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Eloy Melonio navegando no mar das palavras

O blog publica o discurso de posse do escritor/poeta Eloy Melonio na “Academia Ateniense de Letras e Artes”. Um belo texto para admirar e saborear

Escrever é preciso. Viver não é preciso.

Criei essa paráfrase, quase uma epifania, já um pouco tarde na vida. Mas ainda em tempo de me agarrar às palavras que, ora quentes, ora frias, me ajudaram a empreender uma nova e ousada “travessia” em minha vida. Especialmente para atender ao que Fernando Pessoa resume num aforismo, ou seja, “não ficasse à margem de mim mesmo”.

Não sou o primeiro numa aventura desse tipo: os hebreus ― conta-nos a Bíblia ― se embrenharam no deserto por quarenta anos para tomar posse de Canaã; os navegantes europeus, imbuídos do espírito de conquista, cruzaram o Atlântico para colonizar às Américas; os astronautas da Apolo 11 mergulharam no espaço para pisar na Lua e fazer ciúme aos poetas; os refugiados de nossos dias enfrentam perigos de toda ordem, seja em terra ou no mar, na ânsia de se jogar nos braços da paz e da esperança.

De igual modo, minha travessia nesse mar chamado Literatura não é ― como se pode imaginar ― tão somente uma aventura, mas um mergulho nesse fascinante e assombroso mar das palavras.

Mar sem fim, sem começo, sem meio. Mar que provoca fascinação, que nos traga de maneira tal que já não conseguimos dele emergir. Que nos eleva e nos abaixa à guisa de suas ondas de inspiração. Que nos cerca como se fôssemos ilhas de poder, de sabedoria, de devoção, de inspiração.

Mar de lendas, mistérios, poesia, música, ficção, distopias. Mar de angústia, de dor, beleza, saudade. Mar de paixões, de amores, de conquistas. Mar de correntes épicas!

Mar de gente que escreve, que lê; gente que imagina, que sonha, que discorda. Gente que voa, ri, e que se emociona quando chega ao fim de uma história, seja autor, seja leitor.

Mar da sintaxe, da semântica, da metalinguagem, da intertextualidade, das metáforas.

Escrever é preciso. Viver não é preciso.

Foi por esse mar de palavras que enveredei em 1999, para escrever dois livros de cunho religioso: o temático “A Verdade que Liberta”, e a novela “Os Dois Lados da Cruz”. Mas a poesia, minha ilha predileta, ainda não se avistara com meu coração. Essa paixão só se revelou em 2006, quando voltei à seara acadêmica para fazer o curso de Letras na FAMA (Faculdade Atenas Maranhense), onde encontrei um mar que desenhava ondas que refletiam o brilho da Lua e o calor do Sol.

E lá escrevi meu primeiro poema que, imaturo, ainda não sabia que um dia se acomodaria na primeira página de “Dentro de Mim”, meu livro inaugural, lançado em abril de 2015. Livro que também ainda não ocupava espaço nos meus sonhos. E assim, esse poema nasceu numa madrugada insone, quando, olhando para o lado, vi minha amada dormindo como um anjo. E, do nada, comecei a pensar e a me preocupar com o dia em que ela ou eu não mais aquecesse o outro. Peço-lhes licença para ler “Ausência”:

Se faltar a esperança,

conto com a sorte:

perder ou ganhar.

O que for.

Se faltar a paz,

enfrento a morte:

viver ou morrer.

O que for.

Se faltar o amor,

espero a dor:

superar ou sofrer.

O que for.

Se faltar você,

farei o que possível for:

viverei a saudade

ou morrerei de amor.

Compartilhei meu primeiro rascunho poético com colegas e alguns professores. A aprovação foi unânime. E de modo irresistível a ilha da poesia emergiu forte e convicta. Sim, digo “ilha” porque foi a primeira definição de poesia que ouvi, pelas palavras quentes da saudosa Elaine de Jesus Araújo, mistura de vizinha amiga, professora de Língua e Literatura Portuguesa, e mestra em Educação, mas, principalmente, minha maior incentivadora. Lia meus poemas, fazia correções, dava sugestões. Levava meus textos para trabalhar com suas turmas no IFMA. Prefaciou meu livro de poemas. Hoje ela é apenas um nome no mar da saudade. Mas, como nos ensina nosso “pai-poeta” Mário Quintana, “tão bom morrer de amor e continuar vivendo”. E assim Elaine Araújo continua viva no coração de seus alunos e amigos, e também nas páginas 15 e 16 de meu livro.

