A decisão aponta que o Estado do Maranhão, como principal agressor no caso, ignorou o status de Sítio Ramsar da Baixada Maranhense e promoveu obras e atividades sem realizar os devidos estudos ambientais e sem consultar as comunidades quilombolas afetadas, violando tratados internacionais assinados pelo Brasil. As obras precedem projeto de criação em larga escala de camarão em cativeiro (carcinicultura)
Em decisão histórica para a proteção ambiental e defesa dos direitos de comunidades tradicionais, a Justiça Federal do Maranhão determinou a suspensão imediata de todas as atividades de criação de camarão (carcinicultura) na Área de Proteção Ambiental (APA) da Baixada Maranhense.
A medida, proferida pelo Juiz Federal Ivo Anselmo Höhn Junior, atende parcialmente aos pedidos feitos por seis cidadãos maranhenses na Ação Popular nº 1011269-69.2024.4.01.3700, motivada pela preocupação com os graves impactos socioambientais dessa atividade na região.
A decisão judicial vai além da suspensão da carcinicultura e também paralisa as obras viárias nos campos naturais inundáveis, incluindo a chamada “Estrada do Teso” e a estrada no município de Anajatuba. Suspende ainda a eficácia do Decreto Estadual nº 38.606/2023, que criou o programa “Podescar I” para fomentar a carcinicultura na região, e da Lei Municipal de Anajatuba nº 627/2024, que regulamentava essas atividades em escala local.
A Baixada Maranhense representa um patrimônio ambiental de valor inestimável, reconhecida internacionalmente como Sítio Ramsar – designação que identifica zonas úmidas de importância global. Esta região abriga ecossistemas únicos de campos inundáveis, manguezais e áreas de transição que funcionam como berçário natural para inúmeras espécies e são essenciais para a regulação do ciclo hídrico regional. Mais que um santuário de biodiversidade, a Baixada Maranhense é também o sustento e o lar de diversas comunidades tradicionais, incluindo quilombolas, que mantêm com esse território uma relação ancestral de dependência e pertencimento.


Durante a análise do caso, a Justiça identificou diversas irregularidades nos empreendimentos de carcinicultura e nas obras viárias, destacando-se a completa ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas e tradicionais afetadas – violação direta à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O licenciamento ambiental foi conduzido de forma fragmentada e insuficiente, com dispensa indevida sob a falsa justificativa de “recuperação de estrada vicinal”, quando na realidade tratava-se da implantação de infraestrutura inteiramente nova. Já são visíveis os primeiros impactos ambientais negativos: alagamento de casas, obstrução de canais naturais e alteração do regime hídrico, agravados pela intervenção em áreas de preservação permanente sem os devidos estudos.
Os riscos associados à criação intensiva de camarão na região são alarmantes e multifacetados. A decisão judicial aponta para ameaças concretas como salinização dos solos, degradação da qualidade da água, comprometimento da fauna aquática nativa, desmatamento e degradação de áreas sensíveis. As práticas tradicionais de pesca e agricultura seriam severamente prejudicadas, assim como os fluxos hídricos naturais alterados, resultando na fragmentação de habitats e perturbação de corredores ecológicos vitais para diversas espécies.


Para a retomada das atividades suspensas, o magistrado estabeleceu condições rigorosas que incluem a realização de estudos ambientais completos e abrangentes, a promoção de consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas, a obtenção de licenciamento ambiental unificado e adequado, a anuência dos órgãos federais competentes e a estrita observância do plano de manejo da APA, quando este for elaborado.
A fundamentação da decisão recorre a princípios basilares do Direito Ambiental. O Princípio da Precaução determina que, diante da incerteza científica sobre possíveis impactos, devem ser adotadas medidas para prevenir danos. Já o Princípio da Prevenção estabelece que, havendo evidências concretas de riscos, é imperativo atuar para evitá-los.
A decisão também invoca a Supremacia do Interesse Público Ambiental, reconhecendo que o meio ambiente equilibrado é direito de todos e deve ser preservado; a Função Socioambiental da Terra, que exige que a propriedade cumpra função social e ambiental; e a Vedação ao Retrocesso Ecológico, princípio que impede a diminuição da proteção ambiental já conquistada.
Merece destaque o reconhecimento judicial da profunda conexão entre as comunidades tradicionais e o território da Baixada Maranhense. A região não é apenas habitat físico, mas sustento cultural e espiritual de comunidades que dependem dos recursos naturais locais para sobrevivência.
Os campos inundáveis são utilizados ancestralmente para práticas agroextrativistas sazonais, enquanto espécies vegetais locais fornecem matéria-prima para instrumentos usados em manifestações culturais como o tambor de crioula e o bumba-meu-boi, patrimônios culturais imateriais brasileiros. A área também possui alto valor histórico e arqueológico, abrigando pelo menos 18 sítios pré-coloniais identificados.
Enquanto a ação contínua tramitando para julgamento definitivo, os réus (União, Estado do Maranhão e municípios de Anajatuba, Viana e São João Batista) devem cumprir imediatamente as determinações judiciais. O Ibama será incluído no processo como parte interessada, e duas associações comunitárias (Uniquituba e União de Moradores das Ilhas do Teso) participarão como “amicus curiae” (amigos da corte), contribuindo com seus conhecimentos tradicionais sobre o território. O Ministério Público Federal acompanhará o caso como fiscal da lei, zelando pelo interesse público.
Esta decisão estabelece um precedente significativo na proteção de áreas ambientalmente sensíveis e na defesa dos direitos de comunidades tradicionais. Ela reafirma a importância de conciliar desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental, a necessidade imperativa de respeitar o direito à consulta prévia das comunidades tradicionais, a aplicação efetiva dos tratados internacionais de proteção ambiental e direitos humanos, a responsabilidade inafastável do Poder Público em proteger áreas ambientalmente vulneráveis e o papel fundamental da Justiça na defesa do meio ambiente e dos direitos coletivos.
É importante ressaltar que a decisão não condena definitivamente o desenvolvimento econômico da região, mas estabelece parâmetros claros para que qualquer atividade seja realizada com respeito às normas ambientais, aos direitos das comunidades tradicionais e à sustentabilidade dos ecossistemas. Trata-se, portanto, de uma afirmação do desenvolvimento sustentável como único caminho viável para conciliar as necessidades presentes sem comprometer as gerações futuras.