Frederico Lago Burnett
Arquiteto e Urbanista, professor da Universidade Estadual do Maranhão (Uema)
Por força política e econômica, a construção de avenidas e viadutos em São Luís se tornou prerrogativa e monopólio das gestões estaduais, “sobrando” para o município a tarefa menor de manter as vias implantadas. Apesar de necessárias e dispendiosas, obras de conservação não têm pedra fundamental nem festas de inauguração, somando poucos dividendos políticos. Mas com tempo e astúcia, prefeitos lograram fazer desse “limão uma limonada”: a cada administração de turno, as rotineiras e triviais obras de recapeamento asfáltico foram assumindo a espetacularização própria da vida pós-moderna, ganhando o protagonismo de grandes ilusionismos. Qual foi o truque? Focados nos recorrentes problemas de fluidez do sistema de tráfego, gestores e técnicos transformaram os serviços de manutenção viária em midiáticas obras que favorecem o fluxo de veículos motorizados, erigindo um vistoso biombo que oculta a discriminação social no espaço público. Uma manobra à la Eça de Queiroz, cobrindo “a nudez forte do favoritismo com o manto diáfano da eficiência”.
Para isso, elevados recursos financeiros são aplicados quase exclusividade em elementos “fixos” do sistema viário — caixa de rolamento, retorno, meio-fio — que buscam atender, cada vez mais, às necessidades da circulação veicular motorizada. Assim, apesar da crescente envergadura das obras que se sucedem, na essência as intervenções são mais do mesmo, continuamos em um “museu de grandes novidades”, pois “livres”, ainda que por pouco tempo, são os automotores individuais! Na ponta oposta do problema, todos que utilizam outras formas de “fluxos” foram “cancelados”: ciclistas seguirão interditados, ameaçados pelas máquinas mortais mais velozes nas pistas recapeadas; pedestres irão caminhar em precárias calçadas, faixas para cruzamento distantes e com menos árvores contra o calor e a umidade. Entre as duas pontas dessa realidade, os invisibilizados problemas de “fluxos” do transporte coletivo, pois asfalto não resolve o que se agrava diariamente: atrasos, superlotação, assaltos, panes, falta de abrigos nas paradas e de acesso universal!
Frente a isso, o espanto: se todos sabemos que vai atender poucos e engarrafar tudo, por que persistir em alargar vias e multiplicar retornos? Como entender essa injustiça social com obsolescência programada que joga dinheiro público num ralo sem fundo? Relativizando o prometido “trânsito livre” e recorrendo a Milton Santos, o que temos é a materialização do “espaço como prisão”, a rua como um gueto fechado, porém mais eficaz, pois sem grades ou vigilantes. Não a cadeia de onde não se pode sair, mas a que expressa a impossibilidade cada vez maior de entrar. Assim, prisão da incerteza e precariedade para quem usa transporte coletivo, de risco de vida aos que ousam bicicletar, de obstáculos e peias aos que se atrevem pelas ruas caminhar! Faça-se um espaço público aberto e amplo na aparência, mas fechado e estreito socialmente! Deste ângulo, todas as gestões compartilham os mesmos fins com as obras viárias: premiam poucos e punem muitos, anulam diversidades e exercem racismo e colonialidade no uso do espaço público.
A crescente influência sócio-espacial de São Luís sobre os demais municípios da Ilha, somando 1 milhão e meio de pessoas que dependem, de alguma maneira, de postos de trabalhos e acesso a serviços na capital, tem sido insuficiente para revirar de ponta cabeça essas políticas de mobilidade. A PNAD-IBGE 2019 já comprova a contradição, pois se apenas 20% dos domicílios de São Luís possuíam veículo particular, ao considerar uma média de três pessoas por residência, chegamos a 300 mil pessoas possuidoras de 100 mil veículos próprios em toda a Ilha. Do outro lado, um milhão e duzentas mil pessoas sem automóveis e, portanto, usuárias de outros meios de transportes para deslocamentos diários. Diante disto, como as sucessivas gestões ignoram essa imensa maioria da população urbana e rural? Como “cidades para pessoas” e “mobilidade inclusiva”, princípios de equidade espacial, podem estar ausentes dos programas públicos de mobilidade, que resumem todo o problema de deslocamento à construção e reforma de vias?
Enquanto a ausência de calçadas acessíveis e de ciclovias seguras só encontra explicação na miopia mesquinha de planejadores e executores dos serviços, o colapso do transporte coletivo tem outras razões. Administrado por uma única secretaria municipal, o sistema de transporte foi terceirizado entre quatro consórcios empresariais, que fazem a gestão de cinco terminais de passageiros e cerca de 900 ônibus em 170 linhas. Este gigantesco complexo de serviço público, que transportava diariamente 700 mil passageiros em 2013 e arrecadou, somente com o sistema de bilhetagem eletrônica, 28 milhões de reais por mês em 2021, é como o sangue que circula no sistema viário de São Luís: qual cardiologista prescreveria alargar artérias sem tratar as mazelas do próprio sangue? Operado pela sempre louvada competência de empresas privadas, a situação é gravíssima: atrasos e panes de ônibus sucateados, terminais de passageiros arruinados, demissão de cobradores, motoristas estressados porque cobram passagens e operam elevadores de acessibilidade… Ao longo dos anos e por iniciativa dos usuários, incontáveis audiências públicas trataram do problema sem qualquer medida para sanar as injustiças da má administração do serviço de transporte coletivo na capital. Revoltas dentro e fora dos ônibus, nas paradas e nos terminais de passageiros são também recorrentes, mas uma força invisível se interpõe e posterga qualquer intervenção para melhoria do sistema. Superior ao poder político local, a situação tem perpetuado a via crúcis diária de centenas de milhares de passageiros que desembolsam quase um dólar, ou um litro de gasolina, por uma viagem que não sabem se chegará ao destino. Tampouco os empregadores, que dependem da presença dos trabalhadores, demonstram qualquer insatisfação com o problema, até aqui “resolvido” individualmente, às custas de horas de vida dos passageiros, desperdiçadas na espera da condução e no trajeto de riscos rumo ao batente. Até quando prevalecerá o “espaço-prisão” do transporte coletivo em São Luís? Quem porá abaixo grades e carcereiros?