“O que é a poesia?” pergunta o jornalista, poeta e ensaísta Cassiano Ricardo em minha primeira lição, para logo em seguida dar a resposta: “Uma ilha cercada de palavras por todos os lados”. E continua: “E o poeta, o que é?” “Um homem que trabalha o poema com o suor de seu rosto”. Desde então, nado incansavelmente nesse mar de palavras, tendo como porto-destino essa famigerada ilha.

Escrever é preciso. Viver não é preciso.

Mais tarde, a lição do francês Stéphane Mallarmé: “Versos não se fazem com ideias, mas com palavras.” E o eterno e primordial conselho de Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras”. Seguido de uma sublime conclusão: “Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. E por fim, Ezra Pound prescreve o ingrediente maior dessa receita: “carregar a linguagem de significado até o máximo grau possível”.

Nesse curso preparatório, ainda tento aprender a lição mais sublime de Latino Coelho: “De todas as artes a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil, é sem dúvida a arte da palavra.”

Hoje, graduado nas lições desses e de outros grandes mestres, consigo dar algumas braçadas e mergulhos. E, parafraseando Paulinho da Viola, até ouso dizer: “Não sou eu quem me navega. Que me navega são as palavras”.

Essemar de palavras é hoje e será eternamente o meu habitat, assim como o palco o é para o ator. Nelas e ao redor delas vivo e sobrevivo, respiro e adormeço. Saúdo o dia com um sorriso lexical. Elas são minhas amigas, geralmente amáveis, algumas vezes rebeldes, apressadas, intrépidas. Aí o samba, o nosso mais genuíno gênero musical, me faz parafrasear uma canção de Zeca Pagodinho e Beto Gago: “Se eu for falar das palavras, meu tempo não dá”.

Ah, senhores, ah senhoras, as palavras!

Peço-lhes mais uma vez licença para levá-los a algumas enseadas poéticas que também cercamessa ilha para apresentar-lhes algumas das minhas palavras, que estão descansando nos poemas de Travessia, meu próximo livro:

“Minhas palavras/ é tudo o que resta deste velho ser./ Meu espólio, meus restos mortais,/ a centelha que anima o meu dizer.Nelas, a arte de imitar o silêncio, traduzir o que não se pode imaginar; e tecer o último capítulo de minha biografia.”

“Meu enredo é uma página em branco,/ e é no futuro que estão/ as palavras do meu próximo capítulo.”

“E na agonia da palavra,/o silêncio se pronuncia,seinsurge,se engrandece,/ e faz calar a poesia.”

“Meu tudo é só a metade de um verso./ Meu tudo é uma palavra estilhaçada no chão./ Meu tudo é quase nada.”

“Já não mais encontro/ aspalavras elegantes/ que enfeitavam meus poemas/ de encanto e frescor matinal.”

“Minhas palavras não são loucas./Louca é a semântica/ que não as compreende,/ e a sintaxe/ que as faz desfalecer.”

Da poesia para a música, foi um pulo. Pulo estético, pulo melódico. Mas um pulo cheio de palavras. Minha primeira canção nasceu de um poema que entreguei a um amigo que estava fazendo o curso de Letras para que lesse e avaliasse. Como sabia tocar violão, dias depois me apresentou a música “Pra falar de amor”, que está entre as doze de meu CD, intitulado Simplesmente Assim. Mas essa música não fugiu ao ritmo das palavras. E assim, cantam seus primeiros versos:

              Eu sempre quis fazer um samba

              Pro meu coração dizer que te ama

              Meus sentimentos mais profundos revelar

              Esse nó na garganta desatar

              Pois quando é

              Para falar de amor

              Não encontro palavras

              Não sei tirar nem pôr

              Não me vêm as palavras

              Eu só quero que ouças o meu coração

Quando percebi meu inefável apego às palavras, fosse na leitura, marcando-as nas cores da percepção, fosse nos meus versos, carregados de emoção, apaixonei-me ainda mais por elas. E quando falo “palavra”, não me refiro simplesmente a “unidade linguística com significado”, mas, principalmente, à sua capacidade de conferir à raça humana a possibilidade de se expressar verbalmente, revelando suas opiniões, pensamentos, sentimentos ou emoções”.

