Eloy Melonio é contista, cronista, ensaísta, poeta e compositor.
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome,
essa coisa é o que somos.”
(José Saramago [1922-2010], escritor português)
Já escrevi sobre esse “mal” do brasileiro em tirar onda de saber “tudo de tudo”. Tomado na acepção de “característica negativa”, nem o Dicionário Informal se aventurou a definir esse termo. Então tive de criar uma definição para completar as três que já estavam lá. E, assim, desconfio que esse impulso de falar sobre o que não sabemos direito pode ser um problema sério.
Prefiro ouvir, se não sei do que estão falando. E isso pode dar a impressão de que não estou interessado no assunto. Ainda mais hoje, quando opinar e criticar são coisas corriqueiras nas redes sociais. É muita gente falando de muita coisa. Recentemente, uma pessoa de aparente baixa instrução julgava as decisões de um ministro do STF como se fosse especialista no assunto. Calei-me para ouvi-la, e não vi muito sentido no que dizia.
Toda essa argumentação só para clarear o nosso tema: o que é arte, e o que é cultura. E, especialmente, por causa do São João. Sim, porque é nas festas juninas quando mais se ouve e mais se fala em cultura. Como se a cultura só se manifestasse nessa época do ano ou se reduzisse às brincadeiras juninas. Passada a festança, ela se retrai e fica esperando o Carnaval.
O certo é que se tenta reduzir as duas a uma só coisa. E aí, sobressai a ideia de que uma coisa e a outra coisa são a mesma coisa. Realmente, não é fácil separar uma da outra, pois, — para o senso comum — a linha divisória entre elas é quase imperceptível. Nesse contexto, o mais sensato é entender que arte é uma coisa; e cultura, outra coisa.
Em seu livro “Questões de Arte” (Ed. Moderna), Cristina Costa confirma que, nesse turbilhão de palavras jogadas ao ar de qualquer jeito e com significados cada vez mais contraditórios, uma delas é “arte”. E é aí que a onda do “senso comum” dança leve e solta.
Arte é um produto da imaginação cuja função é expressar com criatividade nossas emoções e sensações. E, nessa aquarela, os valores estéticos nas mais variadas cores, especialmente na música, na literatura, no teatro, entre outras formas de expressão.
Constata-se, então, que a arte é tão antiga quanto à humanidade. Nossos ancestrais já se expressavam por intermédio dela quando desenhavam nas paredes das cavernas, revelando sua sensibilidade ao traduzir a realidade que os rodeava. E, assim, a arte pode ser traduzida como “espelho de um povo” (a música brasileira, o tango argentino). Por mais remota que seja uma sociedade, lá está a arte de alguma forma. Um bom exemplo disso são —desde sempre — os coloridos adereços dos nossos índios.
Nesse contexto, destaca-se a figura do artista, ― conhecido ou anônimo ― que, na definição da filósofa Marilena Chauí, busca “exprimir seu modo de estar no mundo (…) reflete sobre a sociedade, volta-se para ela, seja para criticá-la, seja para afirmá-la, seja para superá-la”. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche vai mais longe, ressaltando que a arte é um desses valores indispensáveis. E justifica: “Para não sucumbir à verdade, temos a arte”.
Imagine-se caminhando numa movimentada rua de Nova Iorque num sábado à tarde. Ao longo do passeio, você se depara com vários palcos: um rapaz dançando hip-hop, um senhor tocando saxofone, um grupo de brasileiros jogando capoeira, uma moça fazendo o retrato de um turista chinês. Mais tarde, vai ao cinema. No dia seguinte, um amigo convida você para assistir a “O Rei Leão”, um dos dez musicais mais vistos na Broadway. Tudo isso é arte.
E onde está a confusão?
Justamente na tentativa de se reduzir cultura à arte. A arte é apenas um ingrediente dessa sopa denominada “cultura”, que tem de tudo um pouquinho. Você pode produzir arte, caso seja músico, pintor, escritor. Mas não pode produzir cultura. Porque a cultura existe antes e independentemente de você e de sua arte ou de suas preferências artísticas.
Percebe-se então que a arte é um campo da cultura humana, que abrange a religião, os costumes, a ciência, a moral etc. Nessa condição, destaca-se que a arte cumpre a função primordial de nos tornar mais humanos. Porque nos define, nos aproxima, nos identifica. Imagine agora uma multidão de fãs num show da celebradíssima Anita! Uma galera de diferentes profissões, raças, idades e classes sociais. Juntos e misturados, cantando, dançando, namorando. Isso só é possível porque a arte nos universaliza.
Sem querer imitar a arte de Gonzaguinha, pergunto: E a cultura, o que é?
