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Uma transição em marcha?

Luiz Eduardo Neves dos Santos[*]

“Nós vivemos e morremos racionalmente e produtivamente”, escreveu o filósofo alemão Herbert Marcuse em 1964 na sua obra mais aclamada, O Homem Unidimensional. Nela o pensador faz uma poderosa crítica à sociedade industrial de então, em que os sujeitos se encontravam conformados com as estruturas preexistentes, normas e comportamentos. Estes sujeitos seriam submetidos ao controle de um poder dominante – em suas dimensões objetiva (trabalho técnico) e subjetiva (ideologia) – que moldaria e administraria suas emoções: desejo, medo, tristeza, alegria, aspiração, etc.  O homem unidimensional foi transformado em objeto, perdeu sua capacidade libertadora e autônoma, ou como Marcuse asseverou, a racionalidade individual foi devorada pela racionalidade tecnológica e científica.

Pode-se inferir que a crítica do saudoso filósofo da Escola de Frankfurt repercute em nossos dias com vigorosa potência, visto que há uma racionalidade que impera no mundo hoje, a do neoliberalismo, que também controla, administra e domina discursos e práticas não somente dos que detém o poder, mas também daqueles que são submetidos aos seus ditames.

Uma das dimensões da unidimensionalidade de nosso tempo é o que Dardot e Laval, na obra A Nova Razão do Mundo, chamaram de “o homem empresarial” ou “sujeito neoliberal”, o homem competitivo, que busca incessantemente o sucesso profissional, o homem bem sucedido e individualista. Não à toa se observa uma escalada assustadora dos chamados coaching, “profissionais” que possuem uma origem bem específica, o interior dos ambientes corporativos, mas agora invadem diversos setores da vida social. A banalização do coaching é um forte sintoma da ideologia do empresário de si mesmo e do desejo latente da realização pessoal. E mesmo que o sujeito seja empregado numa empresa, ele se sente parte dela, como “sócio” e/ou “colaborador”. Isto acontece também com motoristas de aplicativos e entregadores de comida pilotando motocicletas.

A racionalidade neoliberal nasceu como um projeto do grande capital na crise do fim dos anos 1970, disfarçado por um discurso sobre liberdade individual, meritocracia, autonomia, responsabilidade pessoal, virtudes da privatização e do livre mercado. Tal projeto tem alcançado êxito, haja vista a restauração do poder do capital, da expansão inédita da concentração de riqueza global, da servidão por dívidas dos trabalhadores, da proliferação da pobreza, tudo ao custo de toda uma sorte de doenças psíquicas derivadas dos modos degradantes da vida moderna e competitiva.

A subjetividade política e cultural do mundo vem sofrendo um grande impacto nas últimas décadas, já que seu modelo para a socialização da personalidade humana é o do oportunismo financeiro e do individualismo, caracterizado pelos prazeres e pelo gozo do consumismo hedonista, apontado por Milton Santos como “o grande fundamentalismo no nosso tempo”.

A pandemia do novo coronavírus tem apontado caminhos e possiblidades de superação da racionalidade neoliberal, mas é preciso cuidado com esta afirmação, já que em outras crises anteriores se cogitou o mesmo, mas o que se viu foi um fortalecimento dos alicerces neoliberais. A pandemia não é uma crise financeira, ela é a causa, talvez, do maior colapso econômico global da História, já que obriga grandes contingentes populacionais a estarem em isolamento social, provocando uma asfixia na produção, na circulação e no consumo de mercadorias, com reflexos significativos na perda de milhões de postos de trabalho no mundo.

Então, por que se pode apontar novos caminhos e possibilidades para superar a racionalidade neoliberal? A pandemia tem mostrado que a mercantilização da saúde é algo intolerável, a falta respiradores suficientes no mundo é só um exemplo. A saúde precisa ser vista como um bem comum, em que todos possam ter direito e acesso, isto vale para outros ramos, incluindo a pesquisa científica, o desenvolvimento de novas vacinas, insumos e tecnologias, tudo com subsídios estatais, de modo a não favorecer um punhado de empresas que visam apenas o lucro.

A pandemia coloca em xeque também o sentido de nossa existência, nossas relações de alteridade, de se colocar no lugar do outro, de refletir sobre a coletividade e o bem comum. Ela coloca a mão na ferida narcísica da sociedade, já que ataca nossa sobrevivência e nossas convicções, administradas e moldadas pela racionalidade neoliberal.

O atual momento histórico é único, ele nos mostra uma luz em meio à grande escuridão de nosso tempo, que não nos deixa enxergar o caminho da solidariedade, da ética, da cooperação, do senso de justiça, da autonomia, do respeito às diferenças e da alteridade.

A pandemia do COVID-19 ressoa como um alarme de incêndio ao fazer muito barulho, mobilizando pessoas – sobretudo os pobres e oprimidos – a refletirem, despertando-as de seus sonos profundos, já que desvela as condições objetivas, materiais e intelectuais para uma tomada de consciência, afim de que se possa, através da ação, superar o culto aos objetos técnicos, ao dinheiro e ao lucro e estabelecer inéditas relações com a coletividade e com o mundo, através de cada lugar e território do planeta. Certamente, se vivo estivesse, Marcuse elegeria as condições históricas atuais como propícias à uma grande transformação social e política, através do levante, da luta e da revolução e aí poderíamos reescrever sua frase do início deste escrito, colocando-a assim: nós vivemos e morremos solidariamente e pacificamente.

* Geógrafo, Professor Adjunto I da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Pinheiro.

Foto destacada / Imagem ilustrativa produzida por CDC para Unsplash

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