Se estou aqui agora, devo a elas essa deferência. Se vocês me ouvem e me entendem, devem a elas esse efeito mágico da percepção humana.

Escrever é preciso. Viver não é preciso.

O mundo da literatura, habitado por quem escreve e quem lê, é o mundo da vida, da arte de viver e morrer. Da arte fundamental de dizer. Arte que se consolida, como revela em sua segunda capa o livro “Arte e Ressonância” (Editora EDUFMA), organizado pelos professores Leonardo Pinto de Almeida e Jadir Machado Lessa, em algumas características básicas, das quais destaco cinco apenas: densidade etérea de um discurso que se quer verdade; ir além com o silêncio que afirma o indizível;redemoinho feito de linguagem e na linguagem; devir incandescente; palavras que queimam dedos e lábios para inventar novos caminhos.E não menos importante, a citação de Nietzsche no mesmo cenário livresco: “Para não sucumbir a verdade, temos a arte”.

E para que haja Literatura, é indispensável que se tenha escritores e leitores. Estes sucedem aqueles, mas são tão necessários quanto o próprio texto literário.

E a razão para escrever verte da alma para subverter a própria alma e tudo o que a cerca. Em palavras mais amenas, “virar a vida pelo avesso”. E algumas dessas razões, encontrei-as no livro “A Arte de Escrever”, de Frei Beto. O célebre autor desnuda sua alma e suas razões. Diz ele que escreve: “para ser feliz”; “para ter prazer”; “por vaidade”. E sua mais sublime razão: “para expor as entranhas”.

E eu, dentre tantas e tantas razões, aproprio-me de uma no belíssimo poema “Escrevo”, do poeta ludovicense Ruy Robson, que também expõe suas entranhas: “escrevo para não sofrer/ escrevo para não matar/ escrevo para não morrer!!!”

Quando olho para o passado e tento vislumbrar o futuro, não vejo apenas saudade e esperança, vejo principalmente minhas “novas” palavras. E tenho razões para isso. Foram elas que me trouxeram até aqui. Foram elas que me emolduraram de alegria, de prazer, de sentir, de imaginar, de criar. E de ser cada vez mais eu mesmo.

E de lambujem, me trouxeram amigos, leitores, críticos. E confrades e confreiras.

E com elas também cheguei a AMEI (Associação dos Escritores Independentes), como membro fundador em 2016, à Academia Poética Brasileira, em 2017, presidida pelo incansável Mhário Lincoln.

E hoje aqui estou, tomando posse na cadeira 17 da Academia Ateniense de Letras e Artes, patroneada pelo grande Erasmo Dias, escritor e jornalista, imortal da Academia Maranhense de Letras.

E nesse mar de palavras, não poderia encerrar esta exposição sem citar dois poemas que muito me inspiram. O primeiro, do poeta cabo-verdiano Ovídio Martins, intitulado “O único impossível”:

            Mordaças

            A um poeta?

Loucura!

            E por que não

            Fechar na mão uma estrela

            O universo num dedal?

            Era mais fácil

            Engolir o mar

            Extinguir o brilho aos astros

E o outro, “Língua Portuguesa”, de Olavo Bilac, uma ode à nossa língua pátria, (primeira estrofe):

            Última flor do Lácio, inculta e bela,

            És, a um tempo, esplendor e sepultura:

            Ouro nativo, que na canga impura

            A bruta mina entre os cascalhos vela…       

…….

Escrever, Senhores e Senhoras, é preciso. Viver não é preciso.

Tenho dito.

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avistar-se: ver-se reciprocamente:  “por que diabo fora Mariazinha avistar-se com o solteirão nos fundos da casa, em hora tão erma?”

Discurso proferido em 25 de maio de 2019