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O significado do bug no CNPq

Fonte: Elaine Behring, no site esquerdaonline

Doutora em Serviço Social (UFRJ). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS).

Na última semana o mundo da pesquisa, da universidade, enfim, da ciência no país foi surpreendido com o bug dos sistemas de dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O Ministério da Ciência e Tecnologia, hoje sob a gestão (!?) de Marcos Pontes, o astronauta, promete que os sistemas retornarão intactos a partir de 2 de agosto de 2021, o que é contestado por muitos(as) pesquisadores(as) e técnicos que apontam para perdas irreversíveis. “Quem viver verá!” Uma frase que não pode ser desprezada neste Brasil tóxico e embebido de processos destrutivos e onde o desprezo pela ciência, pela educação e pela cultura explode em palavras e fatos todos os dias: no trato da pandemia pelo governo neofascista, com nossos mais de 555 mil mortos; na lida com a cultura pelo nefasto Mário Frias, sendo a última cena o incêndio da abandonada Cinemateca Brasileira em São Paulo, onde se foram documentos e equipamentos históricos e parte do acervo de Glauber Rocha. É evidente: o bug do CNPq é mais uma expressão da combinação perversa entre neofascismo e ultraneoliberalismo, atingindo uma instituição central – mesmo com todas as suas limitações e problemas – na sustentação material da produção de conhecimento no Brasil. Estamos falando aqui de uma estrutura e base de dados do Estado capitalista brasileiro – pública e com as inúmeras contradições daí decorrentes – que fornece bolsas e auxílios para 84 mil pesquisadores(as) em todos os níveis de conhecimento e que têm seus currículos na Plataforma Lattes; que publica editais de financiamento da pesquisa e de bolsas pela Plataforma Carlos Chagas; que publicizam a composição dos Grupos de Pesquisa em atividade no país; e que alimentam a avaliação da pós-graduação brasileira (Plataforma Sucupira, aqui numa interface com a CAPES).

As reações no meio científico brasileiro foram da consternação à piada. É impossível conter a gargalhada diante de inúmeros memes e comentários irônicos que circulam nas redes sociais esses dias, muitos deles expressando o incômodo, a indignação e a crítica ao produtivismo acadêmico e aos excessos de quantificação e comprovação que têm balizado, por exemplo, o sistema de avaliação da pós-graduação, alimentado pelas plataformas digitais do CNPq.

Nosso objetivo nesse breve texto é uma reflexão talvez menos apaixonada, e acolhendo a crítica do produtivismo acadêmico, esse câncer gerencialista e competitivo inoculado na universidade brasileira nos tempos de neoliberalismo e contrarreforma do Estado, que Marilena Chauí qualificou como “universidade operacional”. Um pressuposto da reflexão é de que jamais se deve confundir produtivismo com produção acadêmica. E, menos ainda, recusar a transparência e publicização de resultados de pesquisas, neste país onde poucos(as) chegam à universidade e a maioria sequer se relaciona com esses bancos de dados. Sendo mais explícita: o argumento do produtivismo não pode nem deve se sobrepor às requisições de produção acadêmica num sistema tributário regressivamente sustentado pelos trabalhadores. Por outro lado, ao nosso ver, a crítica central deve ser feita aos critérios de avaliação, que tem se fundado sobre elementos meramente quantitativos, exercendo de fato essa pressão produtivista, e estabelecendo uma relação opressiva entre os pesquisadores e as plataformas de dados que hoje saíram do ar, destacadamente a Plataforma Lattes. Pensamos que esses meios – evidentemente organizados para finalidades determinadas – não devem ser o alvo central da nossa crítica. Não somos ludistas e não retornaremos à máquina de escrever. Ademais, defendemos o controle democrático e público da universidade e das instituições científicas pelos trabalhadores e tais sistemas podem ser – se internamente modificados e utilizados a partir de outros critérios – adequados a esta finalidade: de uma pesquisa pública e voltada para os interesses das maiorias; do incentivo à produção e não ao produtivismo e à competição. Creio, portanto, que não se pode atribuir a direção produtivista exclusivamente às plataformas. É uma simplificação a ideia de que estamos deixando de produzir conhecimento para lançar dados em plataformas, ainda que haja uma profunda irracionalidade comprobatória e ímpeto controlador em algumas delas e que alguns “pares e ímpares” sejam adesistas sem críticas ao produtivismo. O maior exemplo da irracionalidade (ou uma ratio intencional) é a Sucupira, que vem tirando do sério os gestores da pós-graduação e os docentes, obrigados a perder um tempo precioso em scanners. Elas, assim, servem à direção produtivista e de controle do processamento do trabalho docente, tal como se organizam e são utilizadas hoje. A questão é a de colocar os meios – o desenvolvimento das forças produtivas – a serviço da concepção de uma universidade e ciência pela humanidade. Isso alteraria o Lattes profundamente, bem como as demais plataformas, mas continuaríamos a ter instrumentos semelhantes, provavelmente, dando mais transparência e publicidade à produção científica e acadêmica e ao destino do fundo público utilizado nas pesquisas. Para o momento, a situação dos sistemas do CNPQ revela apenas e sem disfarces a destruição do sistema público de ciência e tecnologia.

