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Praia Grande, “bonita, mas coxa”

Frederico Lago Burnett
Arquiteto e urbanista, professor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)

De sua privilegiada posição de “defunto-autor,” o rentista Brás Cubas assume escolhas que simples mortais-vivos só arriscam pensar. Diante da contraditória condição física de Eugênia, “mocinha morena” e “coxa de nascença”, Cubas resolve o impasse sem qualquer lirismo moral, optando pelo relacionamento extraconjugal com a bela Virgília que, apesar de casada, não carrega defeito físico. Relegada pelo autor e condenada à pobreza solitária, Eugênia reaparece nas páginas finais das memórias recolhida a um cortiço, à semelhança do autor que ironicamente viveu seu adultério entre quatro paredes de uma garçonnière. Mas a genealogia das pretendentes levanta outras razões para a decisão do pretenso nobre Brás Cubas, elucidando a raiz do preconceito estético: de origem bastarda, “filha da moita”, o pedigree de Eugênia faz duvidar de intenções e condutas futuras da jovem, de sua confiabilidade.

Como a beleza-coxa de Eugênia, o bairro da Praia Grande é formosura claudicante que atrai e repele, imerso em isolamento e ruínas. Se o fascínio se deve ao olhar que privilegia a estética de volumes e espaços estáticos, a repulsa acomete àqueles que enxergam linhagens perigosas além das pedras e do cal. Atração e aversão que levam a outros contrastes: apreciadores flertam, namoram e se deleitam, mas apenas por momentos, pois quem vê fachada não vê coração, principalmente quando se habita longe do objeto amado; já os insensíveis a encantos centenários, sabem que “beleza não põe mesa” e nada merece status de eterno quando “tudo se desmancha no ar”. Como Brás Cubas bifronte, uns vêem “por fora, a bela viola”, tecem loas em prosa e verso, outros olham “por dentro, o pão bolorento”, desviam negócios e planos para outras plagas, onde vicejam muitas Virgílias, amoldáveis e disponíveis.

Nesta gangorra de beijos e tapas, enlevo e desprezo, a Praia Grande vive glórias efêmeras e infortúnios cotidianos, aqui cortejada, logo esquecida, nunca respeitada. Há décadas condenada a ser cortiço, cada vez mais emudecida, como se realmente apenas de pedra e cal fosse, tolera namoricos passageiros e beijos ligeiros, promessas descumpridas e ironias repetidas. Tal qual Eugênia e Virgília, seres humanos sob imposturas éticas de época, a Praia Grande é ser urbano submetido ao espetáculo e às finanças da pós-modernidade. Reduzida a beleza física, é “museu a céu aberto”; refém de interesses financeiros, é estoque imobiliário para dias, usos e clientes melhores. Entre o idealismo patrimonializado do “espaço percebido” e o autoritarismo argentário do “espaço concebido”, a Praia Grande esconde seu incompreendido “espaço vivido”, resistência emparedada sob domínio de ideias exógenas.

Como ser urbano, a Praia Grande não se reduz a Virgília protegida, por mais adornos pendurados e salamaleques oferecidos, falsos brilhantes atraindo mariposas encantadas por luzes e festas. Diversão e arte nômades trazem coletores aventureiros e a colonialidade do saber de “círculos de distinção”, com seus especialistas sempre em busca de apropriações e expropriações, deixam terra e nativos submetidos. Tampouco pode o bairro ser Eugênia condenada à morte lenta, à espera de uma ressurreição enobrecida, purificadora de nódoas contemporâneas. Sua reafirmação urbana não virá de estranhos ao lugar, oferecendo miragens estéticas, empreendedorismo glorificado ou enclaves subvencionados. Enquanto a sedução por Virgília restaura monumentos que comprometem o cotidiano simples, a repulsa à Eugênia prega a monetização do futuro, onde endinheirados possam lucrar com capital cultural.

Como chegamos a esta situação? Passo a passo: primeiro veio a “solução Ouro Preto”, como tombamento de conjunto para centros urbanos brasileiros em crise, depois o experimento local do “reviver” capturado pelo elitismo, logo seguido do Prodetur e os dólares das agências multilaterais. E assim a Praia Grande se tornou refém de grandes projetos para sacralizar o espaço e empresariar a vida, intenções que ignoram o urbano e o humano e fazem dali lugar para ganhos políticos e econômicos. Enquanto fãs de fachadas e arautos da aporofobia derem as cartas, a vida no bairro e sua integração com a cidade estarão interditadas. Sobretudo com a sociabilidade do vizinho “centro histórico estadual” que, sofrendo com o comércio predador e a anarquia no uso do solo, precisa trocar experiências com a Praia Grande, monopólio dos rigores do tombamento e da cornucópia dos recursos públicos.

Mas, para adentrar neste outro enigma urbano, que se diferenciado paradoxo machadiano, recomenda-se ter Aluísio de Azevedo e Lima Barreto como guias, pois como ensina o poeta José Chagas:

“…às vezes a história não condiz

com o que comumente se propala,

sempre escondendo os erros e ardis

do que foi casa-grande e hoje é senzala.”

Imagem destacada portal G1 / Carros estacionados sobre calçadas no Centro Histórico de São Luís

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