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De fora para dentro

Eloy Melonio

Falar de um autor e de sua obra literária da arquibancada é o ofício do crítico. De dentro do campo, do prefaciador ou do resenhista. Deus me livre de tais tarefas! Não porque não as aprecie ou seja incapaz de  realizá-las. Simplesmente porque parecem-me coisa de profissional, e — sob alguns aspectos — um tanto difíceis. E mais: ter de ler um livro do qual você talvez não goste é carga pra jumento carregar.

Aviso-lhe, desde já, que esta crônica não é exatamente sobre “prefácio” ou algo que lembre uma resenha. Não e não. Mas preciso dessa referência para apresentar minha percepção de um certo livro. Para ser mais sincero, é uma confissão.

Para um prefácio, o autor geralmente busca alguém famoso. Nos meus livros de poemas (Dentro de Mim/2015 e Travessia/2021), peguei um caminho inverso: chamei gente do meu convívio, que lia e apreciava meus poemas. Para o primeiro, uma saudosa amiga, professora de literatura. Para o segundo, uma colega de trabalho, professora de inglês. As duas deram um show na passarela das palavras! Nota DEEEZ!

Fazer um prefácio pode até ser prazeroso se você está falando de um autor a quem você admira. Mas bom mesmo é quando você escreve sobre alguém com quem cresceu, sentou-se à mesma mesa no café da manhã, foi à escola, brincou disso e daquilo. Alguém de quem você possa dizer que “tudo era compartilhado entre nós numa cumplicidade adolescente, bonita e desinteressada, uma partilha pra lá de genuína”. Aí, sim, é outro texto!

Se tenho interesse num livro, começo pelo começo, que — para mim — é o prefácio. Com alguns, não passei daí, por uma ou outra razão. Com outros, nem cheguei a tanto. Muitos desses descansam sobre uma mesa e aguardam o meu olhar curioso e interessado.

Esta crônica nasceu de uma situação assim. Lendo, na segunda capa, a apresentação do livro MACABÉA DESVAIRADA, de Lúcia Santos, encantei-me com a leveza do texto, que trazia um pouco de sua história de vida e de sua veia artística. Falando sério: se o texto é bacana, a gente pula pra dentro do livro, não é verdade? Foi o que eu fiz.

Lucia Santos, autora de Macabéa Desvairada, inspirou a crônica de Eloy Melonio

Lançado em dezembro de 2024, somente agora, em novembro (2025), peguei-o como quem pega um touro pelo rabo. Aliás, um livro que tive a honra receber diretamente das mãos da autora, na noite de autógrafos. Mas não passou disso. Até que…

Em casa, sobre uma mesa, com dezenas de outros, ele era um desses que ficavam rezando para que eu o olhasse e o pegasse. E, principalmente, que eu me deixasse levar num mergulho ao mundo poético-ficcional de sua autora. Na relação leitor-livro, pode-se parafrasear Eclesiastes 3:1: “todo livro tem o seu dia e a sua hora. Dia de olhar e admirar; hora de abrir e ler”.

Finalmente, peguei-o com um olhar mais atento. Sim, já nos conhecíamos tão bem quanto aqueles vizinhos que mal se dão “bom dia”. Putz! Esse era o seu dia, e a sua sorte estava selada.

De saída, deslumbrei-me com sua capa que já tinha visto várias vezes antes (sobre a mesa). Virei-o para ver a segunda capa. E aí, um espanto — ou melhor, o encanto. Apenas um texto ocupava todo o espaço, supostamente o prefácio deslocado. Chequei o autor e comecei a ler. Estava ali meu “snorkel” para o mergulho inevitável. Em seguida, pulei para dentro de suas águas mágicas, de onde não saí até agora. Sobre a mesa da copa (onde deveria haver pratos e talheres), “ele” agora reina soberano sobre seus pares.

Tudo — tudo mesmo — nesse livro é exatamente o oposto de “desvairado”, palavra com que Lúcia Santos tenta pôr um pouco mais de desordem nas águas inquietas e provocantes da arte (coisa de artista de verdade). Emprestada do livro “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, “Macabéa”, sim, é uma protagonista pobre e desvairada, como tanta gente por aí.

Atrevo-me a dizer que Lúcia Santos imaginou um livro com a sua “marca”, sem se preocupar com as vozes desvairadas dessa gente da arquibancada. E não fez mais do que preconiza Lya Luft: “A escrita é o território da minha liberdade”. Ou seja, seu projeto artístico tem a sua cara, a sua alma, o seu coração.

MACABÉA DESVAIRADA é “tudo e muito mais”. Colorido, engraçado, enigmático, surpreendente. De repente, você o abre numa página branca que só tem o desenho de uma boca humana. Ou duas outras páginas: a da direita, com dois versos no meio e dois coraçõezinhos pendurados; a da esquerda, o desenho de uma loira, com três versos flutuando no espaco vazio (“eu sou a falsa loura má/ A que toma/ e depois dá”).

Num rápido mergulho (para seguir a corrente poética do livro), veja a seguir algumas das minhas percepções. Primeira: tudo nele é arte; segunda: seis fontes diferentes vestem suas palavras; terceira: duas letras da palavra MACABÉA, no título, estão invertidas; quarta: no conteúdo: poemas de vários tipos, pensamentos e — pasme! — 11 letras de músicas (com ficha técnica e QR code para ouvi-las). Além de sacadas super geniais (“Se não sabe incendiar, não faça pose de Nero”). E, esquecendo essa coisa da ortodoxia, o prefácio chama a atenção para “seus chistes cheios de verve e ironia”. Em suma: 71 páginas com um desfile de palavras, melodias, cores, fotos e ilustrações espirituosas.

Um mergulho nas águas não tão calmas de MACABÉA DESVAIRADA é deleite, êxtase, surpresas. Imagine abri-lo numa tarde quente, “ao sol que arde em Itapoã!”. Sem exagero, dava até pra dizer que “o nirvana é aqui”.

Pois é, amigos, tinha tanta coisa pra falar que quase esquecia do principal. O texto da segunda capa, com jeito leve de prefácio, foi o que me jogou nas águas inexatas desse livro com alma de antologia. E me deixou com vontade de nadar, nadar, e gritar: Daqui não saio, daqui ninguém me tira.

E o autor dessa proeza textual (prefácio), com cara e jeito de garoto, não é o compositor e cantor maranhense Zeca Baleiro, irmão da Lúcia Santos. Não se assuste. Zeca Baleiro já foi colunista da revista ISTOÉ. Ele era um dos quatro que enfeitavam a última página da revista uma vez por semana. E eu, lá dentro, bulindo com as ideias.

E, finalmente, peço-lhe, aqui, autorização para repetir o voto de sucesso e energia vital que ilumina a conclusão do seu prefácio: “Saravá, Lúcia!”

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