Vale dizer que o Brasil tem vivido uma condição geral de ajuste fiscal permanente há quase três décadas e a universidade e a pesquisa não tiveram uma situação confortável de financiamento nesse período. Todavia, a partir do golpe de Estado de novo tipo de 2016, nos encontramos sob um novo regime fiscal ultraneoliberal, com impactos deletérios sobre o financiamento das políticas públicas, tanto para a Educação, e destacadamente para o ensino superior (que abriga a maior parte da pesquisa no país), quanto para a Ciência e Tecnologia, onde se localiza o CNPq. A Emenda Constitucional n. 95, do malfadado e criminoso teto de gastos, agravou em muito a condição de desfinanciamento que já vinha ocorrendo, o que, agregado ao neofascismo e seu projeto destrutivo para essas áreas – inclusive com a perseguição ideológica e propostas espúrias como a suposta “escola sem partido” -, tem resultados verdadeiramente desastrosos.

Numa breve incursão pelo Siga Brasil, plataforma do Senado Federal que monitora a execução, quase em tempo real, do orçamento público do Governo Federal, o exame da função Educação nos mostra um orçamento em queda de R$ 134,1 bilhões em 2016, para R$ 108,3 bilhões em 2020. Até junho de 2021, a execução do orçamento da Educação estava em R$ 58,4 bilhões, o que sinaliza uma trajetória de continuidade da queda dos recursos (dados deflacionados pelo IPCA de julho de 2021). A subfunção Ensino Superior, que inclui as IFES públicas que congregam a maior parte da pesquisa no país acompanha a trajetória da função Educação: houve uma queda de R$ 38,6 bilhões em 2016 para R$ 35,5 bilhões em 2020. Portanto, constatou-se uma perda orçamentária de mais de R$ 3 bilhões nos últimos anos. Em 2021, até junho, havia uma execução de R$ 18,3 bilhões, acompanhada de um volume passível de contingenciamento de R$ 8,9 bilhões em recursos nessa subfunção, inviabilizando as universidades federais, o que foi amplamente denunciado na imprensa. Já na função Ciência e Tecnologia, que abriga o CNPq, observamos uma situação verdadeiramente desastrosa: queda de R$ 10,5 bilhões em 2016, para R$ 7,5 bilhões, em 2020.

Para o CNPq, como unidade orçamentária da Ciência e Tecnologia, tivemos apenas R$ 2,0 bilhões em 2016, que se tornaram R$ 1,4 bilhão, em 2020, com promessa de queda ainda maior em 2021. Trata-se do menor financiamento da história do CNPq, expressando um verdadeiro sucateamento e paralisia do órgão. Em 2021, o CNPq conta com recursos autorizados de R$ 1,2 bilhão, dos quais tinha executado R$ 658 milhões, até junho. O Siga Brasil nos revela, acerca da função Ciência e Tecnologia, que ela representa 0,18% do Orçamento Geral da União (OGU), ou seja, seu orçamento é efetivamente irrisório, destacadamente se o comparamos com a gambiarra de recursos do pagamento de juros e amortizações da dívida pública que compromete há anos mais de 25% do OGU. A maior parte desse orçamento em C & T é para a formação e o suporte de recursos humanos, mostrando por que os laboratórios, de todas as áreas e instituições, vivem à míngua no Brasil, sobretudo quando não cedem às pressões do mercado ou sequer são áreas de interesses mercantis. Nesse sentido, as ciências humanas e sociais aplicadas sofrem ainda mais. Esse é o projeto: uma universidade heterônoma e sufocada quanto ao financiamento.

Na qualidade de quem esteve na representação da área de Serviço Social no CNPq entre 2017 e 2020, pudemos acompanhar os impactos dessa dinâmica – com muitos momentos de frustração e alguns de alegria, compartilhados com a professora Jussara Mendes, que esteve comigo na tarefa, indicadas pelos pesquisadores da nossa área. Vimos muitos projetos aprovados pelo seu mérito e relevância social, de pesquisadores com produção de excelência declarada em seus Lattes, líderes de grupos de pesquisa, e que não tiveram seus projetos financiados por falta de recursos do CNPq. Acompanhamos sonhos de estudos e investigações relevantes no Brasil e no exterior bloqueados pelo contingenciamento de recursos (de estudantes de pós-graduação e pesquisadores(as)). Observamos a alocação profundamente desigual entre as áreas. Sentimos a pressão de critérios supostamente universais para diferentes áreas e requisições dos objetos de pesquisa, numa tensão real entre as ciências da natureza, biomédicas, agrárias e engenharias, e as ciências humanas e sociais aplicadas.

O bug dos sistemas do CNPq tende a aprofundar essa lógica e esses problemas, ao não permitir o acesso público e em tempo hábil aos dados que permitem ao menos conhecer e reconhecer o conjunto da produção acadêmica e disputar o recurso público para iniciativas relevantes. Ele serve, portanto, para degradar ainda mais as nossas condições de trabalho, não para supostamente “nos libertar”. Se “viver não cabe no Lattes”, e mesmo tudo o que produzimos efetivamente, com o que tenho pleno acordo, não podemos simplificar a questão e jogar tudo fora, “a água com a criança na bacia”.

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). Tem publicações na área de política social, orçamento público, fundo público e Serviço Social.

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