Imagem: Janela em casarão de moradia no Centro Histórico de São Luís, na rua Henriques Leal. Foto: Pedro Araújo
Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta e membro da APB
Difícil imaginar, não é mesmo? Pra começo de conversa, acho que elas guardam mais histórias do que as portas. Porque ficam ali, de ladinho, observando tudo. De concreto mesmo, apenas nossa afeição por essa moldura nas paredes dos nossos lares.
Então, que tal começar pelo começo? E isso não é redundância, se foi o que você pensou. É que nem todo começo é o que parece ser. Assim como a Lua não é a mesma ao súbito espanto de olhares distintos.
Vamos direto ao ponto: um dia, em algum lugar, alguém sentiu a necessidade de abrir um buraquinho na parede de sua casa. Uma ideia que foi logo copiada por todos na vizinhança. Em seguida, vieram outros e outros mais. E as casas se encheram de vida.
Algum tempo depois, essa ideiazinha fajuta conquistou seu espaço nas paredes de todo o mundo. E, aos poucos, foi-se abrindo a novos ares. E a “arquitetura” ― a mais exuberante das artes ― aproveitou-se delas para adorno dos espaços externos. E, aí, merecidamente, ganharam status de obra de arte. Além de ar e claridade, os arquitetos perceberam que elas poderiam ser mais atraentes e mais funcionais.
E, enfim, precisavam ter mil e uma utilidades. Numa delas — talvez a mais social — uma pessoa ficava debruçada “ali” horas a fio só para ver o que estava acontecendo lá fora. Dizem que foi dessa mania que surgiram as fofoqueiras de plantão.
Bentinho e Capitu, protagonistas de “Dom Casmurro”, romance de Machado de Assis, por exemplo, passavam as noites à sua janela da Glória (bairro do Rio de Janeiro), “mirando o mar e o céu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia”.
Se você ler o poema “A janela da minha casa”, do livro “Dentro de Mim” (pág. 158), de minha autoria, talvez lhe venha à memória alguma janela com a qual se identifique. Ou para a qual olhou muitas vezes como se procurando alguma coisa.
Serena e compenetrada, a janela permeia história e ficção. Quem aí já não ouviu sobre “O Dia do Fico” (9-1-1822), anunciado de uma das janelas do Paço Real, de onde D. Pedro I — contrariando as ordens da Coroa Portuguesa — revelou que não mais retornaria a Portugal? Ou sobre a janela do Palácio Apostólico, em Roma, de onde o papa fala para milhares de fiéis? Ou a janela da torre em que Rapunzel ficou aprisionada por uma bruxa vingativa?
Saindo de casa para conquistar outros espaços, a janela chegou aos navios, aos trens e ônibus, e aos aviões. E, mais recentemente, confirmou sua vocação internacional ao se associar a “uma família de sistemas operacionais”, chamada Windows.
Pois é, a personagem de nossa conversa é a deslumbrante janela amarelo-dourada que aparece na foto que ilustra esta narrativa, cujo papel é fascinante.
Descansando na fachada de um casarão colonial, na Rua Henriques Leal, no Centro Histórico de São Luís (MA), nossa janela representa a versão artística daquele buraquinho na parede de que falei no início. E quem a vê não fica indiferente à sua beleza.
É tanto encanto que chego a imaginá-la conversando com seu espelho, repetindo as palavras da rainha má de Branca de Neve: “Espelho, espelho meu, você já refletiu janela mais bonita do que eu?”
Uma ideia que me afeta é a sua postura de rainha altiva, que precisa de súditos e quer que o mundo se abra para ela. Apesar de estar sempre fechada, não se recusa a acolher os olhares curiosos no calor do seu peito.
Parafraseando Drummond, “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre a cidade”. E — quem sabe — uma boa ideia seria abri-la e convidar a Mona Lisa para posar para seus admiradores, porque esta imagem seria “arte” em sua mais pura expressão. E, misturados aos turistas e transeuntes, estão os bem-te-vis e os beija-flores, encantados com sua elegância, que, em dias de sol, parece compor um quadro de tom amarelado.
Teria nossa janela segredos, paixões? É quase certo que sim. E, com essa quase-certeza, algumas dúvidas: quantas vozes devem tê-la feito tremer de alegria ou de tristeza? Quantas vezes desejou esquecer-se do mundo?
Uma personagem assim não se constrói da noite para o dia. Então, mais perguntas: quantas manhãs cinzentas teve de repreender com a sua luz? Quantas vezes se embriagou com uma cantada do Sol da tardinha? Quantas serenatas aos seus pés?
Em rendição ao seu encanto, repito a última estrofe do poema citado anteriormente: “E não demorou muito,/ estávamos, eu e ela,/ casados,/ olhando o mundo da mesma janela”.
Se Katherine Mansfield teria dito que, ao escrever sobre um cisne, sentia-se um cisne, confesso que eu também me senti um de seus atônitos admiradores e ouvi os mais comoventes comentários: “Que linda, tão florida!”, “Uma janela cheia de vida!”, “E toda hora tem passarinhos, borboletas e besouros!”
Nesse êxtase, alguém exclama baixinho ao meu ouvido: “Essa janela é um texto!” Olho para trás. Era o Ed, um jornalista amigo meu. Com um sorriso, deixei-o antever que esta crônica nascia naquele exato momento.
Antes de fechar este texto, uma curiosidade: sobre o que conversariam Bentinho e sua amada se, em vez da Glória, morassem na Henriques Leal?