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Uma crônica para distrair

COMPANHEIRA

Texto publicado no antigo Blogue do Ed Wilson, em 22 de março de 2010

Quando botei os olhos nela, não vacilei: ia ser minha.

Estava de amarelo e branco, encantadora. Fui direto ao assunto e o nosso relacionamento iniciou com um namoro fortuito. Encontros rápidos sem muito compromisso.

Aos poucos fomos fazendo descobertas, andando mais juntos, tecendo laços. Quase sem perceber, estávamos apaixonados, entrelaçados por uma espécie de transcendência.

Ela, literalmente, cruzou o meu caminho. Quando isso acontece é sinal de compromisso forte, coisa de pele e alma. Ficamos amarrados como nó de marinheiro, presos pelas tranças dos cabelos, untados pelo mel dos nossos beijos.

Tínhamos tanta intimidade que, em algumas ocasiões, desprezávamos aquela proteção. Queria sentir-me totalmente à vontade com ela, somente com o vento entre nós dois.

Viajamos juntos. Vimos o mar no Ceará, cachoeiras no interior e o litoral da Bahia, as praças e avenidas verdejantes em Belém e o rio Guamá, os búfalos na Ilha de Marajó, as pedras de cantaria da Praia Grande, as praias de São Luís, as ruas de Imperatriz, as belezas do rio Tocantins e outras tantas plagas.

Adorava flanar com ela, nos dias de céu azul, sol forte e vento na cara. Muitas calçadas, ruas, avenidas e praças conhecemos juntos. Programa bom era percorrer serelepes os paralelepípedos da cidade velha, vendo a água escorrer depois da chuva forte.

Estou falando da minha bermuda amarela. Foi a peça de roupa mais importante da minha vida até aqui. Eu tinha outras bermudas, mas nenhuma delas tão perfeita quanto a amarela com uns vazados em branco, de dois bolsos laterais e um traseiro.

Cabíamo-nos. Simples assim. Eu sentia-me lindo naquela roupa, feliz, contagiante. Mangas-compridas, calças sob medida, ternos de aluguel… nada ficou tão ajustado a mim como aquela bermuda amarela.

Ela representou mais que uma roupa. Foi um sonho de liberdade. Bastava uma sandália e uma camisa de meia e eu estava pronto para os finais de semana e viagens de férias.

Foram sete anos juntos, vividos intensamente. Outro dia ela partiu, durante uma caminhada no Caúra, em São José de Ribamar. Fim de tarde, fui tirá-la para tomar um banho na maré cheia. Durante a manobra, engatei a ponta do dedão na parte de baixo. Forçou um pouco e rompeu no fundo.

Um rasgão horizontal discreto, embaixo do bolso traseiro, quase imperceptível, porque um amor desses não iria deixar-me em maus lençóis naquela tarde tão linda. Pus uma camisa por cima e não perdi a energia do crepúsculo.

Quando cheguei a casa ainda pensei em fazer um remendo para usá-la mais uns tempos. Depois desisti. Mesmo sem vesti-la, está eternizada em meus pensamentos.

Certas roupas e pessoas são tão ajustadas a nós que passam juntos uma temporada; outras, uma vida inteira. Aquela bermuda era uma segunda pele sobre meu quadril e coxas.

Estava impregnada em mim, como diz aquela música de Chico Buarque:

“Quero ficar no teu corpo

feito tatuagem

Que é pra te dar coragem

pra seguir viagem

quando a noite vem”

* “Companheira” é um dos textos que estou colecionando para criar coragem de publicar em um livro, qualquer dia desses.

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