A manchete de um blog (alguma data em 2018 ou 2019 [?]) denunciava: “Vereador diz que tambor de crioula não é cultura”. Com essa declaração, o edil desqualificava essa dança tipicamente maranhense como cultura. E acendia uma polêmica nas redes sociais. Não sei se era essa a sua intenção. Sei, no entanto, que ele estava “técnica e literalmente” certo. Realmente, o tambor de crioula não é cultura. Para a Wikipédia, uma “dança de origem africana praticada por descendentes de escravos africanos, em louvor a São Benedito”. É, portanto, uma manifestação artística, como muitas outras. Em suma, apenas um ingrediente da tal sopa de que falei antes.
Numa abordagem mais teórica, a cultura pode ser considerada do ponto de vista sociológico e antropológico. Para o Aurélio, “conjunto das características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade”. Um bom exemplo disso são as cidadezinhas do interior do nordeste, onde os comerciantes fecham as portas na hora do almoço, incluindo aí uma “sestazinha”, porque ninguém é de ferro para aguentar o mormaço do começo da tarde.
Em seu eletrizante “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade” (L&PM POCKET), Yuval Noah Harari costura os fatores que estabeleceram e desenvolveram a sociedade humana, fundada em aspectos que diferenciavam os sapiens dos outros animais. Categórico, afirma: “A imensa diversidade de realidades que os sapiens inventaram e a diversidade resultante de padrões de comportamento são os principais componentes do que chamamos “culturas”. E continua: “Desde que apareceram, as culturas nunca cessaram de se transformar e se desenvolver” (p. 60).
A cultura maranhense, por exemplo, é o produto de quatro séculos de interação entre gente das mais diversas origens (portugueses, índios, negros, imigrantes, migrantes [cearenses, por exemplo]), que definiram a sociedade em que vivemos hoje. E, por conseguinte, nossas crenças, nossos valores e costumes, nossas leis, nossa moral são resultado do processo de formação dessa identidade cultural. É nessa dimensão que se encaixa o “tambor de crioula”, manifestação artística que — saindo da senzala — se estabeleceu, se adaptou, se perpetuou e se inseriu no nosso patrimônio cultural.
Aqui, uma pausa para ouvir a “saudação calorosa” de João do Vale na canção “De Teresina a São Luís” (1962) sobre os nossos irmãos da terra de José de Alencar: “Alô, Coroatá, os cearenses acabam de chegar”.
Com frequência, ouvimos coisas sobre a cultura que não correspondem à real concepção do termo. Não raro, alguém denuncia: “Estão acabando com a nossa cultura”. A cultura se modifica e se adapta, mas jamais acaba. Falando das festas juninas, um produtor artístico brada entusiasmado: “(…) essa nossa cidade, que é multicultural”. Como pode uma cidade ter diferentes culturas, se a cultura é uma coisa só? Mesmo nas metrópoles, como Nova Iorque e São Paulo, prevalece a cultura local, embora haja uma vasta e diversificada oferta cultural, como restaurantes, templos religiosos, museus etc.
A arte, de essência subjetiva, se manifesta de diferentes formas, enquanto a cultura, coletiva, é parte natural do que “somos” como gente e coletividade. É disso que fala Saramago na epígrafe deste ensaio.
A revista Veja reserva cerca de dez páginas para a seção CULTURA. Nelas, desfilam o cinema, as artes plásticas, a música. Em palavras mais poéticas: a cultura (mãe) acolhe as artes (filhas) em seu colo.
Não caia na conversa mole do senso comum, pois é ele que geralmente nos confunde sobre os significados de arte e cultura. E não se deixe enganar por conceitos arbitrários e sem fundamento, como “Esse povo não tem cultura” ou “Temos a melhor a cultura do país”.
Uma coisa é cultura, outra coisa é arte.
No mês de junho, a sopa artística ferve nos quatro cantos da ilha de São Luís. Ludovicenses, ribamarenses, luminenses e raposenses saem de suas casas para se juntarem às dezenas de apresentações dos festejos juninos. No arraial, entre tantas outras, o cacuriá, dança com menos de cinquenta anos de existência; e o tambor de crioula — hoje “patrimônio imaterial brasileiro” — com quase dois séculos. Nesse folguedo, o povo interage e se identifica.
Em harmonia, — tal qual o boi e a índia guerreira (personagens do bumba-boi) — as duas dançam pra lá e pra cá, pra cá e pra lá.
4 respostas em “Uma coisa, outra coisa”
Belo texto, bem fundamentado, com explicava o didática de Arte e cultura. Devemos falar daquilo que que se entende.
Gostei! Reflexivo!👏🏼👏🏼👏🏼😍📖🤝🏼👍🏽
Uma coisa é cultura, outra coisa é arte MAS, juntas, tornam-se UMA SÓ forma de comunicação.
Perfeito. Mas provocado pelo texto que bem conceitualiza arte e cultura faço a seguinte reflexão a partir da fala do brincante “O Tambor é nossa cultura “. Vejo o emprego da palavra cultura no sentido de: aquilo que a gente cultiva . Que tem ancestralidade, linhagem, mestres e diversidade. Sim é nossa cultura.
Pois é, o importante é saber que arte é uma coisa; e cultura, outra coisa. Muita gente usas os termos indiscriminadamente.