos, cujos laços históricos unem os dois lados do Atlântico, fizeram-me refletir sobre a “nossa visão” das tradições. Infelizmente, não podemos dizer que somos um povo amante de suas tradições, especialmente as de natureza cívica. Gostamos de festas, festejos religiosos, manifestações folclóricas. Mas há muito não lembramos que ainda temos o 7 de setembro, o Dia da Bandeira, a Proclamação da Repúblicae outras datas, discretamente guardadas no calendário. Quando são feriados, fica mais fácil lembrar, mas lembrar não é o mesmo que celebrar.

Nos feriados cívicos, viajamos, vamos à praia, ao shopping. E só! Sem nos darmos conta de que uma nação precisa celebrar suas datas e acontecimentos históricos. Porque é por meio dessa valorização que se mantêm e transmitem nossos costumes, memórias,crenças, lendas. Nossos heróis, nossos escritores, nossos artistas.

Éesse aspecto da tradição que consolida em nós o sentimento deidentidade epertencimento. Em termos mais amplos, a possibilidade de nos manter ligados por laços históricos, culturais e linguísticos. Ninguém melhor que Caetano Veloso para expressar a antítese dessa realidade. Baiano, recém-chegado a São Paulo,o poeta sente na pele e no coração o que é estar em terra desconhecida: É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi (Sampa, Caetano Veloso).

Já fomos melhores nesse quesito. Em 1964, quando eu cursava a quinta-série do curso primário na Escola Modelo Benedito Leite, tínhamos aulas de música uma vez por semana paraensaiar nossos hinos. Não sei se hoje podemos achar uma escola, especialmente pública, que faça algo parecido.

E, aqui, uma breve, mas preciosa constatação: as tradições se apoiam em três pilares: família, escola e governo. Se, no entanto, não servem mais aos interesses comuns ou violam os direitos das pessoas ou dos animais, não há porque mantê-las. Ninguém come uma sopa estragada só porque foi feita pela a avó querida.

Às vezes, tem-se a impressão de que somos exageradamente vulneráveis,superficiais, desligados. Num piscar de olhos, trocamos nosso “papagaio” pela “pipa” do carioca; nossa “juçara” pelo “açaí” do paraense; nossa camaroada pelo “sushi” do japonês; nosso Saci Pererê pelo E.T. dosamericanos.

E aí — de um dia para o outro —“sextamos” numa Black Friday que cai no dia 13.

Não estou defendendo a ideia ridícula de nos metermos numa redoma, protegidos dos pés à cabeça do que é novidade, do que vem de fora. Tudo isso é muito bom e podemos desfrutarcom ou sem moderação —coisas do marketing. Mas…

Falo de algo mais simbólico, institucional, sociocultural. Algo que seja fonte inesgotável deinspiração e celebração. Como exemplo, cito os filhos dos imigrantes europeus do sul do Brasil, porque aprenderam que “é a tradição que faz de nós aquilo que somos” (Albert Einstein).Eles têm muito a nos ensinar, e nós, muito mais a aprender.

E, por fim, espero que nós —brasileiros de todas as cores, procedências e tendências— jamais vivamos a essência de“Xote Ecológico”, músicado saudoso Luiz Gonzaga: Cadê a flor que tava aqui?/ Poluição comeu/ E o peixe que é do mar?/ Poluição comeu.

O que os nossos filhos estão aprendendo em casa e na escola? Muitas coisas, certamente. Infelizmente uma delas é que “aspessoas passam, e as tradições também”.

2 respostas em “E por falar em tradição”

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